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Cultura Popular ::
Este número
promove o contínuo delinear do perfil de um grupo de pesquisa – no qual
me integro – o Núcleo de Cultura Popular da UERJ. Como sempre lanço
o olhar ao meu redor fui premida pela necessária abordagem inicial de
meus colegas de pesquisa, pensando em ir, paulatinamente, abrindo o
círculo e integrando muitos outros.
Trago nesta
revista a fala do prof. Dr. Ricardo Gomes Lima, nosso líder, para apresentá-lo
ao público de Art&. Como o diálogo foi oralmente apresentado, gravado
e transcrito, as respostas puderam se alongar. Elas estarão dispostas
em duas partes, a próxima edição devendo conter, então, a segunda sessão
dessa nossa conversa.
Ricardo
Gomes Lima é doutor em Antropologia. Professor
Adjunto do Instituto de Artes e do Programa de Pós-Graduação
em Artes da UERJ. Atualmente, dirige o Departamento
Cultural da Universidade.
Pesquisador
do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular / IPHAN / MinC, dirige
o Setor de Pesquisas e é responsável pela Sala
do Artista Popular.
Está deliciosa
a entrevista! Espero que possam fruí-la, conhecendo mais uma personalidade
influente no campo da Cultura Popular.
Editora
Responsável: Profª. Drª.
Isabela Nascimento Frade
Ricardo
Gomes Lima
Art&: O que
é arte popular? Como você lida com ela enquanto agente de eleição e
distribuição?
RICARDO
LIMA: Definir arte
é uma questão extremamente difícil, especialmente nos dias de hoje.
Definir arte popular então se torna uma questão ainda mais
problemática, tanto pelo próprio conceito de arte,
e as imprecisões que esse campo contém, quanto pelo conceito de popular,
que é também algo extremamente complexo.
Quer dizer,
o conceito de popular pode ser entendido em sentido econômico, como
questão de segmentos sociais, de classes sociais, dos estratos que compõem
a sociedade.
Segundo
essa forma de ver, o popular é aquilo que se identifica com os segmentos
de baixa renda da sociedade.
Quando
você está pensando assim, você define o popular por oposição à elite,
então você teria como arte
popular aquela que vem do povo, que é produzida por ele, para ele ou
com sua anuência; aquela produção que é feita pelos estratos não hegemônicos
da sociedade, ou para eles.
Mas pode-se
também entender o popular como um conceito englobante, abrangedor. Neste
sentido, seria popular aquilo que é domínio do povo e povo aí entendido
não em oposição a elite, mas como uma totalidade, quer dizer, um universo
que abarca toda a população de uma determinada unidade. Quando você
fala do povo de um país, do povo brasileiro, você está falando tanto
das camadas subalternas, quanto você está falando da elite.
Então,
o popular é um conceito na verdade muito complexo e cada vez que a gente
quer defini-lo, eu diria, é um pouco como tentar pegar água nas mãos:
por mais que você se esforce por segurá-la, a água está sempre vazando
por entre os dedos, você cerca daqui ela vaza por lá, você prende por
lá e ela derrama por cá.
Assim você
procede na tentativa de cercar o conceito de popular de um lado e do
outro, e ele vai estar sempre deixando escapar algo.
Mas, até
que surja uma solução mais confortável, temos que ir lidando com esse
conceito mesmo, a despeito de suas imperfeições. Assim, a gente pode
pensar a questão da arte
popular como um domínio, um campo, um mundo, aquilo que Howard Becker
chamou de “O Mundo das Artes”. Trata-se de um campo que se constitui
de relações sociais, de agentes sociais díspares mas que integram uma
mesma rede, de elementos que vão estar em relação nem sempre direta
mas formando, como fios, uma trama, conectados por intermédio de nós
que se sucedem e os põem em interação, definindo que isto é arte,
isto não é arte, isto é arte popular, isto não é arte
popular. Assim se constitui o mundo da arte
nos tempos atuais. Neste sentido, eu direi, também o mundo da arte popular se constitui de um universo feito de consagrações,
de indivíduos, de grupos que entram em relações e definem o estatuto
do que vem a ser arte popular,
definem isto aqui é arte
popular, aquilo ali não é arte
popular.
Para tornar
mais claro o que pretendo elucidar, basta lembrar que, até 1947, praticamente
estava ausente o conceito de uma arte popular no país. Foi preciso que Augusto Rodrigues,
o arte-educador, em visita à feira de Caruaru, em Pernambuco, olhasse
a produção de Mestre Vitalino e falasse: “- Mas isso aqui é arte.”,
e resolvesse fazer uma exposição com a produção do Vitalino, chamando
a aqueles objetos de arte
popular. Em sua visão, uma arte
que é feita por indivíduos do povo que estão fora do mundo da arte erudita, do mundo da arte
consagrada. Quer dizer, para além do mundo de produção artística
hegemônica, no Brasil, existem outras produções que igualmente merecem
o estatuto de Arte. Foi o que Augusto Rodrigues fez com Vitalino em
1947 promovendo a primeira exposição de arte
popular no país. Pela primeira vez tanto o povo quanto a própria elite
tiveram a notícia de que existia uma coisa chamada arte
popular e ali estavam os objetos dessa arte
popular, presentificados. Então, a importância da exposição organizada
por Augusto Rodrigues é imensa porque ela dá partida
à constituição do mundo da arte
popular no Brasil.
Isso acontece
num contexto histórico específico: é mais um momento de discussão da
nacionalidade no país. De se pensar o Brasil como nação constituída
também pelas camadas populares. E aí passa a ser importante se considerar
as expressões ligadas ao povo, as expressões do povo. É o momento de
surgimento da Comissão Nacional de Folclore, em 1947, propondo uma ação
nacional de estudo dos saberes e dos conhecimentos do povo brasileiro
como uma forma de valorização do próprio país. Isto tudo, Augusto Rodrigues,
a “descoberta”, ou “invenção”, de uma arte
popular brasileira, a Comissão Nacional de Folclore estão fazendo parte do mesmo contexto de discussão que é a descoberta
das produções populares que aqui se faziam.
Eu, enquanto
um agente de eleição e distribuição da arte popular, como a Revista Digital Art&
me nomeia, respondendo à pergunta de como lido com a questão, eu diria
que lido com bastante cuidado. A minha carreira, minha trajetória neste
campo, tem uma divisão ou um somatório, quer dizer, ao mesmo tempo em
que eu me coloco como um antropólogo interessado na observação, na análise,
na discussão deste campo no país, o que pressupõe certo afastamento,
também tenho todo um lado de militância, digamos assim, de mergulho
na realidade social para defesa dessas expressões da arte
popular, expressões da cultura popular, expressões da cultura desse
povo brasileiro. E defendo isso como um espaço importante que tem que
existir junto às instituições transmissoras de cultura no país. Então,
eu, ao mesmo tempo em que procuro analisar esse mundo, reconheço que
ocupo um lugar de influência, ou melhor, eu sou um desses elementos
do “Mundo da Arte” de que Becker falava. Eu trabalho em instâncias no
fundo definidoras e consagradoras do que venha ser arte
popular, tanto na Uerj, hoje à frente do Departamento Cultural e à frente do Núcleo de Cultura
Popular, quanto também ligado ao Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular onde tenho uma responsabilidade grande na condução do Setor
de Pesquisa daquele centro e
com influências na política, por exemplo, de definição dos caminhos
das exposições realizadas no Museu
do Folclore Edison Carneiro, na constituição de seu
acervo e na coordenação que faço da Sala do
Artista Popular.
Art&:
Você tem sido curador de muitas mostras de arte
popular. Como você organiza as exposições da Sala do Artista Popular
no Museu de
Folclore? Há uma forma específica de seleção de artistas
ou de tipos de produção?
RICARDO
LIMA: A Sala do Artista Popular
(SAP) é um espaço criado no Centro Nacional do Folclore e Cultura Popular,
o antigo Instituto Nacional do Folclore que integrava a Funarte.
Hoje, o Centro está ligado ao IPHAN do Ministério da Cultura. A SAP
é um espaço que foi criado em 1983, pela diretora do então INF, Lélia
Coelho Frota. Foi uma inspiração dela
e eu cheguei à instituição naquele momento, em 1983, a convite dela para
trabalhar lá. Quando eu cheguei, a SAP estava recém-criada, eu entro
lá talvez em sua terceira exposição e de lá pra cá eu tenho tentado
desenvolver uma política de apoio às exposições que acontecem naquele
espaço.
Qual foi
a necessidade de criação desse espaço? Eu diria que até a década de
1980, o INF esteve muito impregnado por uma visão de que as coisas do
folclore estavam marcadas por determinadas características tais como
a pouca importância da autoria, a “não contaminação” pelo ethos urbano, a temporalidade que remetia
essas expressões sempre ao passado, o distanciamento geográfico em relação
aos grandes centros do país, a regionalização, a ruralização dessas
expressões de arte e cultura.
Tudo isso se refletia nos objetos com que a instituição lidava. O Instituto,
como órgão integrante da Funarte,
participava de suas ações e, por exemplo, fornecia
objetos para venda nos espaços de comercialização da Funarte.
Nas lojas vendia-se a produção da Funarte
relativa às publicações do INAP, Instituto Nacional de Artes Plásticas,
catálogos e outros produtos do Instituto Nacional da Música, a produção
de discos, de lp’s e compactos, cartazes,
livros e etc, enfim, toda a produção gráfica, sonora e visual de que
a Funarte dispunha. E junto
a essa produção você encontrava, além das edições do INF, pecinhas de
arte popular. Eram representações de cerâmica do Jequitinhonha,
representações dos figureiros de Taubaté, e outras que se encontravam
ali, para deleite do público que visitava esses espaços, geralmente
pessoas das camadas médias, intelectuais, consumidores das artes.
Eu mesmo antes de integrar o quadro do INF ia muito à loja da Funarte,
na rua México, para comprar minhas pecinhas de barro. Só que toda a
produção era vendida ali com esse caráter que o folclore então assumia
naquela época: de ser uma expressão do povo brasileiro, a expressão
da alma do povo, e por ser a expressão dessa alma, por ser o povo, essa
coisa coletiva, anônima, a autoria não era importante e quase nunca
estava presente. Não que ela não estivesse nos objetos que, muitas vezes
até podiam portar a assinatura de quem os havia feito, mas isso era
de menor importância, o que importava ali é que os objetos expressassem
a vontade ou a visão de mundo ou a cosmovisão do povo brasileiro. Era
nessa condição, como tal, que esses objetos vinham sendo cultuados.
Quando
a Lélia assume o INF, uma das tentativas principais que ela faz, uma
das primeiras propostas que empreende, é rever esse tipo de postura
em relação à produção de cunho popular, de origem popular. Ela propõe
que esses objetos sejam vistos como produzidos dentro de determinadas
condições, condições essas que deveriam ser explicitadas para o público.
Como objetos que são oriundos de determinados contextos sociais e culturais,
que precisam ser explicitados para terem uma fruição mais direta do
público, uma comunicação mais intensa com ele. Aí ela paralisou esse
tipo de comercialização de objetos feitos sem identificação e abriu,
na rua do Catete, na sede do INF, a Sala
do Artista Popular, como exemplo de um espaço que atuasse
na difusão da produção de arte
no país, de arte popular e artesanato,
mas que trouxesse para o público que visitasse o espaço, informações
– fotografias, catálogos, se possível documentos filmados – mostrando
de onde vinham aqueles objetos, quem eram os indivíduos que os produziam,
como e porque os produziam, qual o significado que esses objetos tinham
para seus produtores, fossem eles resultado do fazer individual ou produto
do trabalho de grupos e comunidades.
Então,
as SAPs começam e têm se mantido ao longo desses 25 anos de funcionamento,
como exposições “monográficas”, se pudéssemos falar assim de uma exposição.
Exposições que tratam de uma realidade única, seja um artista,
um indivíduo, a produção dele, seja uma coletividade, um grupo que produz
determinados objetos. Então, os critérios que temos adotado na eleição
do que apresentar são sempre esses ligados à Sala
do Artista Popular. Mostrar a produção que venha desses
estratos, das camadas populares e que tem um significado que vai além
da mera mercadoria: não são produtos simplesmente feitos, descaracterizados,
sem identidade. É o chamado artesanato
tradicional, o artesanato de cunho cultural ou artesanato de raiz - são vários os nomes que se tem
no país para designar essa classe de objetos. Enfim, são objetos que,
embora produzidos hoje, contemporâneos portanto, voltados ou não para
o contexto de comercialização, têm como um marco um lastro cultural
intenso, têm uma tradição por trás deles e aí a tradição não é vista
só num sentido histórico, de passado. Na verdade, o tradicional é o
objeto que está sendo feito hoje, um objeto contemporâneo, mas que tem
um pé lá atrás. O grande fator é que ele é um objeto de hoje, ele é
um objeto contemporâneo, porque se fosse só um objeto do passado, seria
um objeto histórico, morto, desaparecido e não um objeto da tradição.
A tradição
só existe porque ela se mantém viva, ela está aí presente nos dias de
hoje. É isso que faz uma distinção grande entre a questão da tradição
e a questão do histórico. O fato histórico é um fato que é acontecido
no passado e enquanto tal ele lá permanece; o fato tradicional é um
fato que está presente aqui hoje, porque no dia que ele deixar de estar
presente, vivo, dinâmico nessa sociedade de hoje, ele se transformará
num fato meramente histórico.
Esse artesanato
que a gente está prezando é o artesanato
tradicional, contemporâneo, embora muitos olhem pra ele e remetam à
questão meramente do passado, como quando dizem: “-a minha avó fazia
assim, isso existia na casa da minha avó.” Interessante esse fenômeno
quando se olha para essa classe de objeto. No entanto, se a gente pensar
bem, eles são objetos do passado sim porque sua avó os usou, mas não
são meros objetos do passado, daí eles serem tradicionais.
Com relação
à seleção dos objetos para as mostras na Sala do Artista Popular,
é isso: o primeiro critério é serem objetos tradicionais, objetos que
vêm de um indivíduo ou de uma coletividade, quer dizer, que expressem
uma visão de mundo ou o modo de ser de um grupo que forme este país,
esta sociedade, ou que estes objetos sejam de um indivíduo, mas enquanto
tal, ele expresse também uma verdade que está por trás, vontade de uma
coletividade toda.
Nós hoje
temos um cadastro na instituição. No início, saíamos muito procurando
o que expor, hoje a SAP se consagrou. Desde 1983 até hoje, é transcorrido
um grande tempo e nos chega muita demanda do país todo. Os critérios
então são combinados: a tradição com representações regionais, locais
e etc, com diferenças de matéria-prima, de técnicas, de tipo de produtos.
Então, a SAP trabalha com uma equipe de pesquisadores que tem que estar
sempre realizando exposições do norte, do nordeste, do sul, do sudeste,
do centro-oeste, para não haver uma concentração, por exemplo, do nordeste,
onde se diz que há muita arte
popular, ou do sudeste, por estar mais próximo de nós. Ao mesmo tempo,
procura-se criar oportunidade para estar representados diferentes tipos
de matéria-prima – madeira, barro, fibras vegetais, tecido, papel, metal
– enfim, variar as matérias-primas de modo que no final do ano se tenha
um naipe grande de realidades distintas, de matérias-primas distintas,
intercalando exposições de indivíduos com exposições de comunidade,
do rural, do urbano, enfim, mostrando a grande diversidade de produção
artesanal, artística,
contemporânea. Fazemos cerca de oito exposições por ano, com duração
média de trinta a quarenta dias. No final do ano, sempre se reúne uma
comissão para definir as exposições do próximo ano, onde se faz uma
seleção a partir do repertório
de demanda que existe na própria instituição.
Art&:
Acho que posso dizer que nas galerias de arte da UERJ você tem inaugurado
um novo olhar sobre essas produções populares. Qual o maior estímulo
para a organização dessas mostras?
RICARDO
LIMA: Eu diria, Isabela, que estamos fazendo com
as galerias da Uerj o que eu já fazia junto a Cáscia Frade, a você,
a Felipe Ferreira com as atividades do Núcleo de Cultura Popular, ligado ao Instituto
de Artes. Na verdade, é abrir a Universidade para essa cultura do povo,
dando chance aos artistas
de estarem aqui e dando chance ao público, alunos, professores, funcionários
e pessoas de fora da Universidade de ver essas produções aqui também.
Por ocasião de realização das Semanas
de Cultura Popular, sempre procuramos fazer uma exposição que denominamos
“Notórios Saberes”. Eram exposições de arte
popular a partir de pesquisas realizadas pelos próprios alunos
de graduação na disciplina Folclore III. Era o momento do trabalho de
campo com os alunos, era o momento de descoberta de coisas, era o momento
de aplicação de metodologia de pesquisa antropológica e a gente sempre
aproveitava para fazer descobertas pelo Estado do Rio, e os alunos são
excelentes agentes para isso. Então eles nos traziam muitas coisas,
faziam seus trabalhos finais de curso e a gente então apresentava a
exposição “Notórios Saberes” convidando os artistas, uma seleção deles para expor – e se exporem
– na UERJ. Esses trabalhos dos alunos foi, assim, o primeiro balão de
ensaio feito aqui na universidade por mim e que resgatei, ou do qual
me apropriei, agora ao assumir a direção do Departamento
Cultural. Por que? O que eu noto?
Nós temos
duas galerias dentro da UERJ , no Maracanã: a Galeria Cândido Portinari
e a Galeria Gustavo Schnoor, essas galerias de certa forma ficavam muito
fechadas, tinham um público muito restrito. A Galeria Cândido Portinari,
por exemplo, se abria para fora da universidade, para um espaço que
não tinha muita circulação de público, então ela ficava ali meio isolada.
Ao assumir a direção, a primeira coisa que eu quis fazer foi transformar
isso, mudar a porta da Galeria Cândido Portinari de modo que ela passasse
a se comunicar diretamente com a entrada principal da universidade.
Realmente essa foi uma medida providencial. A diferença de freqüência
de público nessa galeria hoje praticamente quadruplicou, se é que eu
não posso dizer que ela aumentou ainda mais, porque é impressionante
o quanto as pessoas estão entrando pra ver as exposições colocadas na
Cândido Portinari.
Do mesmo
modo, a Galeria Gustavo Schnnor também tem tido uma visitação enorme,
mostrando esse tipo de trabalho que a gente vem procurando evidenciar
lá. Penso que a universidade é um espaço que tem que primar pela democracia.
Eu encaro essas galerias como vitrines do que pensa a universidade e
aí, eu acho, elas têm que expor o máximo e dar oportunidade, também
o máximo possível, a segmentos sociais diferenciados, para que mostrem
seus trabalhos. Então, se existe uma arte
contemporânea, uma produção ligada a uma expressão de elite, atual,
eu acho que tem que ser mostrada dentro de uma galeria sim, mas também
uma produção de arte popular, ou uma produção de arte naif, e a produção de grafite urbano e muito mais da pluralidade que
existe por aí, sendo produzida hoje. Enfim, nosso propósito à frente
do Departamento Cultural
da UERJ é dar voz às mais distintas expressões de cultura e arte,
sem hierarquias, discriminações.
Você me
pergunta o que me estimula a organizar essas mostras. Primeiro é a chance
que eu tenho de democratizar o acesso à arte dentro da universidade. Isso realmente pra mim
é uma questão de honra que sempre fez parte
da minha trajetória intelectual. Ademais, como professor, como antropólogo,
mostrar que a realidade não é unívoca, a realidade não é homogênea,
e muito menos ela tem que ser hegemônica; existem diferentes formas
de expressão no mundo e todos têm que ter o direito de se exprimirem.
Ao assumir o Departamento
Cultural, eu estou tendo a chance de mostrar isso, de atuar num outro
plano que não a sala de aula, buscando defender isto. E é isto que eu
tenho feito.
Segundo
que a UERJ é uma universidade pública e é fantástico o que ela permite
aos alunos de baixa renda, dos estratos sociais menos favorecidos, de
estarem aqui dentro. A Uerj tem um contingente enorme de alunos advindos
da baixada fluminense, das periferias, da Zona Norte do Rio, espaços
que são extremamente carentes de equipamentos culturais, haja vista
que, exceto as galerias da Uerj, não se dispõe na zona norte da cidade
de um único espaço de exposição permanentemente aberto. Existem alguns
outros espaços também culturais, mas fazem um trabalho intermitente
em relação a exposições, como o Sesc Tijuca, por exemplo. E mesmo assim,
a gente conta nos dedos: é o Sesc Tijuca, Sesc Madureira e poucos mais.
E na UERJ, a maioria dos alunos são dessas áreas, dessas regiões. Vem
à Uerj e daqui voltam para suas casas. Ou a Uerj oferece essa opção
para eles ou muitos jamais entrarão numa galeria de arte,
jamais freqüentarão um museu, instituição que, em sua quase totalidade
se concentra na zona sul da cidade. Então, o papel, a importância estratégica
da Uerj aqui no Campus Maracanã é enorme. Daí esse trabalho com as galerias,
poder estar oferecendo a esse público, que é aluno, funcionário, o público
do entorno aqui da Uerj, a oportunidade de ver trabalhos de arte, e toda vez que eu vou às galerias e encontro
alunos lá, vejo muitas vezes o deslumbramento no rosto desses alunos,
pelas coisas que eles estão vendo, que estão descobrindo ali dentro,
o acesso que eles estão tendo à arte
e que não tinham. Isso pra mim é extremamente compensador, talvez seja
isso o maior estímulo em promover, trazer à Uerj esse tipo de expressão.
Art&:
A arte popular tem sido alvo de inúmeras atenções: pesquisadores,
designers, artistas, investidores,
curadores e o público em geral têm se voltado para esse estrato da produção
artística. Podemos pensar
em um progressivo fortalecimento desse campo artístico?
RICARDO:
A gente teria que analisar com um pouco mais de atenção essa afirmativa.
As pesquisas há um tempo acontecem nessa área – muito embora ainda continuo
a achar que poucas. Mereceria haver mais. Com relação à atuação dos
designers, eu penso que o campo do design é bastante específico, quer dizer, qual é o interesse do design relativo ao campo da produção popular?
Isso passa muito mais por um campo mercadológico e econômico, a meu
ver, do que um fortalecimento do campo popular enquanto campo de arte. Aí há tensões enormes convivendo lado a lado.
O interesse de artistas pela
questão da arte popular é
uma outra questão que a gente pode discutir de volta mais adiante. Eu
penso que, como é sabido, desde o movimento modernista, a questão do
popular já chamava a atenção dos artistas,
a saber, Tarsila, Vicente Rego Monteiro, Mário de Andrade, todos eles
voltaram o olhar para o campo das produções populares, mas com uma especificidade
também muito grande. Muitos investiram na arte
popular, que se constitui em um campo de interesse econômico também.
Enfim, num certo sentido, há o interesse maior pelo campo, em outro
sentido esse interesse é já ‘de sempre’ um interesse específico. Não
é necessariamente a arte
popular que está interessando a muitos que dela se aproximam. Com isso,
eu não saberia dizer se há um fortalecimento do campo enquanto expressão
de arte.
Art&:
Qual é o lugar do artista popular? Onde ele pode ser encontrado?
RICARDO:
Penso que nesse mundo globalizado de hoje, com tantas interpenetrações,
tanta comunicação, tantos fluxos, movimentos, é difícil estabelecer
um lugar específico para o artista popular. Na realidade, não existe um gueto
próprio do artista, e isso
num certo sentido é até perigoso, mas ele pode ser encontrado na sociedade
como um todo. Você cruza esse país, de norte a sul, e o que vê de produção
popular, entendendo esse popular, o que talvez eu não tenha falado antes,
como expressão de arte até
certo ponto apartada do hegemônico, daquele saber que é aprendido
nos bancos formais de uma academia de arte,
que é dirigido, discutido e “incensado” pelos pequenos círculos definidores
do mercado das artes, formado,
em especial, por críticos, galeristas e marchands, mas entendendo essa arte como expressão do indivíduo, do segmento a que
pertence e a que dá expressão por meio do que realiza. A gente vê isso
nos grafites aí pelas paredes, quanta coisa fantástica vem surgindo.
A gente vê isso na batucada, no sambinha que acontece na esquina, no
botequim. Enfim, essa arte
já está impregnada no social, na vida, e depende de seus consagradores
tomar os exemplos e transformá-los em ícones desse mundo da arte
popular. Então, ela pode ser encontrada em todo lugar e existem espaços
reservados especificamente para ela, como a Sala do Artista Popular,
o Museu de Folclore
Edison Carneiro, o Museu Casa do Pontal, para citar apenas alguns que
estão no Rio de Janeiro. São espaços que se voltam à finalidade de ter
ali um repertório da arte
popular como um todo. Eu me lembro, neste momento, da existência, pertinho
da gente, do Pavilhão de São Cristóvão, com a feira dos nordestinos,
onde você consegue ter expressões que vão da dança ao teatro, à música,
ao artesanato e à culinária.
Muitas coisas que são formas de expressar e revelar os valores desse
povo brasileiro.
A Palha
que Conta Histórias o artesanato de palha no sul do país
Artesão
Maçariqueiro- A Arte do cristal em Blumenal.
D+20-
mostra virtual da sala do artista popular.
O Traiado
e o Ordido-Tecidos de Buriti dos gerais da Bahia.
ISSN 1806-2962
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