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Preparação Corporal em Dança Brasileira Contemporânea
Autora:
Renata de Lima Silva - renatalima@iar.unicamp.br

Resumo: A Dança Brasileira Contemporânea pode ser entendida como uma linguagem híbrida, fruto do diálogo criador entre a cultura popular e a dança contemporânea, isto é, uma linguagem estética que se alimenta de elementos da cultura popular para transbordar na cena contemporânea. Por sua característica multifacetada, o processo de criação, nessa forma de expressão artística, pode acontecer de maneiras variadas, porém, em todos os casos, o processo é fundamental para que se valide o resultado em termos estéticos e conceituais. Por isso,ele deve ser valorizado: para não se incorrer no equívoco de formas estereotipadas e redutoras de universos tão significativos.  Nesse sentido, o presente artigo apresenta uma reflexão sobre do corpo na Dança Brasileira Contemporânea, tendo em visto o processo de criação artística.

Palavras-chave: Corpo, Corpo-subjétil e Dança Brasileira Contemporânea.

Abstract: The Brazilian Contemporary Dance might be understood as a hybrid language, as a result of a dialogue between the popular culture and the contemporary dance, an aesthetic language compounded by elements found in folk dances. These elements overflow the contemporary scene. Due to its multiple characteristics, the creative process may happen in different ways, otherwise in all cases the process is essential in order to achieve a result in conceptual and aesthetical terms, so, and it must be valued in order to avoid stereotyped forms which can reduce a meaningful universe. The present article presents a reflexion about the body in the Brazilian Contemporary Dance, focusing on the creative artistic process.

Key words: Body, Body in Art and Brazilian Contemporary Dance

O movimento é o próprio pensamento do corpo na dança.  Mas, como é possível distinguir o movimento como signo de dança de um movimento cotidiano ou de caráter puramente funcional, inclusive perante o esmaecimento de limites entre arte e vida proposto por muitas vertentes da dança contemporânea? O grande teórico da dança, Rudolf Von Laban, identifica um movimento dançado quando a ação exterior é subordinada ao sentimento interior, como também interpretou José Gil [2004:14]:

No gesto comum, o braço entra em movimento no espaço porque a ação impõe do exterior uma deslocação ao corpo; pelo contrário, no gesto dançado, o movimento, vindo do interior, leva consigo o braço, esse mesmo corpo que é o seu suporte. Von Laban diz que o movimento é dançado quando a ação exterior é subordinada ao sentimento interior.

O sentimento interior, denominado por Rudolf Von Laban de esforço, exterioriza uma ação que se materializa por meio dos fatores Tempo e Espaço. Seria possível um movimento acontecer se não fosse pelo intermédio do Tempo? Eu só consigo imaginar uma estátua, estática, forma sem ação. Seria possível o movimento acontecer se não fosse no Espaço, com o Espaço, através do Espaço? Nem na imaginação.  Por essa razão, movimento/tempo/espaço se constituem como princípios elementares da dança.

Tais princípios aparecem de duas maneiras na teoria da Dança. Ora o espaço e o tempo aparecem como fatores que se articulam para dar forma ao movimento, ora se conjugam com o próprio movimento para formar, juntamente com a forma e dinâmica, os elementos que constituem a dança do ponto de vista coreográfico.

Seguindo a abordagem de Laban, o movimento pode ser entendido por meio das ciências corêutica e eucinética. A eucinética, teoria e estudo da qualidade do movimento, têm o Espaço e o Tempo como os fatores constituintes do movimento, juntamente como a Fluência e o Peso. Esses quatro fatores são ilustrados por Laban no gráfico Effort-shape, onde podemos ver as nuances desses elementos. O espaço pode estar definido em um movimento de maneira direta ou indireta, enquanto o peso varia entre o leve e o firme. A fluência tem como extremos a fluência livre e a fluência controlada. E, finalmente, o tempo varia entre o rápido e o lento.

Von Laban faz entrar em jogo uma noção central na sua teoria do movimento: o esforço. Define impulso interior na origem de todo o movimento, dançado ou não dançado. Quando se trata de dança, o esforço contém “qualidades” – tais como o peso, o tempo, o espaço e o fluxo, que variam em quantidade e em intensidade, de tal modo que traçado o quadro das suas combinações possíveis, se obtém diversos esforços que dão, de fato, a forma do movimento [GIL, 2004: 15].

As combinações desses fatores determinam a qualidade e expressão do movimento e as possibilidades desse movimento no espaço (corêutica) completam seu sentido. Ora, se o movimento é realizado a partir de um impulso interior, pressupõe a relação do atuante com sua vida interior; e se, por outro lado, acontece num “espaço vivido”, onde o corpo “é” no espaço, e não simplesmente “está”, isso abrange as relações interpessoais, quer dizer, colegas e público. Parece-me que estamos diante do que descreve Peter Brook, quando afirma que teatro requer vínculos do ator com sua vida interior; com seus colegas e com o público. As três linhas de ação/relação que conectam o atuante com o espaço e ao momento da cena. A organicidade na cena refere-se à concomitância dessas linhas que representam, em um plano aproximado, o Estado Cênico. Este estado solicita, do atuante, relações multidimensionais que, embora possam ser discutidas e estudadas separadamente, são correlacionadas.

É sabido e defendido por muitos – como Antonin Artaud – que para que a ação teatral possa ser esboçada, são fundamentais três elementos: o espaço vazio, o espectador e o ator.  Durante o mestrado, a minha interpretação sobre isso era um pouco equivocada, vista de novos parâmetros ou até paradigmas do corpo em arte. Conforme consta em minha dissertação de mestrado - “O espectador é, no caso, o receptor, aquele que recebe, degusta, digere, interpreta. E o artista o emissor, aquele que doa”.  Provavelmente eu estivesse vendo o fato somente do ponto de vista da ação, e não do acontecimento – que se realiza pela relação, quer seja a relação consigo mesmo, com o outro ator (ou atores) e com o público. E assim, iludi-me com a imagem do atuante como um privilegiado “poderoso”, que faz caridade.

A noção do atuante como doador me levou a inferir que corpo cotidiano deveria ser superado para alcançar o corpo cênico, pois o atuante não deveria doar seu corpo rotineiro, deveria ser mais instigante: “o artista precisa construir um corpo capaz de se projetar e expandir no tempo e no espaço”. O que não é de todo falso mas, revendo meu trabalho, percebo que a criação artística por meio da “construção do corpo cênico” (defendida na dissertação de mestrado), o corpo cotidiano ou, simplesmente, o corpo, não deve ser entendido como algo distinto ou oposto ao corpo-em-arte. Pois, como dimensão fundamental do homem, é a primeira contingência que define a facticidade do ser: “Eu tenho um corpo que sou e sou um corpo que tenho”, sintetiza Silvana Venâncio [2001: 77]:

Desta forma, este não seria apenas um corpo colocado em situações normais do dia a dia, que tende à automatização, à acomodação, vistas como fraquezas. Este corpo deve ser visto como o fez Maurice Merleau-Ponty [1999: 177], quando o compara com uma obra de arte:

Um romance, um poema, um quadro, um trecho de uma música são indivíduos, isto é, seres em que não se pode distinguir a expressão do exprimido, cujo sentido só é acessível por um contato direto e que irradiam sua significação sem abandonar seu lugar espacial e temporal. É nesse sentido que o corpo é comparável a uma obra de arte. Ele é um nó significados vivos e não a lei de certo número de termos covariantes.

Por outro lado é, sim, um corpo que está condicionado pela cultura, mas que não é, somente, um refém da estrutura de poder, que precisa ser renegado ou mesmo superado para atingir status de arte. Este é um corpo que não só é expressão de cultura, como também produz cultura. Que cria e recria a capoeira, o jongo, o cavalo-marinho. É o corpo do Seu Firmino, que de dia trabalha na feira e de noite faz sambada de cavalo-marinho. Quem há de lhe negar atributos artísticos (forma, técnica, poética, expressividade e organicidade)? Vale lembrar que, na situação contemporânea, a arte se desloca para o campo alargado da cultura, como reafirma Norval Baitello Jr. [1999: 18]:

“Breve é a vida”, o homem, o ser biológico, que inevitavelmente é levado um dia pela morte, a mais implacável componente do percurso vital; “longa é a arte”, aquela que, criada pelo mortal, tem finalidade de vencer a morte, de sobreviver aos tempos e, com isto, imortalizar seu criador. E o consegue. A criação humana, assim entendo a palavra arte usada por Hipócrates, desafia e vence não apenas a morte, mas todas as dificuldades e os limites impostos pela breve vida, desafia e vence as doenças, o envelhecimento, o tempo, a natureza hostil. Seu mais eficaz e abrangente instrumento são os símbolos. Seu universo hoje não se chama arte, terreno específico onde se deve manifestar a mais pura e irrestrita criatividade humana, mas deve ser mais atualizadamente denominado “cultura”.

Na sambada, Seu Firmino assume um corpo cênico – o seu próprio corpo (de feirante, pernambucano, caboclo ou mulato, que se move de determinado modo...) em Estado Cênico. Um Ser corpo em Estado Cênico, onde o Estado gera o corpo e o corpo gera o Estado.    

Mas, neste caso, o que seria mais apropriado: corpo cênico ou corpo-subjétil? Ora, uma estante pode ser cênica, um vaso de flor ou um corpo morto no palco podem ser considerados cênicos.

Na dissertação de mestrado defendi o corpo cênico como aquele construído de um processo, no qual a técnica extra-cotidiana não age no sentido de anular o corpo já existente; pois na Dança Brasileira Contemporânea não é preciso negar o próprio corpo para se atingir formas idealizadas, o que se tem é o que se é e a metamorfose acontece a partir daí. Pois a técnica extra-coditiana age no sentido de “enaltecer”, de colocar o corpo que se tem e que se é em uma outra dimensão. Sob esse ponto de vista, o corpo cênico seria, então, o que entremeia o artista cênico e o espectador, obra inacabada que cria uma realidade em moção (emoção). É a vida que habita e significa a cena por sua presentação[1].

Embora não tenha abandonado e nem pretenda negar esta visão sobre o corpo cênico, a aproximação com os estudos sistematizados de Renato Ferracini sobre os aspectos orgânicos na dramaturgia do ator, levou-me ao entendimento do “corpo subjétil” como uma condensação do pensamento construído sobre o corpo cênico.

Muito embora eu já visualizasse, na concepção de corpo cênico, certa “dinâmica” constituída numa “esfera de jogo,” que envolve o atuante e o ato, não tinha pensado nesse corpo como um corpo nômade, formado em um processo de devir, conforme esclarece Ferracini [2004: 64]:

Numa reterritorialização do corpo cotidiano desterritorializado: o corpo cotidiano é o território primeiro do corpo-subjétil. O corpo-subjétil é um território criado a cada instante na própria desterritorialização do corpo cotidiano que se quer desterritorializar. 

O corpo-subjétil ocupa um espaço “entre” objetividade – subjetividade que, ao transbordar e vetorizar o corpo cotidiano, gera uma justaposição entre criador e obra, já que corpo cotidiano e corpo-subjétil são um só e mesmo corpo, conforme esclarece o autor, acrescentando que essa justaposição acaba fundindo uma complexa semiótica de signos poéticos, sociais, pessoais e passionais, todos em relação.

Não obstante, é importante deixar claro que substituir o “corpo cênico” discutido no mestrado, pelo “corpo–subjétil”, não é apenas uma questão de terminologia. O “corpo-subjetil”, além de se reportar diretamente ao trabalho do atuante em cena, resolve a dicotomia corpo cotidiano x corpo extra-cotidiano que, por descuido, deixei transparecer na dissertação de mestrado. Pois, conforme explica Ferracini [2004: 59]:

[...] O corpo-subjétil não é um termo dualista, ou mais um comportamento corpóreo criado em zonas intermediárias entre o corpo cotidiano e o corpo-em-arte, mas é um conceito vetorial. O corpo-subjétil é uma espécie de vetorização e transbordamento do corpo cotidiano em direção ao uso artístico desse mesmo corpo.

Sob esse prisma, gerar um corpo-subjétil seria a capacidade do atuante em usar a pulsão de vida de seu próprio corpo cotidiano insuflando, imprimindo organicidade a esse mesmo corpo quando em Estado Cênico.

No momento/ lugar do Estado Cênico, em que o corpo-subjétil é criado, presentifica-se a tal teia de relações, da qual participa não somente o atuante, mas também o espectador, conforme já havia exposto anteriormente. A essa teia, Gil [2004], profundamente influenciado pelo pensamento de Deleuze & Gatarri, dá o nome de “Plano de Imanência”.

Quando assistimos uma evolução de dança, que nos parece envolvente, não enxergamos apenas o atuante em movimentos puramente mecânicos, do tipo levantar o braço, cair e saltar… Essas ações são envolvidas por uma segunda realidade, constituída, entre outros fatores, pela capacidade do atuante de realizar a ação com todo o seu ser corpo, em pleno domínio do movimento, lembrando que isto implica na ação do corpo em relação ao movimento (impulso) e em sua relação com o espaço, isto é, o “corpo próprio” no “espaço vivido”.

O autor, citando o Susane Langer esclarece o conceito:

“A dança é o surgimento de uma presença (an appearance); se quiserem, uma aparição. Rompe daquilo que os bailarinos fazem, mas é qualquer coisa a mais. Ao olharmos uma dança não vemos o que esta fisicamente a nossa frente – pessoas que dão voltas a correr ou contorcendo os corpos - aquilo que vemos é o desdobramento de forças que interagem e graças às quais a dança parece elevar-se, ser transportada, atraída, concluir-se ou diluir-se, quer se trate de um solo ou de um grupo, rodopiando como o final de uma dança dos derviches-bailadores, ou decorrendo lenta, centrada e única só seu movimento. Um corpo humano pos o jogo inteiro dos seus poderes misteriosos diante de nos. Mas estes poderes, estas forças que parecem em ação na dança, não são as forças físicas dos músculos do bailarino, as quais são de fato a causa de tais movimentos. As forças que julgamos perceber da maneira mais direta e convincente são criadas para a nossa percepção; e não existem senão para ela. [...] o que existe unicamente por nossa percepção, e não desempenha qualquer papel comum e passivo na natureza, como os objetos fazem, é uma entidade virtual. Não é o irreal: onde quer que sejamos confrontados com ela, percebemo-la realmente, não sonhamos ou imaginamos que a percebemos” [LANGER apud GIL, 2004: 42].

Essa “imagem dinâmica” que José Gil chamou de “Plano de Imanência”, parece-me a própria “Zona de Turbulência”, defendida por Ferracini [2004:138]:

É um transbordamento de seu próprio corpo cotidiano, linha de fuga de seu plano de organização. Portanto, ao mesmo tempo em que o ator, em Estado Cênico, está vivenciando uma absoluta condição de criação, entrega e diluição de seu corpo nessa zona intensiva, tudo também se encontra em uma condição de completa “consciência” desse próprio estado de criação, do outro ator, do público e do espaço. Isso significa que, para mim, enquanto ator, ao mesmo tempo em que minhas ações e estados afetam o espaço e o outro (ator ou público) esse mesmo outro (ator ou público) e o espaço também me afetam, fazendo com que desvios, lanças, setas, buracos, modificações e recriações de minhas ações e estados sejam alterados, redimensionados algumas vezes de maneira microscópica, outras vezes de forma macroscópica, dentro do próprio Estado Cênico. A essa zona que está “entre” minhas ações físicas, matrizes, estados, o espaço, o outro ator e o público e que afeta e é afetada chamo de Zona de Turbulência. 

Em verdade, no âmbito desta pesquisa, o objeto de estudo não é o “Estado Cênico”, o “Plano de Imanência” ou a “Zona de Turbulência”, propriamente ditos mas, sim, o objetivar desse estado, o “antes” que determina o durante. Poderia utilizar a denominação “pré-expressivo”, mas creio que pareceria ambíguo ignorar o fato do “corpo ser expressão de cultura” ao utilizar, como temática, a corporeidade em manifestações populares. Parece-me que o corpo, visto de um ponto de vista antropológico ou mesmo semiótico, nunca deixa de expressar. Poderia então, tratar como o próprio “processo criativo”. No entanto, minha preocupação está localizada ainda mais no interior dessa questão. Sabemos que a criatividade depende, em termos, de espontaneidade mas, quando se trata do objeto artístico, entra em questão a técnica e seus procedimentos que, neste estudo, se referem à construção do corpo subjétil em Dança Brasileira Contemporânea. Mais especificamente: ao caminho por meio da cultura popular para se construir um corpo subjétil.

Chegar à luz desse caminho, isto é, do processo e de como aplicá-lo, depende, em primeira instância, da elaboração ou seleção de um treinamento apropriado. Entendendo que é no treinamento que a possibilidade do corpo subjétil se consolida, na medida em que esta prática direcionada possibilita o aumento do grau de complexidade do corpo e de sua percepção, sendo ele um arquivo de técnicas corpóreas e de auto-avaliação de recursos expressivos.  Esse é o entendimento de Luis Otávio Burnier (2001:171):

Tendo por objetivo a preparação do ator, o treinamento explora suas capacidades e trabalha suas dificuldades, alargando seu léxico, dilatando seu corpo e abrindo os caminhos para o fluir de suas energias potenciais. Desta forma delineia todo o que e como fazer.

Os treinamentos são os próprios processos de educação, que consistem numa “adaptação do corpo ao uso deles” (Marcel Mauss, 1992: 472). Tendo isto em vista, buscaremos o treinamento, que prefiro chamar de preparação, como uma prática de aprendizado, que possibilite ao atuante a “consciência do corpo”.

No início do século XX, Deslsarte já falava do corpo de um ponto de vista somático, isto é, da não dissociação corpo-mente-espírito, e esse pensamento reverberava na dança, e a partir daí aconteceram importantes transformações históricas. Deste modo, seria “chover no molhado” reivindicar a integração do corpo, depois do advento da dança moderna e, mais contemporaneamente, a marcada penetração da fenomenologia no pensamento sobre o corpo na arte. Conforme comenta Gil [2004: 55].

A fenomemonlogia teve o mérito de considerar o corpo no mundo. Não se trata de uma perspectiva terapêutica (embora tenha dado origem a toda uma escola psiquiátrica), mas do estudo do papel do “corpo próprio” na constituição do sentido. A noção de corpo próprio compreende ao mesmo tempo o corpo percebido e o corpo vivido, em suma, o corpo sensível, a “carne” de Husserl, de Merleau-Ponty e Erwin Strauss.

Merleau-Ponty, Damásio, Espinosa, Nietzsche, entusiastas da educação somática… Muitas são as contribuições para a compreensão do corpo, não como um instrumento de manipulação da mente, mas como a própria possibilidade de existência – de ser e estar no mundo, aqui e agora.  Assim, está suposto ser este o corpo de que se fala em “consciência do corpo”.

A “consciência do corpo” na dança, como o conceitua Gil (2004), é o que condiciona o próprio destino do movimento, transformando-o em movimento dançado, porque é a consciência do corpo que tece o plano de movimento próprio da dança, o Plano de Imanência da dança. O autor constrói tal argumentação, considerando que

[...] a arte do bailarino consiste (assim) em construir um máximo de instabilidade, em desarticular as articulações, em segmentar os movimentos, em separar os membros e os órgãos a fim de poder reconstruir um sistema de um equilíbrio infinitamente delicado – uma espécie de caixa de ressonância ou amplificador dos movimentos microscópicos do corpo: esse, nomeadamente sinestésicas, sobre os quais a consciência não pode ter controle a não ser se concentrando-se neles. Então, o corpo solta-se e a consciência do corpo torna-se um espaço interior percorrido por movimentos que refletem à escala macroscópica, os movimentos sutis que atravessam os órgãos [GIL, 2004: 23].

Trata-se, então, da relação dinâmica do impulso/movimento/espaço, da fina percepção da ação que acontece no corpo, com o corpo, no espaço. Não é o ato de pensar voluntariamente o movimento; diferente disso, é o próprio sentido do movimento. “Sentido” entendido como sentir (sensações) e, também, significar. Pois essa percepção sinestésica refere-se ao movimento dançado, que se supõe estar impregnada de técnica, forma e poética. Pois a “consciência do corpo” engendra o Plano de Imanência, onde o sentido desposa imediatamente o movimento. A dança não exprime, portanto o sentido; ela é o sentido porque é o movimento do sentido (GIL, 2004: 72).

Eis a importância dos estudos Labanianos para formação de uma consciência do corpo, pois o “sentido do movimento” é constituído pelas combinações de qualidades e intensidades de movimento  na sua relação com o espaço (níveis, planos, projeções, cinesferas etc.), e que não é apenas o exterior do corpo, é a própria condição do movimento.

A consciência do corpo é condição sine qua non para o corpo subjétil. Ora, não seria o corpo subjétil o próprio Plano de Imanência em estado primitivo? Como se fosse a chama de um palito de fósforo que aciona uma fogueira, pois a chama da fogueira é a própria chama do palito de fósforo. A consciência do corpo seria, então, um estado que envolve a mobilização do corpo em seu sentido pleno, capaz de gerar o movimento, como um próprio pensamento do corpo é o estado de percepção e domínio do movimento do atuante para gerar o corpo subjétil – a pequena chama que aciona a fogueira do Plano de Imanência.

Mas, e o que gera a pequena chama em sua concretude?

Tendo em vista que o corpo-subjétil é uma potência do corpo cotidiano, o primeiro deverá ser construído a partir do transbordamento do segundo, em um espaço de pressionamento, estudo e, sobretudo, de conscientização e aprendizado. Conforme também compreende Ferracini [2004]:

[...] Portanto, precisamos criar um espaço de pressionamento e de pesquisa para procurar, no corpo cotidiano organizado e territorializado, pequenas linhas de fuga e pontos de respiro das doxas, para, depois de encontradas essas linhas, possam ser elas codificadas e passíveis de recriação no momento do Estado Cênico.

Este espaço de pressionamento, por vezes chamado de pré-expressivo ou treinamento, é o que chamarei de preparação, pois esse termo me parece estar mais aproximado da idéia de aprendizagem. Enquanto treinamento sugere condicionamento.  Não que o atuante não esteja sujeito a formas de condicionamento, mas isso não acontece como no esporte, onde existe um ideal a ser perseguido, com padrão e rendimento.  Nado borboleta é nado borboleta e pronto, acabou, não existe a possibilidade de – o meu nado borboleta!  Usei o esporte somente a título de exemplo, pois é onde o termo treinamento é largamente utilizado, mas esse tipo de condicionamento também é explorado em algumas linguagens artísticas, como o ballet, algumas danças tradicionais e o circo.  No entanto, não é o caso da Dança Brasileira Contemporânea, pelo menos não no modo como concebo e abordo no âmbito dessa pesquisa.

A meu ver, a preparação em Dança Brasileira Contemporânea deve estar a serviço do desenvolvimento do “domínio do movimento”, isto é, o uso consciente do movimento em suas possibilidades espaciais e eucinéticas. Da geração de uma “consciência de corpo” na qual o atuante tenha autonomia para o trabalho de criação e, neste caso, suporte técnico propulsionado por motivos da cultura popular. É menos importante o quanto se pode erguer a perna ou quantas piruetas se é capaz de fazer, em relação ao seu potencial de expressão cênica, aliada a um pleno domínio das possibilidade de realização e criação das ações corporais.

O atuante não é obrigado a abandonar a sua espontaneidade, o que lhe é “natural”, segundo um comportamento que ele absorveu desde o seu nascimento na cultura e no meio social a que ele pertence” [cf. Eugênio Barba, 1995: 29].  A ampliação de seu repertório e da complexidade das ações acontecem a partir de si mesmo, do auto conhecimento, de um estudo sistematizado e minucioso do corpo.

O trabalho de desenvolvimento técnico, visto dessa perspectiva, permite, além do desenvolvimento técnico, mecânico, e expressivo, o aprimoramento da capacidade criativa e intelectual do atuante. Permitindo, assim, uma maior flexibilidade para se transitar entre diferentes linguagens, sendo essa uma importante chave da transdisciplinaridade e atendimento às novas demandas de hibridismo cultural e do teatro pós-dramático,  assinalando questões relacionadas à “identidade popular” por meio da corporeidade.

E quanto ao Seu Firmino? Aquele feirante, lembra?! Afinal, toda essa discussão começou por causa dele: “... É o corpo (cotidiano) do Seu Firmino, que de dia trabalha na feira e de noite faz sambada de cavalo-marinho, quem há lhe negar atributos artísticos – forma, técnica, poética, expressividade e organicidade”.

A questão era: se o corpo cênico que Seu Firmino assume no momento da performance [2], seria também um corpo-subjétil.        

Quem já se deixou afetar por uma sambada de cavalo-marinho, uma roda de tambor de crioula ou jongo, não há de negar que uma Zona de Turbulência se estabelece. Ora, se existe uma Zona de Turbulência, ela também existe em seu estado primitivo, que passa por um estado de “consciência do corpo” de seus participantes, como o Seu Firmino, em relação, senão com o público, com os participantes secundários do evento (zona de vizinhança). Pois, conforme afirma Ferracini (2004), a “Zona de Turbulência é a esfera que está entre ações corporais, matrizes, estados, o espaço, outros atuantes e o público, e que afeta e é afetada”.  E se, por fim, considerarmos que a Zona de Turbulência somente poderá ser gerada a partir de um corpo-subjétil, posso chegar a concluir que Seu Firmino assume um corpo-subjétil no Estado Cênico.

Agora veja você como são as coisas: a gente faz faculdade, faz energético, treinamento disso e daquilo, tudo em busca dessa tal “vida” que habita e significa o Estado Cênico. Já o Seu Firmino, chega lá… e tudo acontece.

Brincadeiras à parte, não há dúvida que o Seu Firmino, personagem fictício dessa história, teve, ao longo de sua vida, vivências significativas que, no momento da sambada, se atualizam.  Entendendo essa atualização como a vinda de uma memória virtual ao presente em um processo de (re) criação. 

Além do mais, as manifestações de cunho ritualístico são caracterizadas pela “expansão do corpo, que sobrepõe aos elementos cristalizados no cotidiano as forças da criação, atualizando o universo de experiência dos participantes através da manipulação do corpo e dos elementos estéticos e simbólicos” (NÉSPOLI, 2004: 11).

Por tal premissa, confirmo a hipótese que venho defendendo desde o mestrado: que na cultura popular se encontra valioso reservatório de simbologias e recursos técnicos e poéticos que podem ser transpostos para a dança cênica, valorando traços da identidade cultural e oferecendo um caminho para se pensar a organicidade na dança.

Organicidade?! Falei de Estado Cênico, Plano de Imanência e Zona de Turbulência, Corpo-subjétil, Consciência do corpo e Preparação e parece que tudo isso foi apenas para chegar nesse ponto: a “organicidade”. Por que é esse o caminho pelo qual se chega a um corpo-subéjtil e, como não poderia deixar de ser, ao corpo-subjétil que, acredito, deva habitar a Dança Brasileira Contemporânea – como expressão artística hibrida, fruto do diálogo criador entre elementos da cultura popular brasileira e a dança contemporânea.

A organicidade como uma força produzida pelo atuante, a partir da sua “consciência do corpo” e que, por sua vez, gera o corpo-subjétil. A organicidade como a própria linha de fuga do corpo-cotidiano no sentido do corpo-em-arte.  E se a organicidade gera o corpo-subjétil, também é responsável por manter o Plano de Imanência, aproximando os elementos que a constituem:

A organicidade, aglutinando os vários elementos que compõe o corpo-subjétil em relação dinâmica (pois a organicidade é intrínseca ao corpo-subjétil) acaba pressionando-o a suspender e arrancar do próprio tempo e do próprio espaço um tempo-espaço outro: um tempo não cronológico, mas um acontecimento; um espaço não linear, mas multidimensional. Um tempo-acontecimento que, por mais fugaz e efêmero que seja, dura, perdura e ecoa porque afeta e é afetado. Esse tempo-acontecimento se auto-gera nos elementos que habitam o território “entre” orgânico e inorgânico, que é, portanto, comum aos dois [FERRACINI, 2004: 71].

Então, se a organicidade é o caminho pelo qual se chega ao corpo-subjétil, chegar ao corpo-subjétil depende do estudo da organicidade. Todavia, como já alerta o mesmo autor, essa força não é algo “inato” e nem que se adquire por ensinamento. Porém, a “consciência do corpo”, que é responsável pela organicidade, se adquire em um processo de aprendizagem, sim! Como toda e qualquer consciência de alguma coisa, no caso, a “consciência do corpo,” é uma construção de sentidos sinestésicas. 

E como adquirir essa “consciência de corpo” para gerar organicidade? Ora, se organicidade é a força gerada pela “consciência do corpo” e geradora do corpo-subjétil, que por sua vez é uma atualização de vivências, chega-se a uma “consciência do corpo” pelas próprias vivências.

Então, a Preparação – como dilatador da potência subjétil do corpo cotidiano – é, na verdade, o experienciar de vivências. 

Vivências como as que Seu Firmino atualiza na vadiação, gerando um corpo-subjétil.  Só que no caso do velho feirante, as suas vivências estão no seu cotidiano, no trabalho na feira, na religião, no encontro com os amigos e os mais velhos, pois nas manifestações populares a organicidade é a própria força da tradição. 

Mestre Plínio, do grupo Angoleiro Sim Sinhô, freqüentemente, nos treinos de capoeira, narra como compreendeu, em sua estadia na Ilha de Itaparica, como os velhos capoeiristas jogam “tanta capoeira” (em termos de qualidade de jogo) sem treinar. O segredo está no modo de equilibrar e remar o barco, em esperar o peixe, no descansar acocorado etc.

Já no caso do artista cênico, que deve justamente transbordar o corpo cotidiano e pressionar o corpo-subjétil, essas vivências estão ao longo de sua formação e na Preparação. Deste modo, pensar uma metodologia de processo de criação em DANÇA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA, ou seja, em procedimentos para se gerar o corpo-subjétil considerando elementos da cultura popular é, na verdade, pensar em vivências que propiciem o exercício da organicidade subsidiada por aspectos da corporeidade em manifestações populares.

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Notas:

[1] Segundo Matteo Bonfitto, os processos e procedimentos que não são imediatamente reconhecíveis como patrimônio de códigos e convenções culturais (personagens) os quais comportam, portanto um grau significativo de “auto-referencialidade”, serão considerados como constitutivos da esfera de “presentação”.

[2] A expressão “performance cultural” foi cunhada por Milton Singer a partir de 1959, quando foi usada primeiramente em uma coletânea de ensaios sobre a cultura da Índia. Singer sugere que os elementos da tradição são transmitidos através de eventos performativos, que são modos de exibir os componentes que estruturam a própria cultura. Tais performances seriam da ordem de uma temporalização diferenciada do cotidiano, sendo estruturado segundo uma ordenação do acontecimento, um programa que pode ser comparado a um script teatral. Compreenderiam, deste modo, eventos em que atores e audiência encontram-se interligados pelos fluxos de transmissão e recepção de estruturas simbólicas, podendo ser compreendidos, portanto,como experiências concretas (Carlson: 1996: 16 in Néspoli, 2004: 2).

 

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