:: Teatro Comentado ::

Caros leitores, neste número da revista Art& ampliamos o tema Teatro na Educação, trazendo mais considerações sobre a importância do jogo dramático e do teatro e alguns parâmetros para diferenciá-los. Na seqüência comentamos o espetáculo Silêncio, da Cia. dos Comuns, finalizando com uma crítica feita ao espetáculo O garoto que não sabe rir, do Teatro de Gaiola.

O teatro é uma das expressões artísticas mais antigas na história da humanidade. Ele nasce da necessidade do homem de representar simbolicamente seu universo interior numa forma de comunicação que possa ser compartilhada por todos. Para Richard Courtney (2003, p. 281) “a imaginação dramática está no centro da criatividade humana e, assim sendo, deve estar no centro de qualquer forma de educação que vise o desenvolvimento das características essencialmente humanas”.

Na escola ou fora dela, a atividade teatral tem valiosa contribuição para oferecer ao ser humano. Dentre as tantas maneiras como esta manifestação artística pode colaborar no desenvolvimento do indivíduo, Vladimir Capella (2005, p. 13) destaca que o teatro procura compartilhar a experiência humana na difícil tarefa de viver, colaborando para que aceitemos e convivamos melhor com a nossa natureza complexa, paradoxal e problemática. Fátima Saadi (2006, p. 38), respondendo à pergunta Para que serve o teatro?, diz tratar-se de um modo de ver a vida em perspectiva, salienta que ele não dispensa a concretude do real, por que lida com espaço, tempo e com a figura (humana ou humanizada). Segundo Saadi, o teatro re-maneja a vida e a representa tornando sensíveis os seus diversos componentes e diversos níveis de profundidade em que eles se articulam.

O teatro reúne elementos que favorecem a expressão e o desenvolvimento do indivíduo, apresentando-se como uma espécie de “treino” para a vida, porque possibilita ao ser humano reviver, elaborar e reelaborar sentimentos, ações e atitudes, seja assitindo a uma peça teatral, seja participando do jogo dramático. Assim, tendo em vista esta possibilidade de “treinar” para a vida futura, de executar diversos papéis em diversas situações, torna-se adequado e oportuno o contato da criança e do adolescente com a atividade teatral. É nesse sentido que Barcelos (1975, p. 30) afirma que através da atividade do Teatro, o indivíduo — criança, adolescente ou pré-adolescente — vivencia as mais diversas formas de comportamento humano: chora, ri, luta, agride, indaga e descobre uma série de valores; desenvolve uma série de hábitos e atitudes, tais como, concentração, autenticidade, relaxação, confiança, poder de crítica e de diálogo que irão influenciar no seu comportamento afetivo e cognitivo, proporcionando ao indivíduo um crescimento global e harmonioso.

Não é comum imaginarmos crianças realizando uma encenação teatral, atuando, representando papéis, orientadas por uma história escrita no formato de texto dramático. Porém facilmente vemos crianças, nas suas brincadeiras, inventando personagens e dispondo-as em histórias que sua imaginação criou. Nesta manifestação infantil estão evidentes alguns princípios do teatro, da representação, do drama. Essa brincadeira, necessária e natural na infância constitui-se uma das maneiras pelas quais a criança conhece o mundo, as pessoas e as diferentes situações, sensações e emoções.

Estudiosos, como Olga Reverbel, Maria Clara Machado, Peter Slade, denominam “jogo dramático” essa atividade. Ela é, portanto, uma atividade que segue as regras da linguagem teatral. É uma brincadeira séria, pois lida com a representação da realidade, e essa é uma forma de conhecer melhor o mundo e de viver com ele. Dentre as várias características que o jogo dramático possui, destacamos inicialmente que o mesmo é realizado em grupo, constituindo uma criação coletiva, abandonando, dessa forma, a condição de simples brincadeira ou passatempo (que, por ventura pode vir a receber) para revelar-se como um trabalho produtivo, através do qual o conhecimento do indivíduo é articulado.

A base, tanto do jogo dramático quanto do teatro, ou seja, da encenação teatral, é o drama que, no sentido original do termo, significa “eu faço”, “eu luto”. Assim, ambos estão marcados pelo conflito, pela contradição entre vontade e ação, que é definida pelas personagens com suas características próprias. É importante salientar que, tanto o jogo dramático como o teatro são formas de expressão que se constituem numa idéia imaginada e na vontade de expressá-la, de demonstrá-la. Toda forma de expressão necessita de uma linguagem específica para manifestar-se, de um código particular, através do qual a idéia imaginada é expressa. Tratando-se do jogo dramático e do teatro, esse código é definido pela linguagem teatral, ou seja, pelo empenho artístico na representação de uma realidade. Afirmamos em outra oportunidade, quando abordamos os processos de leitura envolvidos na recepção da linguagem teatral, que esta se constitui na confluência de outras, ou seja, ela é a soma da verbalização do texto, da atuação dos atores e dos diversos elementos cênicos (cenários, figurinos, luzes e sons) de que o teatro contemporâneo dispõe para transformar o texto dramático em encenação (2007, p. 04).

Dessa maneira podemos distinguir jogo dramático e teatro, de acordo com o nível artístico/estético como a representação da realidade, tendo em vista a articulação da linguagem teatral, é efetuada. O jogo dramático vale-se da linguagem teatral de maneira pouco elaborada. Ele simplesmente acontece, sem maiores preocupações com acabamento ou com a utilização sistemática dos elementos cênicos. Os atuantes (que não são atores, mas sim “jogadores”) estão presentes a todo o momento e improvisando a partir de um projeto ou roteiro inicial, possível de ser transformado no decorrer da ação. Todos participam de alguma maneira: atuando, dando idéias, sendo uma personagem principal ou figurante, colocando no jogo dramático suas idéias, sentimentos, histórias particulares e emoções. O teatro, por sua vez, é o produto final de um processo desenvolvido a partir de um determinado texto dramático, que define personagens, bem como ações e diálogos para estas, e emprega a linguagem teatral de maneira mais elaborada, utilizando com esmero os elementos cênicos, possibilitando aos atores poderem atuar com clareza, a ponto de poderem repetir a encenação.      

Assim sendo, o jogo dramático é uma das maneiras adequadas de utilização da linguagem teatral pelas crianças. Ele possibilita que elas se expressem de modo criativo, e que sejam introduzidas e conduzidas, por meio do jogo, à linguagem teatral mais elaborada. Autores como Olga Reverbel, Viola Spolin, Ingrid Dormien Koudela e Richard Courtney assinalam a propriedade que o jogo dramático possui de conduzir o “jogador” para estágios cada vez mais elaborados, a ponto de colocá-lo em contato com a atividade teatral propriamente dita. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, Ensino de primeira a quarta série (1997, p. 85) também registram essa característica, ao afirmarem que, inicialmente, os jogos dramáticos têm caráter mais improvisacional e não existe muito cuidado com o acabamento, pois o interesse reside na relação entre os participantes e o prazer do jogo. Gradualmente, a criança passa a compreender a atividade teatral como um todo, o seu papel de atuante e observa um maior domínio sobre a linguagem cênica e todos os elementos que a compõem.

No que se refere ao papel do professor na realização do jogo dramático, vale ressaltar que, inicialmente, ele deve conhecer a fundamentação teórico-prática dessa atividade. De posse deste conhecimento, cabe a ele proporcionar condições para o desenvolvimento da atividade teatral na sua sala de aula, facilitando o processo de criação dos alunos, fazendo-se presente, conduzindo e participando do jogo. Ele precisa estar sempre atento, disponível, apresentar idéias iniciais para o desenvolvimento dos jogos, mudar o rumo da história, quando isso se fizer necessário, enfim, como em qualquer outra atividade, deve desenvolver sua função de condutor. 

ESPETÁCULOS COMENTADOS

Silêncio, Cia. dos Comuns

A Cia. dos Comuns, trupe do Rio de Janeiro, levou a Brasília o incrível espetáculo Silêncio. Dirigido por Hilton Cobra, a presença dos atores, cenário e luzes surpreendentes instiga os espectadores pelos movimentos e textos a refletirem sobre loucura e preconceito. Os lampejos de pensamentos não - lineares demonstram como o mundo é entendido pelos autores do “texto”: os próprios atores, numa criação coletiva que também tem alguns elementos de “Ressureição”, obra de Cruz e Sousa aqui retratada por Ângelo Flávio, Cidinha Silva e Fernando Bahia. Sim, aquele Cruz e Sousa denso e cinza, traduzido pelas luzes de Silêncio, quando você imaginaria encontrá-lo misturado à dança, à música? Pois é, além de teatro, o espetáculo tem dança, música e poesia, mas o teatro está lá, como numa pausa dentro de uma partitura musical, quando os instrumentos silenciam. A loucura, presente todo tempo, nos lembra do mar do nosso inconsciente que permeia todas as atitudes conscientes que temos. A loucura também nos lembra da imaginação, que habita os sótãos e os porões das mentes, como um lampejo de luz no cinza cotidiano do dia a dia. Como a luz de Silêncio. Toda a fragmentação do espetáculo, entretanto, não deixa de levar quem o assiste a refletir. O espectador pára e pensa, sim. Como se estivesse levando alfinetadas silenciosas todo o tempo. Elas vêm e param. Mas estão lá para que não nos esqueçamos de pensar na segregação (não só racial) e na loucura.

Silêncio foi coreografado por Zebrinha, tem direção musical de Jarbas Bittencourt, figurinos de Biza Vianna e Concepção de Luz de Jorginho de Carvalho e Marcos Paulo Siqueira. No elenco: Anna Paula Black, Bruno Gomes, Cridemar Aquino, Débora Almeida, Fábio Negret, Gabi Luiz, Rodrigo dos Santos, Sarito Rodrigues e Valéria Mona. A Cia dos Comuns já ganhou o prêmio Shell de Teatro, na categoria música, com o espetáculo Candaces. Silêncio foi assistido no Teatro Plínio Marcos, na Funarte, em Brasília e é recomendado para quem admira um bom espetáculo que mescla várias linguagens, faz pensar e para professores que desejem trabalhar os temas nele apresentados com seus alunos, além da apreciação estética da luz e seu interrelacionamento com o texto e o movimento dos atores. A trupe cobrou meia entrada de ONG’s, pré-vestibulares, escolas, rádios e associações comunitárias, atitude pela qual, merece os parabéns.

Rir com o outro

Gabriel Nagatani (estudante)

Para Henri Bergson, “o riso subentende um acordo prévio implícito, uma cumplicidade quase, (…) com outros que, reais ou imaginários, também riem”. É por meio desse deslocamento da dinâmica do riso para o plano social que se pode apreender um pouco da inquietação de Adasir, o garoto que não sabe rir, personagem que dá nome à peça encenada pela companhia Teatro de Gaiola. Se, enquanto elementos de uma prática discursiva, tanto o sujeito que ri como o objeto de seu riso são atravessados por relações de poder, a incapacidade de rir diante do risível coloca em cartaz o tema principal do espetáculo: a diferença.

O garoto que não sabe rir trata-se, então, de mais uma peça que se propõe a falar de igualdade? Talvez, mas com algumas particularidades que precisam ser apontadas. Jorge Larrosa e Carlos Skliar, na apresentação do livro Habitantes de Babel, observam que palavras como igualdade, diversidade, inclusão ou respeito, ao tornarem-se marcas do discurso dominante, acabam por ser esvaziadas de seus sentidos originais, instituintes e, como tal, potencialmente desestabilizadores. Esse esvaziamento de significados fica evidente em muitos discursos “politicamente corretos”, pontuados por enunciados-chave do tipo “todos somos iguais”: embora destinados a pregar a tolerância com as diferenças (com o objetivo de agregá-las, ordená-las, administrá-las), esses discursos têm o efeito aparentemente paradoxal de negar a existência dos diferentes, silenciando-os.

Fugindo a uma concepção orgânica de pluralidade, o que encanta em O garoto que não sabe rir é a maneira como as diferenças são apresentadas pela via da própria diferença. E é assim que o desvelamento da alteridade das personagens leva o espectador – criança ou adulto – a um estranhamento diante do outro e de si mesmo, pois, como diz Adasir, “todos somos iguais e diferentes e tudo ao mesmo tempo”. Mais do que um discurso sobre a igualdade, a peça é uma sensível poética das diferenças, não apenas pela temática, mas também pelo modo como a evolução do texto não se conforma a uma narrativa linear, pelos conflitos que não se resolvem em um só final e, sobretudo, pela forma como a ruptura entre a realidade e a representação é propositalmente marcada no início e no final da peça.

Tal como na Torre de Babel, pelo menos quatro linguagens confundem-se em O garoto que não sabe rir: a linguagem propriamente dramática, a linguagem do musical, a linguagem circense e uma espécie de metalinguagem, na qual o conteúdo da representação volta-se para o próprio ato de representar. Todavia, contrariando o que Larrosa e Skliar chamam de pensamento antibabélico, essa “confusão” não dificulta o entendimento, mas estrutura a peça, deixando entrever a transformação por que passa cada linguagem ao encontrar-se com as demais no palco.

Colocando a alteridade sob as luzes da ribalta, O garoto que não sabe rir , que tem a dramaturgia de Rômulo Rodrigues e a direção de Fabiano Tadeu Grazioli, ensina que a convivência com o outro é marcada por um eterno e inevitável conflito. Porque somos babilônicos (habiantes de Babel), não podemos simplesmente ser o outro ou estar, pacificamente, com o outro. A exemplo de Adasir e o palhaço Palhaço, nosso maior desafio é ser com o outro, constituindo-nos no encontro com as diferenças. Babelicamente.

Referências Bibliográficas:

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais: Arte. (Educação Fundamental – primeira à quarta série). Brasília, 1997.

COURTNEY, R. Jogo, Teatro e Pensamento: as bases intelectuais do teatro na educação. São Paulo: Perspectiva, 2003.

CAPELLA, V. Mesa redonda três – perguntas. Revista do 2º Seminário Nacional SESC CBTIJ de Teatro para a Infância e a Juventude. Rio de Janeiro: SESC RJ, 2005.

SAADI, F. Para que serve o teatro? Revista do 3º Seminário Nacional SESC CBTIJ de Teatro para a Infância e a Juventude. Rio de Janeiro: SESC RJ, 2006.

BARCELOS, H. Desenvolvimento da Linguagem Teatral da Criança. Revista de Teatro da SBAT - Seminário de Teatro Infantil. Serviço Nacional de Teatro - MEC, 1975.

GRAZIOLI, F.T. Os processos de leitura e a recepção do espetáculo teatral. Revista Voz das Letras – Universidade do Contestado, Concórdia, V. 1, Nº. 6, semestral, 2007. Disponível em: <http://www.nead.uncnet.br/2004/revistas/letras>. Acesso em: 18 set. 2008.

Professores Fabiano Tadeu Grazioli e Gisele Martini, editores de Teatro Comentado


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