voltar ao menu de textos

Os Limites da Expressividade: Questionamentos sobre Design e Autoria
Autoras:
Tatiana Azzi Roizenbruch [1] - tatiazzi@gmail.com e Gisela Belluzzo de Campos [2] - p_gcampo@anhembi.br

Resumo: Esse artigo busca definições sobre o design de autor. Questiona até que ponto cabe ao designer a difícil tarefa de conseguir estabelecer relações entre suas preferências estéticas enquanto autor do projeto, e questões de funcionalidade e das necessidades de seus usuários. A questão sobre a autoria no design se torna assim, uma ampla discussão dentro de uma atividade que não requer somente uma visão do designer como artista, e sim uma visão aliada a outros aspectos de seu posicionamento perante a indústria e à sociedade.

Palavras-chave: Design, indústria, autoria.

Abstract: This article intends to find definitions of “authorial design”. It questions the role of the designer and his/her hard duty to try to establish relations between the designer’s esthetics preferences, as a project’s author, and matters of functions and necessities of the users. The issue about design authorship turns on an ample discussion since it is an activity that requires not only a vision of the designer as an artist but also a vision connected to others aspects of his/her position before industry and society.

Keywords: Design, industry, authorship.

Design de autor

Uma questão bastante atual nas discussões sobre o design industrial é a da autoria. Design de autor pode ser entendido como aquele produto ou objeto que deixa transparecer uma marca, um sinal ou uma expressão daquele ou daquela que o concebeu.

A discussão mais comum, nesse sentido, acontece em torno das perguntas: até que ponto o designer pode ou deve deixar transparecer sua marca pessoal em trabalhos que, por princípio, são dirigidos a vários usuários e que, portanto, devem antes de qualquer outro requisito, atender a um gosto geral e, além disso, à qualidade de ser funcional? Seria a qualidade da funcionalidade presente em um objeto ou produto incompatível ou impossível de coexistir com a qualidade que marca a evidência de um traço ou estilo nesse mesmo objeto ou produto? É possível existir esse traço ou marca individual em produtos com alto índice de reprodutibilidade? Que papel a tecnologia, em seu contínuo desenvolvimento desempenha na maior ou menor autonomia do designer ao projetar um objeto ou produto?

Essas, dentre outras discussões sobre a prática do design dividem as opiniões dos profissionais e estudiosos da área. De um lado se colocam os defensores do design como uma atividade de caráter tecnicista, voltada à produção em série, e, como tal, marcada pela impessoalidade de seu autor ou autores. De outro, se colocam os que defendem a idéia do design como uma atividade também artística, entendendo-se por isso, a possibilidade de colocar uma boa dose de inventividade e criatividade em um projeto de design. Conforme Pareyson (1984), “pode existir arte em toda atividade humana, desde que exista um lado inventivo e inovador como condição de sua realização”.

Acreditamos nessa hipótese, a de que é possível entender o design como uma prática que incorpora, em seu fazer, a natureza criativa e inovadora, que exige exercícios de imaginação, criação, inventividade, sem, entretanto, perder a visualização das necessidades, oportunidades e dificuldades dos processos de produção, comunicação e fruição.

Essa discussão parece estar vinculada ao conceito de design, que por sua vez, está atrelado à definição de suas origens históricas. “Historicamente (...), a passagem de um tipo de fabricação, em que o mesmo indivíduo concebe e executa o artefato, para um outro, em que existe uma separação nítida entre projetar e fabricar constitui um dos marcos fundamentais para a caracterização do design” [Cardoso, 2004].

A divisão intensiva do trabalho veio a se tornar uma das principais características da primeira Revolução Industrial, onde o estágio de design se torna necessária dentro do processo produtivo. Sendo assim, antes mesmo do aparecimento da figura do designer já estavam estabelecidas atividades ligadas ao design, assim, o surgimento do design como profissão vincula-se ao início da produção industrial, onde o objeto produzido em série se instaura como processo de grandes inovações.

Essa divisão de trabalho pressupõe uma fragmentação do produto final: por mais que o designer conheça os métodos de fabricação a que seu projeto se destina, há sempre componentes desse processo que alteram ou interferem em sua concepção primeira. Pensando desse modo, a criação projetual do designer muitas vezes se limita frente às tecnologias industriais, tendo o designer que adequar os projetos a essas limitações. Mas hoje podemos perceber que, muitas vezes, é essa tecnologia que se adequa aos projetos. É o caso da Edra, empresa italiana de móveis que consegue fabricar muitos produtos com características quase manuais, como as peças dos irmãos Campana, atualmente reproduzidas por máquinas capazes de realizar trançados intrincados e formas orgânicas com precisão.

Percebemos com isso que os designers ganham maior liberdade e autonomia para se expressarem através de suas criações. No caso dos Campana, pesquisar materiais e encontrar possibilidades para o uso dos mesmos são características que os tornam diferentes e reconhecidos por um trabalho criativo, sendo seus projetos muitas vezes considerados obras de arte, mas que não poderiam deixar de ser objetos de design, uma vez que possuem projeto e produção industrial.

O fato de a indústria começar a se adequar ao design de produtos talvez seja um ponto a mais na questão da autoria, mas isoladamente, não torna o design mais ou menos autoral, pois há também as crenças, os ideais e as ideologias em torno do que realmente se baseia o design. Um exemplo marcante de como concepções diferentes sobre o que é, e o que pode ser design, alteram estilos e produtos ocorreu ao longo do trajeto da Escola Bauhaus.

O design funcionalista

A Bauhaus sempre teve um caráter indisciplinar que buscou a interação entre as artes plásticas e o desenho industrial enquanto uma ação construtiva-colaborativa capaz de unir diversos aspectos da atividade humana. No seu início, em 1919, esses ideais eram buscados sob um ponto de vista quase místico. Inspirados nas antigas corporações medievais que integravam o trabalho de artesãos e designers, havia uma ênfase na intuição criativa, na originalidade, nos processos subjetivos e individuais de criação e na produção manual.

Ao longo de sua trajetória de ensino, a Bauhaus foi perdendo esse caráter místico e centrado nas expressões individuais e caminhou para um ensino cada vez mais voltado para as necessidades do mercado. Em sua segunda fase, ainda em Weimar e com direção de Walter Gropius, adotou uma estética fundada nos conceitos de “tipo” e “função”, procurando a inserção de seus produtos na indústria.  Quando a escola se muda para sua sede própria em Dessau, em 1925, a produção em série e o domínio técnico passam a ser as preocupações dominantes. Os produtos tornam-se mais padronizados e pouco expressivos em termos artísticos.

Em suas últimas fases, com direção de Hannes Meyer e Mies van Der Rohe, essa tendência à extrema racionalidade dos meios, materiais e projetos é acirrada culminando na função como qualidade predominante do objeto e determinante do seu aspecto formal. O funcionalismo estendeu-se para outras escolas de design como Ulm e a escola suíça, desdobrando-se também na vertente brasileira do design dos anos 1950 de linha construtivista e na ESDI no Rio de Janeiro, marcando o design modernista de modo inconteste.

Os vocabulários formais e as convenções estéticas da Bauhaus e das escolas que a precederam tornaram-se um estilo que influenciou grande parte dos designers e arquitetos brasileiros. Bastante focada na racionalização dos procedimentos de projeto e de linguagem, na objetividade técnica e científica, distanciou-se da experimentação e da expressividade próprias da arte e das atividades manuais e espontâneas do artesanato.

A Bauhaus e o design funcionalista marcaram o design modernista, e até a contemporaneidade sua presença é motivo de debates.

O principal motivo de discussão da validade e pertinência de um design funcionalista não é tanto sua qualidade estética ou maior ausência ou presença de artisticidade e inventividade e sim a sua predisposição em criar e utilizar uma linguagem com pretensões universais capazes de comunicar o conteúdo e função de modo igual para platéias distintas e na qual os criadores se coloquem de modo neutro ou “invisíveis”.

Esse foi um dos motivos principais de reação de algumas vertentes do design identificadas como pós-modernistas, com desdobramentos também na arquitetura e na arte, ancoradas em um amplo contexto que engloba toda uma mudança de pensamento e condições culturais que começam a se manifestar a partir da segunda metade do século 20.

O legado da pós-modernidade

As produções pós-modernistas em design possuem algumas características comuns que tornam possível sua identificação com essa denominação. As mais relevantes e possíveis de identificar tanto no design gráfico como no design de objetos são: a liberdade e a variação do vocabulário de formas (ecletismo) incluindo o uso de formas do passado; o desrespeito às normas prescritas sobre o que vem a ser um “bom design” tais como o respeito à grade e à legibilidade tipográfica no design gráfico e o uso de determinados padrões no design de objetos; o recurso à paródia e ao pastiche e a expressão criativa individual no design. Essa última, que particularmente nos interessa aqui, é, neste momento, impulsionada pelas outras: ao ter um espectro bem mais amplo de escolhas de vocabulários, métodos, formas e uma maior liberdade em relação às regras, as soluções individuais têm mais oportunidades de se manifestarem e serem aceitas.

O design de autor, aquele em que o produtor deixa transparecer sua marca passa a ser bem mais aceito e encontra espaço em meio ao que já havia se tornado quase uma tradição nesse campo: a forma se submetendo à função.

Nos dias atuais, ainda há muitas controvérsias sobre esse tipo de objetos, sobretudo no que diz respeito aos limites dessa expressividade ou até que ponto esses produtos podem ser expressivos sem perder a sua funcionalidade. São principalmente três as questões que surgem ao discutir as relações entre design e autoria: o primeiro é o designer aparecer mais que o produto, o segundo é o produto perder sua funcionalidade e o terceiro é o estabelecimento das fronteiras entre design e arte.

No primeiro caso, podemos argumentar que, dependendo do caso, pode haver maior ou menor possibilidade de “vôos” criativos do designer. Por exemplo, em um catálogo impresso de produtos no qual elementos como fontes, cores e modos de paginação se sobrepõem ao produto que está sendo mostrado, fica evidente que sua função de design deixa a desejar. Entretanto, no caso do mesmo catálogo, há possibilidades do designer imprimir sua marca sem ofuscar o produto.

Quando dizemos: que, de modo inconfundível, determinado trabalho é de tal designer estamos identificando aí uma autoria. Porém uma autoria que conhece seus limites e os objetivos do produto.  Por outro lado, há produtos em que a liberdade do designer é bem mais aceita, por exemplo, aqueles que estão destinados a segmentos menores do mercado, em que há identificação entre o público alvo do produto e o estilo pessoal de determinado designer.

Quanto ao segundo caso: o objeto perder sua funcionalidade, pensamos que não é a expressividade ou a neutralidade de determinado produto que vai torná-lo menos ou mais funcional. A funcionalidade não está diretamente relacionada a seu caráter estético. Temos inúmeros produtos criados pela Bauhaus que são anti-funcionais. Em contrapartida há inúmeros exemplos de objetos que beiram o kitsch e que são funcionais. Nestes casos o que está em questão são muito mais os parâmetros de ergonomia e usabilidade e não os estéticos.

Quanto às fronteiras entre design e arte, há uma enorme discussão, afinal, existem objetos de design que por vezes deixam sua função à que foi concebido e passa a ser utilizado como objeto de arte. É o caso do trabalho dos irmãos Campana, citados anteriormente, ou de Philippe Starck, designer conhecido pelo alto grau de inventividade. Muitas vezes os trabalhos criativos desses e de outros designers são identificados como artísticos, seja pelos materiais, pelas técnicas utilizadas ou simplesmente pela estética do produto final, não se limitando simplesmente à função do mesmo.

Podemos então dizer que o design evoluiu e vem evoluindo enquanto ofício e enquanto uma atividade independente, se considerarmos suas origens desde a primeira Revolução Industrial. Parte dessa evolução pode ser atribuída aos avanços tecnológicos, parte à consciência maior do que é design e do que é ser designer hoje.

A indústria e a tecnologia, por exemplo, são determinantes para a afirmação do design enquanto área com demandas próprias e específicas: as pesquisas de novos materiais são um exemplo. A ciência ligada à tecnologia é outro campo, que também não apenas inclui a pesquisa de materiais e métodos, como também a já citada ergonomia, as pesquisas de usabilidade, de interfaces e os cuidados com a sustentabilidade, entre outros fatores que envolvem o campo do design.

Com essa evolução ou crescimento da área como um todo, podemos argumentar que há mais abertura para que vários tipos de manifestações estéticas e pesquisas de linguagens ocorram, pois há a compreensão de que mais espécies de demandas também estejam acontecendo.

Por outro lado, o conceito de funcionalidade não é um conceito perene e congelado no tempo. Os modos de vida se alteram com as transformações que acontecem nas sociedades em vários níveis e com eles as necessidades dos usuários. Vários produtos antes nunca imagináveis surgem e com eles novos desafios para os designers.

Nesse universo ampliado, há espaço para uma liberdade maior também em termos de autoria e de soluções. Neste sentido podemos dizer que o que realmente não cabe, nesse amplo panorama, é uma postura de design que se auto-qualifique de correta, única e universal.

Cabe sim ao designer, a difícil tarefa de conseguir estabelecer relações entre suas preferências estéticas enquanto autor do projeto, as influências sócio-político-culturais e as necessidades de seus usuários, sem esquecer que entre tudo isso há um cliente.

A dificuldade encontrada pelos designers para se expressarem como autores, é, na maioria das vezes, regrado por essas limitações. O desejo do criador, no caso do designer, é conflitado pelo desejo do usuário, da indústria, ou mesmo da sociedade, Com isso o design permanece como uma das formas de expressão mais desafiadoras, devendo unir criatividade artística e tecnologia industrial.

Coutinho [1997] diz que o design tem uma característica que ultrapassa a concepção técnica e tecnológica estrita. Ele tem uma dimensão de criatividade e um conteúdo estético. Situa-se em uma fronteira entre arte e tecnologia, e, portanto, requer uma cuidadosa e bem calibrada política de estímulo a talentos.

Com a globalização e a crescente inundação de produtos de massa, questiona-se hoje, a padronização do design e a perda de referência dos valores de cada comunidade ou cultura. A questão sobre a autoria no design se torna assim, uma ampla discussão dentro de uma atividade que não requer somente uma visão do designer como artista, e sim uma visão aliada a outros aspectos de seu posicionamento perante a indústria e aos anseios de seu público.

Como em toda discussão sobre o design, a questão da autoria, que de algum modo, estamos identificando como autonomia, não apenas do designer, mas no modo como se pensa um projeto, impossibilita afirmações conclusivas. Entretanto, podemos dizer que o designer que tenta sair de uma fórmula, regra ou padrão já estabelecido começa a se configurar como autor. Talvez essa maior liberdade e variedade seja o início de novos caminhos para um design cada vez mais criativo.

Referências Bibliográficas

CARDOSO, R. Uma Introdução à História do Design. São Paulo: Edgard Blücher, 2004.

COUTINHO, L. Estratégia empresarial e design - Palestra proferida no workshop “Interação com a Indústria em Debate”. Série Papers. São Paulo: FIESP/CIESP, N. 15, P.1-6, Jan. 1997.

FORTY, A. Objects of desire – design and society since 1750. São Paulo: Cosac&Naify, 2007.

PAREYSON, L. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

POYNOR, R. No más normas. México: Gustavo Gilli, 2003

RODRIGUES, A.J. A Bauhaus e o ensino artístico. Lisboa: Editorial Presença, 1989.

Notas:

[1] Designer formada pela UEMG, Belo Horizonte; Mestranda em Design pela Universidade Anhembi Morumbi, SP, na Linha de Pesquisa Design, Arte e Tecnologia sob orientação da professora Dra. Ana Mae Barbosa, com a pesquisa intitulada ”A multiculturalidade como cenário para o design no Brasil”.

[2] Doutora e Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Bacharel e Licenciada em Educação Artística (FAAP). Artista Visual e Designer. Pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Design – Mestrado, bem como dos cursos de graduação e pós-graduação Lato Sensu em Design, da Universidade Anhembi Morumbi.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano VI - Número 09 - Abril de 2008 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

OBS: Os textos publicados na Revista Art& só podem ser reproduzidos com autorização POR ESCRITO dos editores.