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Bulwer e a Dança das Mãos
Autora:
Daniela Gatti - danigatti@iar.unicamp.br  

Resumo: Este artigo apresenta os tratados do inglês John Bulwer “Chironomia: a arte da Retórica das Mãos” e “Chirologia: a Linguagem Natural das Mãos” (1644) como fontes de possíveis elementos inspiradores para uma pesquisa em dança contemporânea. Tais tratados descrevem uma grande variedade de gestos principalmente das mãos e dos dedos, que foram aplicados durante as cenas teatrais para atores e cantores barrocos do século XVII, como representações das atitudes humanas e seus afetos.

Palavras-chave: JohnBulwer, Chironomia/Chirologia, pesquisa artística e Dança contemporânea.

Abstract: This article presents two treatises from the English John Bulwer: Chironomia: The art of Manual Rethoric and Chirologia: the Natural Language of the hand as sources of elements that could possibly inspire and influence a full research on Contemporary Dance. These treatises describe a big variety of gestures using mainly the hands and fingers, which were applied during theatrical scenes for both Baroque actors and singers from the 17th century as representations of human attitudes and feelings.

Keywords: John Bulwer, Chironomia/Chirologia, artistic research and Dance.

Introdução

Este artigo reproduz uma parte do trabalho experimental em dança contemporânea decorrente da pesquisa acadêmica resultante de minha dissertação de mestrado em Artes pela Universidade Estadual de Campinas intitulada “Medeia: Um Experimento Coreográfico”. Aqui será evidenciado somente um dos elementos inspiradores do processo criativo, trabalhados durante a pesquisa da prática corporal, que nasceu da investigação da gestualidade utilizada pelos cantores/atores na Europa dos séculos XVII e XVIII, mais especificamente de um tratado de época.

Este estudo específico sobre o universo de práticas artísticas dos cantores/atores[1] do período barroco europeu, ainda pouco divulgado no Brasil, foi incitado a partir do contato estabelecido e posterior entrevista com o cantor e especialista em interpretação musical e gestual barroca, Daniel Issa[2]. Dele obtive, de forma mais detalhada, informações sobre como aqueles cantores/atores utilizavam códigos gestuais e posturais determinados para a interpretação em cena, com o intuito de expressar afetos e sentimentos que eram ditados tanto pelo texto, quanto pela música.

Daniel Issa também forneceu o nome dos principais tratadistas[3] que desenvolveram estudos com relação ao gesto, vinculados à arte da retórica daquele período, como forma de expressar e comunicar as intenções e sentimentos, servindo como referenciais para os artistas da época, apoiando todo trabalho de interpretação gestual. Assim, gestos específicos e codificados eram recomendados e utilizados para dar ênfase às palavras descritas no texto fornecendo um instrumental ao artista, para expressar, com mais veemência, os afetos e as paixões da alma.

Destes tratadistas, abordo neste artigo a obra de Jonh Bulwer (1606-1656), que descreveu um grande número de gestos, utilizados durante as cenas teatrais por atores e cantores barrocos. De Bulwer, também colhi os elementos que inspiraram as experimentações coreográficas realizadas por mim, durante a fase de pesquisa corporal da dissertação de mestrado. Esse autor publicou os tratados "Chirologia, or the Natural Language of the hand", and "Chironomia, or the Art of Normal Rhetoric", em 1644. Em ambos, Bulwer distingue o conhecimento puro do conhecimento aplicado, especificando as expressões naturais sistematizadas pela arte das mãos, dos dedos e suas representações em função das atitudes humanas e seus afetos como principal instrumento de eloqüência.

Gesto: o falar das mãos

A palavra “Gesto” dispõe hoje de uma multiplicidade de significações, sendo um conceito que perpassa nas áreas artísticas e da comunicação. Significações estas que tiveram seus princípios originários de estudos e tratados de pensadores e estudiosos desde a antiguidade.

Podemos conceituar a palavra gesto sendo definindo pela expressão dos pensamentos e sentimentos através da ação corporal. Nos dicionários da língua portuguesa, por exemplo, encontramos “Gesto” como sendo o movimento do corpo, das mãos, dos braços e da cabeça que expressam um pensamento ou sentimento; mímica; aceno; sinal; aspecto, aparência; semblante; gesticular.

Direcionado às artes cênicas, Pavis o definiu como sendo o “elemento transformador e dinâmico que permite passar lógica e temporalmente de uma para a outra situação”. (PAVIS, 1999).

Abordando o gesto numa perspectiva histórica, nota-se que a arte do gesto era um discernir sobre a natureza, segundo a visão dos antigos gregos, sendo posteriormente formalizada através dos escritores e oradores romanos. Quintiliano (35 - 96 a.C.) e Cicero foram os principais entre os primeiros escritores que gravaram os caminhos da arte do gesto para a posteridade.

Na tradição ocidental, experimentou-se através das civilizações greco-romanas, uma formulação sistemática de ações expressivas na busca de uma relação com a retórica[4] - persuasão pública através da fala e gesto. O interesse pela retórica foi desenvolvido durante todo os séculos XVII e XVIII. Quintiliano  (35 aC-95 aC)  foi quem elaborou um tratado de instruções sobre atitudes e expressões a serem utilizadas para incitar o público e, chamou  de Chironomya[5], o que deveria ser a ciência da gesticulação das mãos.

"As mãos são expressivas, os dedos são línguas, seu silêncio é clamoroso". Esta era  a “arte da gesticulação, a música silenciosa”, porque com a boca em silêncio, as mãos e certas poses dizem coisas que podem se expressar  claramente, tal qual a língua ou a palavra escrita.” (Cassiodorus apud BARBA, p.130)

Em diferentes épocas, as mãos foram focos de muitos estudos, devido a sua complexidade da estrutura anatômica e possibilidades de articulação, para desenvolver uma codificação artificial dos gestos cotidianos.

A força expressiva do gesto, tal como foi desenvolvido pelos pantomimos gregos e romanos, forneceram uma justificativa e um modelo elementar para a dança teatral contemporânea. Os mais populares imitadores (pantomimos) romanos que foram Pylades e Bathyllus, também considerados como coreógrafos, incluíram no seu repertório, centenas de mitos e fábulas, todos contados pelo movimento sem o auxílio da fala ou escrita de texto[6].

"Esses antigos coreógrafos desenvolveram fórmulas para o perfeito movimento humano como a mais eloqüente forma de representação, mas infelizmente suas técnicas foram sendo perdidas durante o decadente declínio da arte que seguiu o reino de Augustus. O que restou para os coreógrafos do século XVIII foi o conceito e intenção dos antigos pantomimos – conceito de pintar, usando somente gestos corporais ao real valor dos sentimentos e ações humanas"[7] (FOSTER,  1998)

Como a arte de falar bem nos tempos antigos era a principal forma de expressão e comunicação, a arte de dançar recorre primeiramente a esse mesmo princípio, numa intenção de traduzir corporalmente os significados que a palavra enquanto signo proporcionava[8]. Na dança  codificada através das mãos e de certas posturas corporais, os  sentimentos e as paixões poderiam ser compreendidos pelo espectador sendo cada  gesto percebido,  comunicando assim as intenções do artista.

"Tal representar seguia então certos códigos definidos arbitrariamente por atores e suas companhias, constituídos na maioria das vezes de poses e gestos que corresponderiam a determinados sentimentos e situações. Dessa forma o ator bastava reproduzir tais poses nas situações adequadas, e a personagem estava pronta". (BONFITTO, 2002, p.XVIII)

Na primeira metade do século XVII houve um grande interesse pelo gesto como tentativa de encontrar uma linguagem universal, em que todos pudessem traduzir, através da ação corporal, os afetos e os sentimentos da alma.  Neste período, a cultura européia volta-se aos textos gregos e latinos e aos conhecimentos originários das civilizações orientais, evidenciando grande interesse pela mitologia antiga reinterpretada como sendo alegorias poéticas morais, expressão dos sentimentos e paixões do indivíduo.

O pensamento grego é retomado através dos escritos de grandes filósofos como Platão (428 a.C. – 348 a.C.), Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) entre outros, recuperando concepções e ideais artísticos da Antigüidade. Para Aristóteles, por exemplo, a arte se dava a partir da imitação.  “Imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso difere dos outros animais, em ser mais capaz imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio de imitação - e todos tem o prazer de imitar” (ARISTÓTELES,1996). E ainda afirma que a tragédia é imitação, não das pessoas, mas de uma ação, da vida, da felicidade, da desventura ... Como a imitação é feita por personagens em ação, necessariamente seria uma parte da tragédia em primeiro lugar o bom arranjo do espetáculo; em segundo, o canto, e as falas, pois é com esses elementos que se realiza a imitação”. (ibid, p.36)

Referindo-se à questão da imitação, dentre as artes, a pintura serviu como a principal metáfora em discussões sobre todas as artes. Ela é a que melhor ilustrou uma racionalidade ostensiva para a arte como projeto da imitação da natureza[9].

Ainda no século XVII, a busca de uma arte total passa pelo conceito de verossimilhança, que define a questão da imitação da natureza, redesenhando a relação entre arte e aquilo que ela representa[10].

Dentro desta concepção, toda análise feita sobre os gestos neste período, foi através da pintura que, mantinha extrema relação com a retórica, atitudes pessoais e seus afetos. O inglês John Bulwer (1606-1656) foi um dos tratadistas que observou e registrou estudos dos gestos das mãos e suas expressões. Sua proposta visava à análise dos movimentos das mãos e dos dedos e suas expressões, na medida em que, afirmava ser a ação destas, a fala e linguagem geral da natureza humana (BULWER, 1974, p.xiv). Descreveu um grande número de gestos, os quais foram aplicados durante as cenas teatrais para atores e cantores barrocos.

Podemos encontrar os tratados de Bulwer numa edição de 1974 organizada, com introdução e análise realizada pelo professor James W. Cleary da Universidade de Illinois - EUA, ”CHIROLOGIA: or Natural Language of the Hand and CHIRONOMIA: or the Art of Manual Rhetoric (1644).

Cleary revela que o tratamento dado por Bulwer aos textos, enfatiza muitos pontos de expressão com exemplos, ambos de autoridade sagrada e profana, extraídos de poetas e historiadores, com o intuito de suprir o desejo de conhecimento e fornecer explicações históricas e psicológicas dos homens sobre os gestos (ibid, p.xiii-xiv).

Chirologia

No estudo da Chirologia, Bulwer ressalta através de estudiosos, poetas e fontes históricas antigas ou mesmo de seus contemporâneos, o que ele considera como a milagrosa expressão das mãos. Pode-se pensar como idéia geral de Chironomia que há uma voz significante nos sinais naturais das mãos.

Bulwer (apud CLEARY, 1974) de início considera que:

Em todos os conceitos anunciados dos gestos através do qual o corpo, instruído pela natureza, pode enfaticamente se tornar conhecido e comunicar um pensamento e na propriedade de sua elocução expressa a agitação do silêncio da mente, as mãos, esse atarefado instrumento, é muito falador, cuja linguagem é tão facilmente percebida e compreendida como se o homem tivesse outra boca ou fonte de discurso em suas mãos”.

Observa-se desta forma que às mãos é possível falar todas as linguagens, e “como um caráter universal da razão, é geralmente entendida e conhecida por todas as nações em meio às diferenças de suas línguas.” (ibid). Os gestos das mãos podem ser considerados uma língua, assim como linguagem geral da natureza humana, a qual, indivíduos de todas as partes do mundo, a primeira vista, podem entender seus movimentos que denotam expressões de nossas mentes e que são de domínio universal, como por exemplo, o gesto de orar, indicar, contar entre tantos outros. Bulwer (apud CLEARY, 1974), continua, ainda, fazendo a seguinte afirmação:

Portanto, as mãos são o substituto e vice gerente da língua, em um todo, e sublime modo de expressão, apresenta as significantes aptidões da alma e, o discurso interior da razão; e como outra língua, a qual nós podemos justamente chamar o porta-voz do corpo, elas falam para todos os membros, denotando seus sufrágios, e incluindo suas aprovações. Tanto que, seja qual for o pensamento a ser deliberado, ou feito significativamente manifesto pelo esforço de movimentos unidos e conotativo de todos os outros membros, o mesmo pode ser tão evidentemente exibido pelo único desejo e discurso dos gestos das mãos.”

Em uma analogia a respeito desta “voz das mãos”, Bulwer cita como um argumento notável, a discursiva habilidade das mãos em brincadeiras comuns, tal como, sem voz, falando somente pelos gestos e de como incitar modos, maneiras de fazer e ações significantes dos homens. Da mesma forma, observa-se em surdos/mudos uma capacidade de argüir e disputar retoricamente pelos sinais das mãos, e com um tipo de mudez e eloqüência logística que supera seus espantados oponentes. Sem a preocupação de seus pensamentos serem perfeitamente compreendidos, é possível que eles sejam capazes de simular suas “paixões”[11], com as quais são seus ímpetos, suas revoltas, levantes e impulsos da natureza, e que sobre a visão de tais objetos, estão aptos a alcançar alguma impressão sobre estes.

Assim, Bulwer em Chirologia revela que, através dos gestos, as mãos estão preparadas e habilitadas a expor nossas intenções. As mãos parecem entrar em competição com a língua na tarefa de falar no âmbito das expressões. Há uma variedade significativa da importância dos movimentos, quase transcendendo a habilidade da arte de enumerar as posturas das mãos e o discursar dos gestos com o qual apresenta a interpretação da mente.

No livro, Bulwer apresenta inicialmente uma observação introdutória em “Chirologia: or Natural Language of the Hand” em que exalta o discurso da aptidão das mãos. Em seguida, descreve o alcance de Chirologia com o capítulo: “Uma Consagração do Movimento que Fala, Discurso dos Gestos, ou Hábitos das Mãos com um Manifesto Histórico, Exemplificando a Significação Natural destas Expressões Manuais (BULWER apud CLEARY, 1974) ”[12]. Sobre esse título, Bulwer lista e discute sessenta e quatro gestos das mãos, quarenta e oito dos quais estão ilustrados em dois quadros chirogramáticos.  

Fig. 01 - Gestos das mãos ilustrados em quadros chirogramáticos.

1º) “Explodo”: o movimento é o de bater o punho da direita sobre a palma da mão esquerda dando sentido de satirizar, ridicularizar e repreender.                           

Fig.02 - Explodo – Ilustração

2º) “Indignor”: mão direita bate com força sobre a esquerda dando o sentido de raiva.

Fig.03 - Indignor - Ilustração

3º) “Triumpho”: mão erguida, como se fosse um grito na sua expressão natural. Aclamação, exaltação, ousadia ou prazer.

                                                          

Fig.04 – Triumpho - Ilustração

Fig.05 – Gestos das mãos ilustrados em quadros chirogramáticos.

1º) “Impedio”: Restrição, limitação, obstáculo, repressão, gesto muito óbvio dentro das perturbações coléricas da vida humana.

Fig.06 - Impedio - Ilustração

2º) “Pudeo”: o movimento é o de cobrir a face com as mãos, dando o sentido de estar envergonhado, humilhado.

                                                                                    

Fig.07 - Pudeo - Ilustração

Bulwer adiciona à discussão dos gestos das mãos numa seção chamada “Técnica de comunicação por sinais dos dedos” [Dactylogia[13]] ou a “Dialética dos Dedos”, com um breve apontamento introdutório sobre as articulações dos dedos suprindo o trabalho de uma voz. Em seguida, “Consagração do Discurso do gesto dos dedos com um Manifesto Histórico”, exemplificando suas significações naturais. Bulwer também apresenta vinte e cinco gestos de dedos, vinte e quatro dos quais estão ilustrados também em um quadro de chirogramas. Com poucas exceções, o padrão fundamental da discussão de cada gesto incluía três aspectos consideráveis: a descrição da ação do gesto, seu significado, e, finalmente, exemplos derivados de poetas e histórias da antigüidade, medievais, ou contemporâneas da época, com os quais sustentam o uso e significados que Bulwer considera para os gestos [CLEARY, 1974].

Fig.08 - Gestos das mãos ilustrados em quadros chirogramáticos.

1º) “Audientiam facit”: é uma ação de falar significantemente, para demandar silêncio e obter audiência.

Fig.09 – Audientiam facit - Ilustração

2º) “Terrorem Incutio”: Impor o terror, repreender, ameaçar.

Fig.10 – Terrorem Incutio - Ilustração

De acordo com a análise de CLEARY, “sua presunção básica [a de Bulwer] é que uma dada ação das mãos ou dedos é comum para todos os homens que expressam essas ações correlativas ao pensamento ou emoções.”

Duas curiosidades são marcantes em Chirologia de Bulwer com relação ao tratamento dos gestos: “primeiro a fina diferenciação entre gestos das mãos e gestos dos dedos; e, segundo, a peculiar ênfase da utilização do espaço sobre certos gestos mais que em outros”. Os gestos que envolvem as ações das mãos são mais grosseiros e de significações mais emocionais do que os movimentos e significados dos gestos dos dedos. CLEARY [1974].

Na questão da ênfase espacial, Bulwer comumente estabelece uma longa e, muito freqüente, discussão do modo discursivo para aqueles gestos das mãos com o qual impõe um forte tom moral e ético. Deste modo, os gestos de orar (rezar) [Chirol., 23], proteger [Chirol., 42], prometer fé [Chirol., 77], perdoar injúrias [Chirol., 93], e invocação [Chirol., 107], recebem muito mais atenção do que aqueles gestos com os quais carecem da dimensão da moral e da ética [CLEARY 1974, passim].

Chironomia

A Chironomia representa uma extensão da Chirologia, a intrínseca relação entre esses dois ensaios torna-se visível quando Bulwer declara (apud CLEARY 1974, p.xvi), que o primeiro é “aquele com o qual me habilita avançar bem longe nessa arte [i.e., a arte da retórica do gesto] é o discernimento que eu tenho adquirido no desenvolvimento ou fundamentação de toda pronúncia da retórica, isto é, a expressão natural das mãos” [Chirol., 172]. Em Chirologia, Bulwer oferece uma pesquisa objetiva de como a natureza intelectual e emocional do homem afeta os movimentos das mãos e dos dedos.

Em Chironomia ele transporta o leitor para uma arte específica em que o gesto é de primeira importância. Esta arte é a arte da oratória. No corpo da Chironomia, Bulwer divide seu estudo do gesto retórico em quatro partes: As Regras dos Retóricos Comovendo o Artificial Manejar das Mãos no Falar; Indigitatio: ou As Regras (cânone) dos Dedos; A Falsidade da Ação: ou Verdadeiras Prevaricações contra Regras do Decorum da Retórica” e Verdadeiras Noções de Prudência”.

Neste segundo tratado, observa-se a intensa preocupação de Bulwer em passar os corretos e precisos ensinamentos na arte da retórica das mãos, ou seja, o falar com as mãos. Bulwer supõe, entretanto, “que a ação das mãos do orador não é perfeita por natureza”. O orador deve aceitar ser governado, nos termos de Bulwer, pela regra do “manual de retórica” (apud CLEARY, 1974, p.xvii).

“Portanto, considerando natural determinar para cada movimento da mente seu próprio gesto, semblante, e tom através do qual este é significativamente expresso, [...] estimula a mente, por algum artifício do saber, descobrindo a tendência e própria expressão, enquanto ela trabalha para estar livre em fazer um longo relato de seu tesouro escondido. Ela estampa sobre o corpo a sugestão ativa de seus mais generosos conceitos, arremessando seus raios sobre o corpo, como a luz tem sua emanação do sol; como impressão eloqüente, um tipo de fala mais consonante com a mente, estão no movimento das mãos tão cuidadosamente trabalhadas e enfaticamente produzidas, que as mãos muitas vezes parecem ter concebido o pensamento”.

O gesto perfeito apontado pelo tratadista não requer somente a postura do gesto em si, mas fatores como o tempo de realização e nuances que se tornam variantes dos gestos. Bulwer inicia seu trabalho em Chironomia citando afirmações de sábios como Plutarco sobre as curiosas especulações das propriedades e movimentos das mãos. Bulwer assim assinala: “... o homem é a mais sábia de todas as criaturas, porque ele tem mãos, como se elas (as mãos) fossem a origem e fonte de toda a inteligência e distinção artificial [...] a arte nas mãos é o mesmo que a ciência no intelecto”[14].

As discussões estabelecidas em torno da propriedade da retórica das mãos são de fundamental importância para o próprio processo de conhecimento comportamental, intelectual e emocional do homem, podendo certamente afirmar-se que as mãos também são sábias e pensantes.

Bulwer cita Galen, revelando que este sábio ressalta que o homem está armado pela natureza por três armas: “a razão, a sonoridade da língua e as mãos” [BULWER, 1974]. Na lógica deste pensamento há de observar que a Razão é o intelecto das mãos; a fala, aquela da razão; as mãos, aquela da fala. As mãos na descrição do quadro apresentado, passam a ser tratadas e compreendidas através de seus gestos, como uma importante companheira da razão.

Assim, BULWER (1974, 156) cita Cassiodorus, que afirma ser o emprego das mãos algo da sabedoria e vivo suplemento da elocução. As mãos nos são dadas para explicar muitos de nossos pensamentos, e têm a propriedade de auxiliar na pronunciação daqueles que recitam. Este fato se comprova na logística que aparece na fala dos debatedores, demonstrando o amplo comando de significação do corpo, com o qual flui não somente para os órgãos vocais, mas também procede na medida em que para as mãos, eles (a  logística dos movimentos) então sustentam significativamente ser as mãos um peculiar instrumento da natureza racional, especialmente ordenada a colocar um brilho sobre a expressão vocal da mente (BULWER, 1974, p.156). “A língua sem as mãos pode exprimir apenas o que resultará adiante imperfeito e impotente. Enquanto que as mãos sem o discurso da língua, podem tornar a fala com uma eficácia admirável e energética, podendo realizar muitas coisas notáveis” [Ibid, p.156-7].

Tomando-se a arte de falar bem o conjunto de regras relativas à eloqüência, oratória, a retórica em Bulwer surge como um manual de regras e gestos dos dedos e das mãos podendo vir a tornar-se hoje material significativo, oferecendo elementos inspiradores e propulsores para iniciar e conduzir um trabalho de experimentos coreográficos partindo dos gestos das mãos e dedos e suas expressões. Foi o que propus realizar.

Experimentos

Apresenta-se a seguir três ilustrações das experimentações corporais a partir de alguns gestos codificados da obra de John Bulwer, desenvolvidos com o intuito de explorar suas significações. Para alcançar um gestual que pudesse entrar em sintonia com o rigor expressivo exigido pelo tratadista, os experimentos foram conduzidos no sentido de ressaltar a ação dramática das mãos. Alguns destes são utilizados em sua configuração, idênticos aos ilustrados no livro de Bulwer, outros, são trabalhados como formas variantes relacionados aos seus respectivos significados. 

Fig.12 - Audientiam facit -movimento

Fig.11 - Indgnor – Movimento

Fig.13 - Protego - Movimento

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. Os Pensadores; Aristóteles – Vida e Obra. São Paulo:Nova Cultural, 1996.

BARBA, E. e SAVARESE, N. A Arte Secreta do Ator: Dicionário de Antropologia Teatral. Campinas: Hucitec,1995.

BONFITTO, M. O Ator - Compositor. São Paulo:Perspectiva, 2002.

BULWER, J. Chirologia: or Natural Language of the Hand and CHIRONOMIA: or the Art of Manual Rhetoric. Editado por James W. Cleary, EUA, Southern Illinois University Press, 1974.

DUBOIS, P. e WINKIN, I. Rhétoriques du corps. Bruxelas:De Boeck, 1988.

GATTI, D. Medéia: Um Experimento Coreográfico. Dissertação (Mestrado – Artes), Universidade Estadual de Campinas, 2005.

HARNONCOURT, N. O discurso dos sons. Caminhos para uma nova compreensão Musical. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1988.

FERREIRA, A.B.H. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1986. 2ª ed.

FOSTER, S.L. Choreography and Narrative: Ballet´s Staging of Story and Desire. Indiana: University Press, 1996.

MONTEIRO, M. Noverre: Cartas sobre a Dança. São Paulo:Edusp, 1998.

PAVIS, P. Dizionario del Teatro. Zanichelli, Milano, 1997. Trad. bras., São Paulo:Perspectiva, 1999.

Notas:

[1] Neste período nas montagens de ópera tinha-se como preferência  a inserção de atores no lugar dos cantores, dada a exigência da expressividade corporal que era contida na dramaturgia textual e musical. Informação dada pelo cantor Daniel Issa tendo como referência suas aulas específicas sobre este assunto em Basel.

[2] Nascido em São Paulo, atualmente é estudante da Schola Cantorum de Basel (Suiça) onde se especializa nesta área. Daniel Issa concedeu entrevista à autora deste trabalho em 30/08/2003, demonstrando na ocasião, a importância fundamental do trabalho das mãos para o cantor barroco na arte da interpretação deste repertório específico, bem como algumas regras gestuais, posturais e espaciais utilizadas durante as cenas. A entrevista foi gravada originalmente em vídeo VHS e editada como parte da dissertação.

[3] Giovanni Bonifácio (1547-1635) que publicou em 1616 Arte De´Cenni em Veneza; O inglês Jonh Bulwer (1644) que publicou "Chirologia ,or the Natural Language of the hand", and  "Chironomia, or the Art  of Normal Rhetoric"; O Francês Charles Le Brun (1619 – 1690), primeiro pintor do rei Luís XIV, que em 1668 escreveu o famoso "Conference sur l´expression générale et particuliére des passions"; Gilbert Austin que publicou “Chironomia”  em 1806 na Inglaterra; e o Holandês J. Jelgerhuis que em 1827 publicou “Gesticulatie en Mimiek” em Amsterdam

[4] Retórica: disciplina ensinada em todas as escolas e fazia parte, tal como a própria música da cultura geral. HARNONCOURT, Nikolaus. O discurso dos sons. Caminhos para uma nova compreensão Musical. Zahar Editora. Rio de janeiro (1988)

[5] Este Tratado encontra-se no: De Institutione Oratoria, Livro XI, iii, 61- 135

[6] Informações retiradas em FOSTER, 1998, capítulo 1.

[7] Tradução feita pela autora deste artigo

[8] Até o final do século XVIII, embora o gesto fosse utilizado durante a performance, como forma de traduzir as palavras e na tentativa de expressar as paixões da alma,  anunciava-se  uma dramaturgia através do corpo, objetivando estabelecer  uma outra condição expressiva para este. Noverre (1727-1810) e Delsarte (1811-1871) estabeleceram para as linguagens artísticas a relação com o gesto corporal, dança e teatro, transformando a construção dramatúrgica  através do corpo. (GATTI, 2005)

[9] Informações retiradas em FOSTER, 1998, p.14.

[10] Informações retiradas em MONTEIRO,1998, capítulo2.

[11] Entenda-se aqui paixões por afetos.

[12] A tradução é da autora do artigo. Título original: A Corollary Speaking Motions, Discoursing Gestures, or Habits of the Hand With an Historical Manifesto, Exemplifying the Natural Significations Of Those Manual Expressions.

[13] A tradução é da autora. Título original: “Dactylogia or the Dialects of the Fingers”.

[14] Cf. BULWER, 1974, p.155.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano VI - Número 09 - Abril de 2008 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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