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Reflexões sobre a Formação Inicial de Professores em Artes Visuais
Autora:
Jociele Lampert[1] - jocielelampert@uol.com.br

Resumo: O artigo esboça reflexões sobre a formação inicial de professores em Artes Visuais, partindo do relato de vivência da pesquisadora no Ensino Superior. Assim, a docência pode ser reconhecida como um campo de conhecimento específico configurando conteúdos de diversas áreas de saber e do ensino; configurando conteúdos didáticos/pedagógicos; conteúdos ligados a saberes mais amplos do campo teórico da prática educacional e conteúdos inter-relacionados à explicação do sentido da existência humana.

Palavras-chave: Educação; Artes Visuais; Prática Educativa.

Abstract: This article illustrates reflections about the teacher’s initial formation in Visual Arts coming from the searcher’s experience in Higher Education. Thus, the educators recognize themselves as a field of specific knowledge configuring the content of several fields of knowledge and the teaching; configuring didactic-pedagogical contents; contents linked to a larger experience of the theoretical field of educational practice, and contents interrelated with the explanation of the human existence sense.

Key-words: Education; Visual Arts; Educational Practice.

Este texto faz menção à ação de 26 de novembro de 1965, realizada pelo artista visual Joseph Beuys, intitulada “como se explicam quadros a uma lebre morta”. Com a cabeça besuntada de mel e folhas de ouro, Beuys adentrou uma exposição de pintura, falando com uma lebre morta em seus braços – o publico fora excluído de sua performance apenas, podendo observar pela janela a ação. Há inúmeras interpretações pertinentes para esta obra/ação. Pergunto-me: as lebres entendem melhor que as pessoas? Quem ou o quê seria esta lebre? Porque explicar quadros a uma lebre morta? Bem, uma lebre morta não escutaria realmente o que o artista estava falando, então qual é a metáfora?

Um possível viés é a idéia de que todos nós seriamos um pouco da lebre morta. Quando passamos por imagens e não a olhamos, ou nem mesmo percebemos, quando folhamos revistas sem compromisso, quando andamos na rua e passamos pelas pessoas sem as verem realmente, quando ligamos a TV e vamos fazer outras atividades, depois de um dia extenuante de trabalho, quando fingimos escutar atentamente a uma conversa e estamos pensando em outras coisas... Chego à conclusão de que todos nós somos, ou temos, um pouco daquela lebre morta!

Por outro lado, vestimos o personagem/figura do artista a todo o instante: quando indagamos perguntas que muitas vezes não têm respostas ou quando prestamos atenção em algo que parece desinteressante para a maioria das outras pessoas. Quando eu estou dando aula e vejo o olhar vazio de alguns estudantes, sempre lembro da performance de Beuys. Como fazer para explicar algo, a alguém que aparentemente não quer ou não pode entender?! Em meu vão esforço como professora, faço tessituras para ressuscitar a lebre morta, sabendo que mais depende dela querer ser ressuscitada do que eu poder fazer isto – então, não haverá saída para a lebre morta?

Penso que a vida é feita de escolhas, sabemos que estas escolhas demandam mudanças, no entanto, muitas vezes não conseguimos viver com nossas escolhas e muito menos, com as mudanças. Penso que a formação inicial do professor de Artes Visuais, assim como a vida cotidiana do professor na Escola, se parece muito com a metáfora proposta pela obra de Beuys.

Há cinco anos optei pela docência no ensino superior e desde então, venho trabalhando na formação inicial em Artes Visuais e nos dois últimos anos, exerço a função de coordenadora de estágios do Centro de Artes da Universidade onde trabalho. Sou artista visual e pesquisadora há quase dez anos e ainda não consigo acostumar-me (creio que isto será impossível), com algumas situações peculiares à docência:

 - alunos de Licenciatura que execram a Educação maldizendo os estudantes das escolas onde serão futuros professores;

 - alunos de Licenciatura que se queixam de seus cursos de formação inicial, ou da estrutura curricular de seus cursos universitários, passando por estes apenas com poucas horas de estudos e rasas leituras, porque priorizam o trabalho para seu sustento;

 - alunos de Licenciatura que não conseguem perceber nenhum processo criativo na docência, reduzindo-a a um mero instrumento ou procedimento. Estes alunos geralmente, são aqueles que não conseguem vincular teoria e prática;

 - alunos de Licenciatura em Artes Visuais que insistem em reduzir as aulas de Artes Visuais na escola em técnicas isoladas, aulas expositivas de História da Arte (cronologicamente correta), ou provas sem finalidade alguma ao ensino;

Também não consigo conviver com alguns discursos oriundos da Escola. Refiro-me explicitamente aquele discurso do professor da Escola:

“ – Meus alunos não entendem nada, eles não estão nem aí para a escola, só querem saber dessas bobagens de jovens;”

Ou então, quando um estagiário vai observar um professor que está a muitos anos na escola e volta profundamente ofendido por te ouvido:

 “ – Eu já fui como você, hoje já não tenho mais ilusão, aqui nada funciona!”

 Ou ainda, quando presencio em inúmeros congressos da área de Educação o desinteresse pela pesquisa, da grande maioria dos professores de escolas – geralmente desiludidos com a realidade cotidiana, acostumaram-se a reclamar da situação, mas na hora da proposição em fazer algo diferenciado, negam-se pela dificuldade ou inviabilidade...

Lamento também em minha curta ‘carreira’ enquanto docente, quando ouço a negativa de alguns professores do ensino superior, (sim, alguns colegas). Já ouvi de alguns professores universitários que seria inviável realizarem trabalhos em periferias carentes. Geralmente estes, são os lugares mais necessitados do olhar do pesquisador, que acaba negando-se a olhar para a evidente pobreza. Também já me deparei com os meandros da vida política/pedagógica dentro da Universidade e me senti muito desiludida quando ouvi de uma colega ‘que pesquisador de verdade não fazia extensão para a Universidade’.

A obra/ação de Beuys sucede reflexões sobre a docência, faz tecer metáforas e pensar que somos capazes de provocar/ou mediar mudanças que farão à diferença, de forma diferente. No entanto, é preciso não acomodar-se em sentimentos individualistas, mas sim buscar uma Educação de sentido plural (Beuys, além de artista, foi professor também).

Sobre os saberes docentes e o lugar do estágio na Licenciatura em Artes Visuais

Referente aos saberes docentes, Clermont Gauthier [1998], diz que não basta apenas conhecer o conteúdo, ter talento, usar o bom senso, seguir a intuição, ter experiência ou cultura. Um ofício feito de saberes concebe um sentido muito mais amplo, concebendo assim, um reservatório de saberes: saber disciplinar, saber curricular, saber da ciência da Educação, saber da tradição pedagógica, saber experiencial e saber da ação pedagógica. Para Pimenta [2000], os saberes pedagógicos perpassa um entrelaçamento entre a experiência, o conhecimento e as necessidades pedagógicas postas pela realidade da educação.

Ao confrontar as ações práticas do cotidiano com produções teóricas, é necessário que haja transformações efetivas (e afetivas), sobre a consciência que se tem da própria prática educativa. O professor é um sujeito transformador de realidades sociais e culturais, porém nem sempre na prática esta transformação da sociedade (tão almejada), é alcançada. Baixos salários, alta carga horária, falta de estímulo e incentivo na produção intelectual, aumento do índice de violência nas escolas...

Nos cursos de formação inicial de professores, não é raro encontrar os discursos sobre os baixos salários e a defasagem da docência. Então me pergunto por que os jovens que tem este discurso como retórico escolhem ser professores?

Muitos destes jovens chegam até o curso de Licenciatura esperando por um curso de bacharelado (sim, isto ainda é recorrente mesmo com toda a alteração de carga horária nos cursos de formação de professores, afim de que seja trabalhada uma identidade docente); são egressos que sabem da realidade social do professor (me refiro aos baixos salários e o aumento da violência na sociedade); alunos que muitas vezes optam por Licenciatura, porque pensam ser menos concorrida nas portas do vestibular (seria uma forma fácil de entrar na Universidade).

Tendo em vista esse contexto, acrescido das dificuldades de articulação entre teoria e prática, tem-se um aluno de Licenciatura, aqui especificamente da Licenciatura em Artes Visuais sem a consciência e a capacitação da profissão. Pensa-se que talvez, uma das formas de minimizar a problemática do “ser professor ou tornar-se professor”, esteja diretamente ligada ao estágio curricular supervisionado [LAMPERT, 2005; OLIVEIRA, 2005].

É na prática educativa do Estágio Curricular que a identidade docente é construída, por isto o estágio deve ser pensado e articulado no currículo como eixo central das disciplinas pedagógicas. Isto só acontece quando há um currículo pensado de acordo com seu contexto (sabendo que cada realidade é diferente), e quando há um corpo de professores que estruturem a construção do conhecimento que não seja fragmentada em disciplinas isoladamente específicas ou meramente técnicas.

É extremamente complexo articular teoria e prática, assim como o contexto e o conteúdo. Zabala [1998], aponta a seguinte tipologia dos conteúdos, para que se pense nas formas de conteúdo e aprendizagens possíveis:

CONTEÚDOS FACTUAIS: são aqueles conteúdos relativos a fatos que aconteceram em determinado período da História da Arte, situações, localização de um povo, período, etc. Seu caráter é descritivo e concreto. Por exemplo, data de nascimento de um artista, seu nome, período e estilo que se relaciona. REPETIÇÃO VERBAL.

CONTEÚDOS DE CONCEITOS E PRINCÍPIOS: são abstratos. São aqueles que exigem a nossa compreensão, o nosso posicionamento. Estabelecer relações com outros fatos, situações ou objetos. Precisamos entender o significado. Há compreensão destes conteúdos quando o aluno é capaz de utilizá-lo para a interpretação de um outro fato/situação. Por exemplo, diferenciar um movimento artístico de outro, estabelecer diferenças. Uma das características dos conteúdos conceituais é que aprendizagem quase nunca pode ser considerada acabada. Sempre há possibilidade de ampliá-lo, de estabelecer novas relações e encontrar outros conceitos. COMPREENSÃO.

CONTEÚDOS PROCEDIMENTAIS: são aqueles que funcionam como um conjunto de ações ordenadas para atingir um objetivo. São conteúdos procedimentais: ler, desenhar, observar, classificar, analisar... Neste caso, a compreensão deste conteúdo se dará pela experiência, pelo ato de realizá-lo. Por exemplo, colocar-se na situação de um determinado momento histórico e vivenciar situações semelhantes, experimentar situações aproximadas, buscando entender aquele conteúdo específico. EXPERIMENTAÇÃO.

CONTEÚDO ATITUDINAL: são aqueles relativos aos valores, atitudes, ao comportamento, padrões ou regras. Há necessidade de uma vinculação afetiva. Supõe o reflexo de imagens, de símbolos ou experiências promovidas a partir de modelos de um grupo. POSICIONAMENTO.

É necessário que o professor de Artes Visuais tenha claro qual o conteúdo de Arte irá abordar em sua aula, e qual a tipologia deste conteúdo, para que sempre se articule contexto e conteúdo. Conforme Pimenta & Lima [2004], o estágio curricular pode passar por diferentes concepções: a prática como imitação de modelos; a prática como instrumentalização técnica; o que se entende por teoria e prática; e a superação da separação entre teoria e prática (esta última somente será possível, se o estágio for tido como pesquisa propondo uma aproximação entre a realidade e a atividade teórica).

Na prática como imitação de modelos, aprende-se pela observação. Esta prática não é suficiente e apresenta limites, quando não há ponderação crítica e assim, criam-se modelos estereotipados. Esta é uma prática que caracteriza um modo tradicional de atuação docente. Ao valorizar-se uma prática modelar, há uma diminuição da perspectiva da concepção intelectual, ou seja, se reduz a atividade docente apenas a um fazer aproximado do observado.

A prática como instrumentalização técnica por sua vez, aponta para uma redução tecnicista que não dá conta do conhecimento científico e nem da complexidade da educação. Não basta saber fazer, não basta ser tecnicamente competente. A prática sem a devida reflexão esvazia-se e reforça o dito popular que “na prática a teoria é outra”.

O estágio ainda é tido como instrumentalização técnica quando em alguns casos, ou cursos universitários o estagiário é impulsionado realizar aulas de observação, participação e regência em um curto espaço de tempo – a prática educativa descontextualizada da reflexão teórica gera um conhecimento ingênuo. Nesta perspectiva, o estágio é tido como algo prático, técnicas de didáticas desconexas, preenchimentos de fichas de observação, projetos e relatórios vagos, ou ainda oficinas de material didático que na maioria das vezes, não levam a construção de conhecimento algum e sim, a mera ‘fazeção’.

Não se quer dizer que não se deva haver o exercício plástico na escola. Isto deve acontecer sim, porém de forma que possibilite um conhecimento crítico e reflexivo, um conhecimento do processo de ensino em seu todo. Neste sentido, o professor deve ter competência para desenvolver e lançar mão adequadamente das possíveis abordagens metodológicas. A forma como o próprio professor desenvolve seu exercício – isto sim poderá nomear-se de metodologia “contextualizada”, pois ela será diferente a cada turma, a cada grupo de alunos – assim costuram-se metodologias (estudo dos métodos) e suas abordagens metodológicas interfaceando teoria e prática.

A dissociação entre teoria e prática gera um empobrecimento das práticas educativas nas escolas; O estágio é uma articulação entre teoria e prática, possível do conceito da ação docente que modifique ou proponha transformações por meio de uma prática educativa.

O papel da teoria é elucidar instrumentos e esquemas para análises de investigações, que proponham questionamentos as práticas institucionalizadas e as ações dos sujeitos, ao mesmo tempo. Uma prática educativa é um traço cultural e por sua vez, compartilhado ao longo de todas as disciplinas curriculares. O estágio é o momento de superação da separação entre teoria e prática, é a aproximação da realidade e da atividade teórica; esta aproximação deverá acontecer no coletivo entre alunos e professores orientadores tendo embasamento para análises críticas. “O estágio é atividade teórica de conhecimento, fundamentação, diálogo e intervenção na realidade, esta, sim, objeto da práxis. Ou seja, é no contexto da sala de aula, da escola, do sistema de ensino e da sociedade que a práxis se dá”, Conforme aponta Pimenta e Lima [2004, p. 45].

Chega-se aí no cerne da discussão do estágio como pesquisa e na pesquisa no estágio. A pesquisa no estágio pode ser considerada como uma estratégia, ou até mesmo um método, torna-se uma possibilidade para o futuro professor. Tanto para o estagiário desenvolver problemáticas em relação a temática que estará abordando em seu estágio, quanto para a própria compreensão do campo de estágio na escola. A possibilidade efetiva da pesquisa em um curso de formação de professores torna o professor um profissional reflexivo capaz de construir conhecimento articulado e crítico [SCHÖN, 2000; NÓVOA, 1995; CONTRERAS, 1997]. Em um estágio visto como pesquisa, onde o estagiário torna-se efetivamente um professor pesquisador, que reflete criticamente sobre as ações e problemáticas apontadas pela prática educativa, supera a separação entre teoria e prática.

Referências Bibliográficas:

CONTRERAS, J. La autonomia del profesorado. Barcelona: Morata, 1997.

GAUTHIER, C. Por uma teoria da Pedagogia. Pesquisas Contemporâneas sobre o saber docente. Ijuí: Unijuí, 1998.

LAMPERT, J. “Estágio Supervisionado: andarilhando no caminho das Artes Visuais”. In: OLIVEIRA, M.O. de; HERNÁNDEZ, F. (Orgs.). A formação do professor e o ensino das Artes Visuais. Santa Maria: Editora da UFSM, 2005.

NÓVOA, A. Os Professores e sua Formação. Lisboa: Dom Quixote, 1995.

OLIVEIRA, M.O. de. “A Formação do Professor e o Ensino das Artes Visuais: o estágio curricular como campo de conhecimento”. In: OLIVEIRA, M. O de, HERNÁNDEZ, F. (Org.) A Formação do Professor e o Ensino das Artes Visuais. Santa Maria: Editora da UFSM, 2005.

PIMENTA, S.G. O estágio na formação de professores: unidade, teoria e prática. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2000.

PIMENTA, S.G.; LIMA, M.S.L. Estágio e docência. São Paulo: Cortez, 2004.

SCHÖN, D.A. Educando o Profissional Reflexivo, um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2000.

ZABALA, A. A Prática Educativa: como ensinar. Porto Alegre: Artmed, 1998.

Notas:

[1]Doutoranda em Artes Visuais pela ECA/USP; Professora efetiva CEART/UDESC; Mestre em Educação pela UFSM (2005); Bacharel e Licenciada Desenho e Plástica pela UFSM (2003). Membro do Grupo de estudo e Pesquisa em Arte, Educação e Cultura (UFSM) e do Grupo de Pesquisa Arte e Educação (UDESC), ambos Diretório CNPq.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano VI - Número 09 - Abril de 2008 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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