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O espaço-sonoro como a criação de uma relação [imagem visual-tempo] – [som-espaço]
Autor: Tadeu Moraes Taffarello[1] - tadeutaffarello@gmail.com

Resumo: O presente artigo tem por objetivos investigar o espaço-sonoro e apresentar algumas de suas possíveis manifestações em música. Kandinsky, em seus escritos, nos ajudou a definir o espaço-sonoro como a inversão da relação [som-tempo] - [imagem visual-espaço] em uma nova relação [imagem visual-tempo] – [som-espaço]. Em música, analisaremos o espaço-sonoro através da prática composicional e dos escritos de Messiaen, Ligeti, Boulez, Denise Garcia e Almeida Prado. Como conclusão, observou-se, auxiliado pelos pensamentos de Deleuze e Guattari, que, na realidade, o espaço-sonoro apresenta-se na potência que a música tem de tornar expressivo o espaço.

Palavras-chave: Música, Espaço-Sonoro, Messiaen, Ligeti, Boulez. Deleuze.

Abstract:The main goals of this present article are to investigate the sonore-space and to show some of its possible manifestations. Kandinsky, in his writes, helped us to define the sonore-space as the inversion of the relationship [sound-time] – [visual image-space] in a new relationship [visual image-time] – [sound-space]. In music, we will analyze the sonore-space through the compositional practice and the writes of Messiaen, Ligeti, Boulez, Denise Garcia and Almeida Prado. As a conclusion, it was observed, based on the thoughts of Deleuze and Guattari, that, actually, the sonore-space is shown as the potency that music it has to turn the space expressive.

Key words: Music, Sonore Space; Messiaen, Ligeti, Boulez, Deleuze.

Introdução

Ao longo da História das Artes, uma distinção se faz entre as artes que se ocupariam do espaço, as artes plásticas, e aquela que se ocuparia do tempo, a música. Por “se ocupar” nos referimos como ter para si o privilégio do desenvolvimento artístico de tal ou tal parâmetro. Porém, para alguns autores e, sobretudo no século XX, essa divisão se faz cada vez menos clara. Isso porque, cada uma ao seu modo, as artes plásticas começaram a se ocupar mais e mais da dimensão temporal, enquanto que a música passou a se preocupar também com a sua dimensão espacial. Dessa maneira, um novo conceito surge, o espaço-sonoro, junção dos dois parâmetros e presente tanto em escritos de músicos, como de filósofos.

Curiosamente, não foi nem um filósofo e nem ao menos um músico quem nos ajudou a definir a nova possibilidade que se abre na intersecção entre o espaço e o tempo: foi o artista plástico Kandinsky. Ele é conhecido não apenas por seu trabalho pictórico, mas também por seus estudos teóricos e conceituais expressos em seus dois livros “Do espiritual na arte”[2] e “Ponto e linha sobre plano”[3], e nas suas aulas na Bauhaus compiladas em livros. Foi ele quem nos chamou a atenção a esse novo problema surgido no século XX, o do espaço-sonoro, e, de certa maneira, nos ajudou a conceituar e pensar o espaço-sonoro também na música. Ele afirma, em seus escritos:

“O problema do tempo na pintura é autônomo e complexo. A distinção aparentemente clara e justificada:

Pintura – Espaço (Plano)

Música – Tempo;

Tornou-se subitamente discutível por um exame mais aprofundado” [KANDINSKY,   1997, P. 27].

Com essa afirmação, nasce o germe da idéia do espaço-sonoro que está constituído na inversão da relação [som-tempo] - [imagem visual-espaço] em uma nova relação [imagem visual-tempo] – [som-espaço]. Veremos, no presente artigo, algumas possibilidades de como essa idéia se aplica na música.

O espaço-sonoro na música

Nesse momento, veremos como a noção do espaço-sonoro permeia o pensamento de três compositores consagrados na literatura do século XX, Messiaen, Ligeti [APUD CASNOK] e Boulez; e realizaremos ainda um paralelo com o pensamento de dois compositores brasileiros, Denise Garcia e Almeida Prado.

Olivier Messiaen e o som-cor

No domínio musical, a dúvida que Kandinsky tinha faz ressonância no pensamento do compositor francês Olivier Messiaen. Em seus escritos, Messiaen vincula a percepção das cores à dos sons e projeta esta idéia na formulação de uma teoria e gramática musical que lhes são próprias[4].

Para Messiaen, o som tem em si uma cor que lhe é peculiar. A esse binômio ele deu o nome de som-cor (Le son-couleur). Em seu Tratado, o compositor ressalta que esta visualização da cor do som não se trata nem de uma visão ocular, nem de uma alucinação provocada por uma droga qualquer e muito menos uma doença sinestésica, tal como, por exemplo, o caso do pintor Blanc-Gatti[5], que pintava sons devido a uma disfunção neurológica que lhe proporcionava sensações sinestésicas. A visualização da cor, em Messiaen, é simplesmente “uma visão interior, um olho do espírito” [MESSIAEN, 2002, P. 97][6].

O termo som-cor, segundo Messiaen, é a ligação que a música estabelece com dois fenômenos distintos: (i) cores complementares e (ii) ressonância natural dos corpos sonoros (Fig. 01). A ressonância natural dos corpos sonoros cria uma série harmônica reproduzível pelas notas que se sucedem em diminuição intervalar a partir de um baixo dado [MESSIAEN, 2002, P. 102]. É também conhecida como série harmônica:

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Fig. 01: Ressonância natural dos corpos sonoros em uma representação aproximada.

Adiantando um pouco a discussão, perceberemos mais adiante, ao analisarmos a maneira pela qual Almeida Prado pensa o espaço-sonoro (Fig. 08), que há um paralelo entre os pensamentos de ambos os compositores. Tanto Messiaen quanto o compositor paulista têm como ponto de partida de sua concepção espacial do fenômeno sonoro a série harmônica apresentada no exemplo acima (Fig. 01).

Em relação às cores complementares, o autor nos propõe uma experiência. Sob uma folha de um branco extremo coloquemos uma folha um pouco menor de um vermelho ardente. Ao olharmos atentamente a linha demarcatória entre o vermelho e o branco, perceberemos que o vermelho, em determinado momento, irá se intensificar e se tornar mais vermelho, enquanto o branco, por sua vez, será irradiado de um efêmero verde pálido. Uma relação semelhante ocorre se trocarmos a folha vermelha por outra verde ou laranja ou azul ou amarela ou violeta etc. [cf.: MESSIAEN, 2002, P. 103].

Esses dois fenômenos – ressonância natural dos corpos sonoros e cores complementares – estão, para o autor, em profunda relação de convergência. Portanto, assim como não se consegue enxergar as cores complementares sem que haja, ao menos, outra cor contrastante com a qual a primeira se relaciona, não é possível atribuir uma cor a uma única nota. Não são os sons isolados que engendram cores, são as simultaneidades, ou melhor, os complexos sonoros. A cor é, também, influenciada pelo registro - grave, médio ou agudo - onde ela se encontra, pelas transposições e pelo timbre dos instrumentos que a tocam. Esse processo se dá da seguinte maneira:

  • Certa cor vai se reproduzir em todas as oitavas: ela será normal no registro médio; degrade ao branco (ou seja, mais clara) em direção ao agudo; e degrade ao preto (ou seja, mais sombreada) em direção ao grave;

  • Ao contrário, se nós transpusermos uma simultaneidade em qualquer semitom, ele irá mudar de cor [MESSIAEN, 1978, PP. 9-10 e 1988, PP. 5-6];
  • Pode ocorrer que uma orquestração resfrie uma cor quente ou, de outra maneira, esquente uma cor fria [cf.: MESSIAEN, 2002, P. 97].

Já vimos já como Messiaen pensa o som-cor e quais são os fatores extramusicais que o auxiliam na percepção do mesmo: sonoramente através da ressonância natural dos corpos sonoros, representada pela série harmônica; e visualmente através das cores complementares. Veremos agora quais são as técnicas composicionais empregadas pelo compositor para criar, em sua própria música, a cor. Para o compositor, o som-cor mantém uma relação direta com dois aspectos presentes em sua obra: os modos de transposições limitadas e os complexos sonoros. Esses dois fatores são técnicas composicionais e formam uma gramática musical: eles são explicáveis em termos musicais e, por isso mesmo, passíveis de reprodução.

Os modos de transposições limitados (Tabela 1) são modos transponíveis somente certo número de vezes, após o que eles recaem sobre as mesmas notas [cf.: MESSIAEN, 1988, P. 7]. Eles são sete no total. Além disso, para Messiaen, cada modo tem, em cada transposição, uma cor específica (Tabela 1). Dessa maneira, percebemos que:

Tabela 01. Modos de Transposições Limitadas e as relações das suas transposições com as cores [MESSIAN, 2002].

Nº.

Exemplo

Trans-posição

Cor

1

-

-

2

1

Azul violeta

2

Ouro e castanho

3

Verde

3

1

Laranja, ouro e branco leitoso

2

Cinza e malva

3

Azul e verde

4

Alaranjado, vermelho, com um pouco de azul

4

1

Cinza e ouro

2

Reflexos cinza de ferro, rosa malva e amarelo acobreado, preto e azul claro, verde e violeta púrpura

3

Amarelo e violeta

4

Flores de petúnias: violeta sombreado, branco e violeta púrpura

5

Violeta intenso, com zonas cinza-malva

6

Vermelho carmim, púrpura violáceo.

5

   

6

1

Grandes letras douradas sobre fundo cinza

2

Cor de couro e chocolate

3

Amarelo enxofre transparente

4

Fitas verticais amarelas, violetas e pretas

5

Ouro, azul pálido, violeta com fitas castanhas

6

Fitas verticais brancas e pretas.

7

   

O que mais nos chama a atenção, nesse momento, é o grau de precisão proposta por Messiaen na relação entre os modos de transposições limitados e as cores. Decerto que o compositor explica que a sua visualização das cores era um processo mental, é impressionante o grau de nuanças existentes na relação criada entre o som e a cor. As cores por ele propostas são de uma sutileza e de uma precisão ímpares.

Em relação aos complexos sonoros, Messiaen cita o uso de quatro deles: os acordes com inversão transpostas sobre o mesmo baixo; os acordes de ressonância contraídas; os acordes do total cromático [MESSIAEN, 1988, P. 8]; e os acordes vitrais, “tournants”, que giram sobre si mesmos. Vejamos nos exemplos a seguir (Fig. 02, 03, 04, 05 e 06):

  • Acordes com inversões transpostas sobre o mesmo baixo (Fig. 02): acordes que têm a sua posição modificada, porém permanecem com o mesmo baixo. Essa nota baixo não precisa, necessariamente, pertencer ao acorde. Para Messiaen, essas mudanças produzem acordes com cores análogas, porém não semelhantes;

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Fig. 02: Acordes com inversões transpostas sobre o mesmo baixo.

  • Acordes de ressonâncias contraídas (Fig. 03): acordes com duas cores: a cor do acorde appogiatura e a cor do acorde real, complicadas pelos sons resultantes graves reconduzidos ao médio contra as outras notas;

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Fig. 03: Acordes de ressonâncias contraídas[7]
  • Acordes do total cromático (Fig. 04): conjunto de doze sons compreendendo oito sons coloridos e quatro sons suplementares agudos que reentram na ressonância dos oito primeiros. Não se trata de um cluster.

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Fig. 04: Acorde do total cromático.

  • Os acordes de efeito vitral, “tournants”, são simultaneidades que giram sobre um grupo específico de alturas que mudam de oitavas. No seu Tratado, na análise da segunda peça dos Sept Haïkaï, ele cita o uso de três acordes desse tipo.

Demonstraremos o segundo deles. O grupo de notas utilizado no acorde encontra-se a seguir (Fig. 05):

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Fig. 05: Sonoridades utilizadas em um exemplo de acordes vitrais

Esse grupo de notas, mudando aleatoriamente de oitavas, é redisposto de diversas maneiras (Fig. 06):

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Fig. 06: Acordes vitrais, “tournants”.

O resultado sonoro que se atinge com a utilização de acordes vitrais é a sensação de que algo está se movendo mesmo sem sair do lugar. Ou seja, devido ao uso de um limitado número de alturas, conforme vimos no exemplo acima (Fig. 06), a transposição de certas alturas em oitavas muda a disposição intervalar da simultaneidade e faz com que ela também mude a sua cor. Ou seja, para Messiaen, cada um dos acordes em efeito vitral, apesar de ser composto com as mesmas notas de outro acorde vitral, apresenta uma cor diferente.

Os modos de transposições limitadas e os complexos sonoros são ferramentas composicionais e poéticas criadas por Messiaen para a reprodução da cor em sua música. Porém, o som-cor desperta nas pessoas uma sensação particular. Essa sensação é descrita por Messiaen principalmente em suas Conferências pelo termo de “éblouissement”. Ela é uma sensação pretendida; é o que o compositor almeja despertar em seus ouvintes através do uso do som-cor; uma sensação espacial, da cor, transposta, pelo compositor, para a música. É o resultado final do som-cor.

Em suas próprias palavras, na Conferência de Notre-Dame, ‘éblouissement’ é comparado à sensação de êxtase em que vitrais de certas catedrais européias nos deixam:

“O que fizeram os mestres vidraceiros da Idade Média? O que se passa nos vitrais de Bourges, nas grandes vidraças de Chartes, nas rosáceas de Notre-Dame de Paris e na maravilhosa, incomparável vidraria da Sainte Chapelle? Há, a princípio, uma grande gama de personagens, grandes e pequenos, que nos contam a vida do Cristo, da Virgem Santa, dos profetas e dos santos: é uma espécie de catecismo por imagem. Esse catecismo [...] nos instrui através de mil intenções e mil detalhes. Mas, de longe, sem lunetas, sem escadas, sem qualquer outro objeto que possa vir ajudar a nossa vista deficitária, nós não vemos nada; nada além do que um vitral todo azul, todo verde, todo violeta. Nos não compreendemos, nós somos ‘éblouis’ (maravilhados, encantados)” [MESSIAEN, 1978, P.12].

O “éblouissement” e o som-cor mantêm entre si, portanto, uma forte relação. Na realidade, o “éblouissement” é o estado de alma objetivado pelo uso do som-cor.

Vimos, dessa maneira, que alguns fatores se complementam para a compreensão da maneira pela qual Messiaen une a dimensão temporal à espacial. Para ele, o som-cor, espécie de espaço-sonoro, é percebido com a ajuda de dois fatores – as ressonâncias naturais dos corpos-sonoros e as cores complementares – e é transmitido na sua música por outros dois – os modos de transposições limitadas e os complexos sonoros. Eles são as duas ferramentas composicionais e poéticas utilizadas por Messiaen na criação do som-cor. Vimos também que a sensação almejada pelo compositor francês quando utiliza o som-cor é o “éblouissement”, que nada mais é do que um estado da alma que fica “encantada” ao vivenciar uma experiência artística.

György Ligeti e a relação entre o audível e o visível

Um segundo compositor ao qual gostaríamos de nos referir para termos como base a proximidade entre som e imagem visual é György Ligeti. No livro Música, a pesquisadora Yara Borges Caznok[8], aborda uma possível forma de relação audível-visível em uma peça específica do compositor húngaro. Ela destaca, neste livro, o processo de visualização do sonoro na peça Continuum para cravo solo. Caznok demonstra como, em Ligeti, a utilização de elementos da gramática musical traz também para a música a dimensão do visível. Nesse aspecto podemos fazer um paralelo com a prática de Messiaen, pois esse também partia de ferramentas composicionais específicas para a criação do som-cor.

Acompanhemos esta análise da autora. Em Continuum estaria, entre os principais procedimentos composicionais empregados pelo compositor húngaro, o uso de trêmulo, a ampliação de âmbito desse mesmo trêmulo, a sobreposição de texturas, o deslocamento rítmico através da repetição de pequenas células, a ampliação e contração dos “motivos-onda” [CAZNOK, 2003, P. 192] geradores da forma. Isso foi chamado pela autora de “desenvolvimento paralelo contínuo” entre as duas mãos do cravista. Ou seja, em Ligeti há a utilização de procedimentos já pré-existentes na literatura musical: não lhe foi necessário criar nem um novo instrumento, nem uma nova forma de escrever uma partitura, nem relacionar o cravo a uma vivência extramusical qualquer. Aliás, pelo contrário, há, para a autora, nessa peça, um forte diálogo com algumas peças da literatura musical, em especial os prelúdios do Cravo Bem Temperado, como o em dó menor do primeiro volume [IDEM, P. 87]. Ou seja, Ligeti dialoga, em sua música, com os elementos da própria música. E nem por isso essa peça deixa de ganhar uma dimensão visual.

Os principais procedimentos composicionais encontrados por Caznok em Ligeti são o de expansão e o de contração:

  • Expansão e contração dos âmbitos (alturas) das duas mãos, ocorrendo um primeiro momento entre os compassos 1 a 57 [CAZNOK, 2003, P. 192], em um segundo momento entre os compassos 56-86 [IDEM, P. 196], um terceiro entre os compassos 92-143 [IDEM, P. 202] e um quarto ainda entre os compassos 143-205 [IDEM, P. 210]. Esses quatro momentos formam, para a autora, cada um deles uma seção, sendo que, entre a segunda e a terceira seções, há uma cessação do movimento através da aparição de simultaneidades do sistema tonal (Si M – si m – 5ºJ) [IDEM, P. 201].

  • Expansão e contração do número de notas destinado a cada mão (ritmo) [CAZNOK, 2003, P. 202]. Esse procedimento é gerador de uma polimetria através de deslocamentos agógicos [IDEM P. 199] entre as mãos, pois elas não têm, entre si, o mesmo procedimento de expansão e contração;
  • Ampliação e contração da audibilidade de centros momentâneos. A primeira forte contração da audibilidade acontece entre os compassos 10-33, onde, gradativamente, o intervalo inicial de 3ª si b – sol perde a sua força. [CAZNOK, 2003, P. 190]. Após isso, há, ainda, a polarização do centro em fá # - lá, nos compassos, 43-45, o que é uma ampliação da audibilidade desse intervalo [IDEM, P. 193]. Esse mesmo procedimento ocorre com o intervalo de 2ª fá # - sol # (compassos 50-55), com a nota ré # (compassos 73-78), com a 5ª J si – fá # (compassos 87-91) etc.;
  • Ampliação do âmbito interno entre as mãos na terceira seção (textura) [CAZNOK, 2003, P. 207].

É importante percebermos, portanto, que Ligeti, apesar de utilizar elementos da gramática musical, coloca-os em um agenciamento diverso ao, por exemplo, utilizado por Bach – em quem talvez ele tenha se espelhado para escrever tal peça – e, por isso, cria entre eles, elementos musicais, uma nova perspectiva de escuta. Essa perspectiva de escuta dos elementos musicas em Ligeti é, para a autora, comparável à idéia de Kandinsky, para quem um ponto torna-se linha ao entrar em movimento:

“A apreensão dessa unidade (seções e procedimentos composicionais da peça) deixará ao ouvinte uma dúvida que se crê ser a proposta de Ligeti: (i) a obra é constituída por uma sucessão de pontos articulados, acompanhados pelo ruído audível do mecanismo do cravo e da madeira que reverbera; (ii) ou esses pontos, atingindo seu ponto crítico de fusão, se transformam em uma linha contínua, lembrando Kandinsky quando diz que a linha não é senão um ponto em movimento?” [CAZNOK, 2003, P. 212].

Dessa maneira, Yara encontra, na peça de Ligeti, procedimentos sonoros que se comparam a procedimentos espaciais: pontos; linhas retas, pontilhadas ou contínuas; linhas onduladas; volumes plásticos; opacidade ou transparência; sensação de figura e fundo; nitidez ou embaçamento; elasticidade ou retração; preenchimento do espaço; superfície (contorno, bordas); concavidade e convexidade simultânea; horizontalidade e verticalidade simultânea; expansão ou afunilamento da superfície [IDEM, PP. 212-3]. Cada um desses elementos é relacionado pela autora a um procedimento específico utilizado por Ligeti na composição do Continuum, chamando a atenção, porém que “as formas de comparecimento visual descritas não são as únicas possíveis, nem todas elas são evocadas sempre pelos mesmos elementos musicais” [IDEM, P. 213].

Demonstrou-se, através do estudo de uma peça de Ligeti [APUD CAZNOK], que a espacialidade no discurso musical pode ser atingida com o uso mesmo de elementos estritamente musicais. No compositor húngaro, o procedimento de expansão e contração de elementos musicais postos em um agenciamento novo causa a sensação visual de pontos e linhas em diversos tipos de movimentos. Dessa maneira, percebemos a proximidade que Ligeti tem, em sua obra, com Messiaen, pois ambos utilizam ferramentas composicionais na criação de um espaço-sonoro, e com Kandinsky, para quem o som é comparado à movimentação do ponto e as diversas formas picturais que essa movimentação implica.

Pierre Boulez e o liso e o estriado

Uma terceira relação entre visual e sonoro, da inversão espaço-tempo, estaria na idéia musical de Pierre Boulez[9]. Em Penser la musique aujourd´hui, o compositor confronta a idéia de espaço-sonoro a partir dos parâmetros da altura, tempo, timbre, amplitude e dinâmica aplicados à música. A distribuição das estruturas em função dos quatro componentes citados cria, para o autor, um espaço real. Pensando sobre as possibilidades abertas pelo seu próprio ateliê musical, o compositor francês procura situar, a partir dessa reflexão, a música serial dentro de um contexto mais amplo do que apenas a simples discussão entre tonal e não-tonal. O seu objetivo, portanto, é o de “conceber e realizar uma relatividade dos diversos espaços sonoros musicais” [BOULEZ, 1986, P. 82], incluindo, nessa concepção, o fazer musical do Ocidente, primordialmente. Ou seja, Boulez define, em seu texto, quais são as qualidades do espaço-sonoro nas quais estão inseridas as práticas musicais atuais e históricas, tentando, assim, contextualizar a música serial e confrontá-la, para uma melhor compreensão de seus exemplos, com a prática tonal.

Toda a sua discussão começa na hipótese aberta pelo compositor de que o continuum musical não é um trajeto, um caminho que liga um espaço a outro, ou um ponto a outro do espaço. O continuum é a própria possibilidade de corte a que um espaço infinito se apresenta. Ou seja, um continuum é um corte de algo maior do que ele, trecho de algo que o engloba. Pensando no parâmetro das alturas, um continuum pode se apresentar, por exemplo, como uma escala qualquer, pois essa é um corte do ruído branco, que engloba em si todas as alturas existentes. Parece-nos que, na realidade, o espaço todo, infinito, no caso exclusivamente das alturas, se apresenta na forma de todas as freqüências audíveis ou não pelo ser humano. E o continuum é o recorte que se dá a isso. A qualidade desse corte é o que define a qualidade desse continuum. Essa qualidade pode se apresentar de duas maneiras: (i) quando o corte é realizado de uma maneira definida por um padrão, ele se renova regularmente; e (ii) quando o corte não é preciso, não-determinado por nenhum padrão, ele intervirá livre e irregularmente. Obtemos, portanto, uma correspondência, a categoria de exemplos, com os dois casos: (i) corte padronizado: temperamento; (ii) corte livre: não-temperamento[10]. Pensando a respeito do temperamento, é de se convir que, devido às práticas culturais da música Ocidental, e devemos nos lembrar que Boulez dialoga com elas e parte de suas premissas, ele, temperamento, proporciona aos nossos ouvidos pontos de apoio confiáveis aos quais podemos nos basear e nos situar dentro do espaço-sonoro. Ou seja, o temperamento causa em nós, devido à cultura em nós enraizada, “estrias”, que dizer pontos sobressalentes a respeito dos quais podemos perceber a sua profundidade, largura, altura e distância entre uma estria e outra. O temperamento, portanto, estria o espaço-sonoro ao nos propiciar pontos sobre os quais podemos nos apoiar. Do outro lado, o corte não-definido, não-temperamento das alturas, assemelha-se a uma superfície perfeitamente “lisa”, tal qual o oceano aberto, por exemplo, onde, pelo fato de nosso olho não ter para si nenhuma possibilidade de apoio, não tem nenhuma referência e não pode, assim, “estimar nenhuma distância” [BOULEZ, 1986, P. 84].

Chegamos, assim, à definição de duas possibilidades do continuum (Tabela 2).

Tabela 2: Qualidade do espaço-sonoro em relação ao continuum em Boulez

 

Qualidades do espaço-sonoro do parâmetro “altura” em função das características do continuum

O que?

Definição

Qualidades

Características

Exemplo

Continuum

Corte realizado sobre o total de freqüências audíveis e inaudíveis

Estriado

Corte definido por um padrão;

Renova-se regularmente

Temperamento

Liso

Corte não-preciso, não determinado; livre e irregular

Não-temperamento

As qualidades definidas na tabela acima, espaços estriado e liso, estão em profunda relação com a percepção. E, por isso mesmo, são ambíguas. Ou seja, é possível “camuflar” um espaço estriado em um liso e, de outra maneira, “camaleonar” um espaço liso sobre um estriado. Um exemplo de como isso ocorre é o de criar, em um espaço liso, intervalos que mantenham proporções sensivelmente iguais para que o ouvido os conduza a um espaço estriado; ou, por outro lado, em um espaço estriado, crias intervalos desproporcionais por demais para que, no ouvido, se instale um espaço liso. Longe de serem duas qualidades que interagem entre si por oposição, liso e estriado são, na realidade, diferenciados apenas quantitativamente – diferença mais de grau do que de modo –, e há trechos, portanto, na fronteira que as divide, onde as qualidades do liso e do estriado se confundem. A essas possibilidades ambíguas, Boulez deu a classificação de espaços não-homogêneos, justamente por não estarem homogeneamente nem na qualidade do liso e nem naquela do estriado. Assim, podemos criar uma figura (Fig. 07) que represente as zonas apropriadas aos espaços homogêneos liso e estriado e a posição ocupada pelo espaço não-homogêneo.

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Fig. 07: Relação quantitativa entre os espaços homogêneos liso e estriado e o espaço não-homogêneo do continuum.

Visto que há uma relação quantitativa dentro dos espaços homogêneos, é de se supor que, portanto, há várias possibilidades de se instaurar um espaço liso e um espaço estriado. O que, se assim não fosse, eles não abarcariam um espaço não-homogêneo. Ao espaço estriado – temperamento –, uma nova subdivisão é possível de ser acrescentada, portanto. Àquele espaço estriado cujo módulo de corte[11] se apresenta invariável e reproduzirá as freqüências de base em todo o âmbito dos sons audíveis, damos o nome de um espaço reto. Um exemplo de espaço reto é o sistema tonal onde, não importando em qual oitava ele se apresente, o seu padrão é imutável. Por outro lado, ao espaço cujo módulo de corte se apresenta variável, regular ou irregularmente, é dado o nome de espaço curvo. Aos espaços curvos cuja variação do módulo é regular, diz-se que ele é focalizado; já aquele cuja variação é irregular, não-focalizado. Um exemplo de um espaço curvo poderia ser uma escala (módulo) que levasse em consideração a escala de mels, ou seja, onde, ao se variar a freqüência - grave, média ou aguda - considera-se também a sensação causada por essa variação. Já no espaço liso, a única maneira de determinar o seu grau de estriamento é através de uma distribuição estatística das freqüências: quanto mais há a tendência de se privilegiar uma freqüência sobre as demais, o estriamento ocorre. Dessa maneira, fica-nos mais claro visualizarmos esses graus de alisamento do espaço estriado e de estriamento do espaço liso através de uma tabela (Tabela 3).

Tabela 3: graus de alisamento do espaço estriado e de estriamento do espaço liso em Boulez.

Graus de alisamento do espaço estriado e de estriamento do espaço liso

Espaço homogêneo estriado (temperado)

Espaço não-homogêneo

Espaço homogêneo liso (não-temperado)

+ estriado - estriado

Direção do alisamento do espaço estriado

- liso + liso

Direção do estriamento do espaço liso

Espaço reto

Espaço curvo

Ambigüidade

Distribuição estatística das freqüências

focalizado

não-focalizado

Desigual

Igual

Módulo fixo

Módulo variável regular

Módulo variável irregular

Espaços dirigidos

Espaços não-dirigidos

Sistema tonal

Escala de mels.

Intervalos estriados desproporcionais; intervalos lisos com proporções sensivelmente iguais

Pseudo-foco

Sem módulo

Localizando, na tabela acima, a técnica serial, veríamos que ela ocupa, na realidade, o espaço estriado (temperado) reto, pois possui um módulo (padrão de corte) fixo, sem variação. Se colocarmos em jogo, dessa maneira, uma permutação, veríamos que ela passaria a ocupar um espaço estriado curvo focalizado, pois, apesar de seu módulo ser variável, ele é regularizado pela seqüência da permutação. Se pusermos em prática ainda, juntamente com a permutação, outras técnicas de desenvolvimento da série, tais como a inversão, a retrogradação e a transposição, todas elas constituídas de maneira aleatória, teríamos, então, um espaço estriado curvo não-focalizado composto pela junção complexa de diversas formas de variação de uma série que, pelo próprio fato de serem compostas entre si, tornam a variação do módulo irregular. Podemos dizer, portanto, que uma música serial, no sentido no qual Boulez a compunha, compreende um espaço estriado (com temperamento) curvo (módulo variável) não-focalizado (irregular, com variações complexas).

Já em relação às categorias do espaço liso, o tipo de música que, atualmente, mais as utilizam é, sem dúvidas, a eletroacústica. A facilidade de promover um corte não-padronizado possibilita ao desenvolvimento eletrônico ao qual a música passa atualmente uma facilidade na criação de espaços lisos.

Essas são as categorias criadas por Boulez na percepção do espaço-sonoro das alturas. Ele destaca, entretanto, que apenas a partir do contexto que poderá ser colocada em prática tal classificação.

Da análise do texto de Pierre Boulez, o que se sobressai é a definição dos espaços-sonoros em categorias de liso e estriado. Essa categorização é, também, discutida nos textos de Deleuze e Guattari[12]. No platô intitulado “1440 – o liso e o estriado” os autores, após uma rápida exposição do pensamento do compositor francês, debatem algumas das possibilidades que se abrem diante dessa nova perspectiva. Qual seria, pois, a forma de expressão de um espaço liso e de um estriado? O que é neles expressivo? A resposta para essas questões encontra-se também em Deleuze e Guattari. O espaço liso conjuga para si as hecceidades, os acontecimentos, os afetos, os sintomas, as intensidades; enquanto que o espaço estriado torna expressivo as coisas formadas e percebidas, as propriedades, a matéria, as distâncias, as medidas.

“O espaço liso é ocupado por acontecimentos ou hecceidades, muito mais do que por coisas formadas e percebidas. É um espaço de afectos, mais que de propriedades. É uma percepção háptica mais do que óptica. Enquanto no espaço estriado as formas organizam uma matéria, no liso materiais assinalam forças ou lhes servem de sintomas. É um espaço intensivo, mais do que extensivo, de distâncias e não de medidas. Spatium intenso em vez de Extensio. Corpo sem órgãos, em vez de organismo e de organização. Nele a percepção é feita de sintomas e avaliações mais do que de medidas e propriedades. Por isso, o que ocupa o espaço liso são as intensidades, os ventos e ruídos, as forças e as qualidades tácteis e sonoras, como no deserto, na estepe ou no gelo. Estalido do gelo e canto das areias. O que cobre o espaço estriado, ao contrário, é o céu como medida, e as qualidades visuais mensuráveis que derivam dele” [DELEUZE & GUATTARI, 2005, P. 185].

É importante, portanto, termos em consideração uma nova diferenciação criada por Deleuze e Guattari entre os espaços liso e estriado. O liso é um espaço direcional, enquanto o estriado é dimensional. Os autores preocupam-se, também, com a maneira pela qual um espaço estriado transforma-se em liso e vice-versa. No primeiro caso, do liso transformando-se em estriado, eles nos trazem o exemplo do mar – espaço liso por excelência. No curso da História, o mar foi aos poucos perdendo as características lisas através de um processo de estriamento. Esse processo ocorreu pelo desenvolvimento das idéias das latitudes, das longitudes e dos mapas. O período em que isso mais se desenvolveu foi durante as Grandes Navegações. Ou seja, houve, em um espaço liso por excelência, o mar, uma codificação que transformou o direcional – liso – em dimensional – estriado. Nesse momento, vale-nos lembrar Boulez para quem um espaço liso também poderia sofrer um estriamento, um dimensionamento.

Pensando-se na alternativa, naquela em que o espaço estriado pode tornar-se liso, percebemos que a idéia de Deleuze e Guattari amplia a possibilidade criada por Boulez. Para o compositor francês, um espaço estriado tornava-se liso através de um processo gradual de alisamento que atingiria uma zona não-homogênea, ambígua. Para Deleuze e Guattari, porém, a possibilidade de um espaço estriado alisar-se repousa, por sua vez, na possibilidade de uma sobre-codificação, de um mega-estriamento do próprio estriado. Esse processo, diverso do proposto por Boulez, também obteria semelhante resultado e confundir-se-ia com o espaço liso. Esse processo pode ser concebido através, por exemplo, de uma divisão do estriado infinitamente, milimetricamente homogênea, fazendo com que essa divisão acabe perdendo sua função de dividir e confunda-se, dessa maneira, com o liso.

Conclui-se, portanto, que se vai de um espaço liso a um estriado através do dimensionamento de uma direcional; enquanto, no outro pólo, escapa-se de um espaço estriado pela sobre codificação de uma dimensional (Tabela 4), o que o faz confundir-se com o liso.

Tabela 4: concepções do liso e do estriado em Deleuze e Guattari e as possibilidades de alisamento do estriado por sobre-codificação e de estriamento do liso por um dimensionamento do direcional.

Características dos espaços estriado e liso em Deleuze e Guattari e suas possibilidades de transmutação

Qual?

Estriado

Liso

Características

Direcional: torna expressivas as coisas formadas e percebidas, as propriedades, as matérias, as distâncias, as medidas.

Dimensional: torna expressivos os acontecimentos, as hecceidades, os afetos, os sintomas, as intensidades.

Como transmuta

Processo de alisamento através de uma sobre-codificação do estriado (atravessa o pólo do mapa)

Processo de estriamento através de um dimensionamento do direcional

Procurando-se alguns exemplos musicais para o caso onde o estriado alisa-se através de sua sobre codificação, pensamos em duas possibilidades. O primeiro exemplo seria, talvez, o caso do serialismo integral desenvolvido por Boulez. Dissemos mais acima que ele representaria um exemplo de um espaço estriado curvo não-focalizado. Porém, a partir dessa nova possibilidade de alisamento do estriado aberta por Deleuze e Guattari, percebemos que o serialismo integral pode ser, também, pensado em termos de uma sobre codificação dos seus elementos constituintes. A serialização simultânea de vários parâmetros torna o resultado sonoro final liso, pois o ouvido já não se apóia mais por não perceber o excesso de dimensionamentos do espaço estriado serial. Ou seja, quando há vários estriamentos que se combinam com ainda outros estriamentos, ocorre um processo de milimetrificação do espaço–sonoro que resulta em um alisamento que atravessa o outro pólo do mapa (Tabela 4).

O nosso segundo exemplo de uma sobre codificação de elementos estriados que nos remetem de volta a um espaço liso é a peça “Relógio” de José Augusto Mannis[13]. Ao escutarmos a peça pela primeira vez, temos a vaga sensação de achar que conseguiríamos acompanhar os tempos dos instrumentos. Essa sensação, porém, é sempre frustrada pela não-correspondência entre aquilo que os instrumentos realmente estão tocando e aquilo que esperaríamos que, estriadamente, eles tocassem. No caso específico dessa peça, esse processo ocorre sobre o parâmetro da duração, sendo, portanto, uma sobre codificação de tempos estriados. A junção dos diversos tempos estriados da voz, do “Vão e Vêm” do poema, do piano, do violoncelo e do não-ciclo do clarone engendram em uma sobreposição de tempos estriados que, dessa maneira, desloca nossa percepção de volta a um espaço liso. Isso porque se torna difícil, devido ao exagero das divisões do tempo, situar-se, direcionar-se e, por conseguinte, encontramo-nos de volta em um tempo direcional (espaço liso).

As metáforas composicionais de Denise Garcia

Trazendo o conceito do espaço-sonoro para o universo da música brasileira contemporânea, tomaremos a seguir dois outros exemplos: o da compositora paulista Denise Garcia,[14] em seu artigo “Composição por metáforas”[15], e o do compositor Almeida Prado em suas Cartas Celestes I.

Em seu texto, Denise Garcia aborda alguns fatores extra musicais que são importantes na concepção de suas idéias musicais. Sua música trava um diálogo com as demais áreas do conhecimento e um compositor, em particular, pode se aproveitar dessas oportunidades para criar música a partir de tal ou tal motivação exterior à própria música.

“A idéia de que palavras criam determinadas imagens ou sensações que se traduzem sonoramente não é nova [...]. E daí pode-se dizer que não apenas palavras, mas tudo o que nossos sentidos absorvem, registram, armazenam pode vir a ser imagens sonoras, pode ser o impulso para uma nova criação musical” [GARCIA, 2007, P. 53].

É importante, nesse momento, percebermos que, apesar dessa ligação entre o ato de compor e impulsos externos, a música não se traduz. Ou seja, não há uma “transposição” simples de sentimentos. Essa relação é sempre intermediada por alguém ou algo: o texto de Garcia trata a respeito da intermediação do compositor que transforma uma sensação vivida em sons. Essa intermediação é, portanto, particular e única, sendo diferente para cada pessoa, pois ela é influenciada por tudo aquilo que a sua experiência de vida traz para essa relação. A essas transcriações artísticas composicionais, a autora dá o nome de “metáforas”.

“O meu processo criativo muitas vezes se dá por processos de simulação, de transposição, de tradução, de imitação de imagens sonoras, visuais e outras que me ocorrem e que gosto e pretendo chamar aqui de metáforas. Metáfora em um sentido amplo, mas com um propósito inverso [...]: a música ou o som não sendo um substituto ou uma referência ou representação de outro signo qualquer, [...] as imagens ou modelos podem ser pontos de partida, mas não necessariamente o sentido de uma música – a música não significa aquela ou outra imagem [...] (A música) realmente é: uma caixa aberta que permite que cada ouvinte tenha com ela uma experiência particular, mas antes de tudo, musical” [GARCIA, 2007, P. 54].

As metáforas, como pudemos perceber, podem ser de diversos tipos. Entre todas as citadas pela autora em seu texto, uma nos interessou mais por relacionar uma espacialidade à criação musical. Denise nos confessa que, para a criação de sua peça para flauta solo Solo-rio, composta em 1986 inicialmente para acompanhar uma peça teatral, a metáfora do rio a acompanhou. Um rio que foi tratado de diversas maneiras: primeiramente a partir da investigação laboratorial de sons d’água, traduzidos em sons de percussão não sobreviventes na versão para flauta-solo; e, finalmente, criando metáforas sobre a fluidez do rio, suas águas que correm de diversas maneiras diversas. A essa segunda imagem, a idéia do espaço está estritamente vinculada, pois, como a própria autora constata, a água em um rio flui de maneiras diversas da esperada:

“Na beirada do córrego se vê claramente que a água não flui em linha reta, a margem representa outra barreira e o único jeito que as agüinhas que estão ali no canto têm de continuar o seu caminho sem descanso é rodopiar para trás e ir para frente de novo, desenhando assim, claramente, uma forma espiralada” [GARCIA: 2007, P. 56].

E é justamente essa imagem, esse espaço, o do rio que flui desenhando espirais, que a compositora se apoderou para criar uma imagem sonora para a flauta (Fig. 08). A metáfora da criação do trecho pode ser pensada em uma linha melódica com a tendência a descer, só que em curvas, traçando uma linha não regular:

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Fig. 08: Trecho de Solo-rio de Denise Garcia [2007, P. 57].

A espiral, elemento primordialmente espacial, se traduz nesse pequeno exemplo pelos vai-e-vens da melodia em sua altura, conforme podemos perceber acima (Fig. 08). Essa metáfora espacial-sonora é, portanto, criadora de um espaço-sonoro na música de Denise Garcia e foi chamada, pela autora, de umas das possíveis metáforas às quais um compositor pode recorrer na concepção de uma imagem sonora. Ela cria um espaço-sonoro justamente ao recorrer à imagem da água que corre em um rio e procurar transpor essa espacialidade em um âmbito temporal-musical.

O espaço-sonoro cósmico de Almeida Prado

Em Almeida Prado o visual e o sonoro destacam-se, sobretudo, a partir da criação de suas Cartas Celestes I, uma representação sonora do espaço cósmico. Dessa maneira que, ao invés do termo “movimentos” ou de trechos determinados por andamentos, temos trechos que representam sonoramente um corpo celeste. É assim que, por exemplo, surgem no espaço-sonoro do piano as constelações de Hércules, Lyra, Scorpio, Alpha Piscium; o Sol; as nebulosas de Andrômeda e NGC 696095 e 6; o aglomerado globular Messier 13; a Via Láctea e a Galáxia NGC 224 = M 31; os meteoros; o crepúsculo; a manhã; a aurora; e Vênus. Esse céu-sonoro é reinventado, fabulado por Almeida: transcriação de um céu a partir de sons.

À técnica criada para reinventar um espaço no som, Almeida Prado deu o nome de “sistema organizado de ressonâncias”. Esse sistema é criado a partir do controle consciente de “zonas rítmicas” e “zonas de ressonâncias” [PRADO, 1985]. Interessante aqui notarmos que, a exemplo do pensamento de Boulez, o compositor brasileiro trabalha também os parâmetros musicais da altura e da duração para criar um espaço-sonoro. Podemos perceber, por exemplo, em relação às zonas rítmicas, que elas compreendem as categorias de liso e estriado desenvolvidas pelo compositor francês.

As zonas rítmicas (Tabela 5) criadas por Almeida, na realidade, comportam duas qualidades distintas. Uma das maneiras pela qual elas podem ser pensadas é a partir do ritmo harmônico criado pelos acordes-alfabeto. Mudando de qualidade, há, na outra maneira, zonas rítmicas explícitas, ambíguas ou de atemporalidade. Entre essas três últimas, há uma diferença de quantidade: respectivamente do tempo mais estriado ao mais liso. Vejamos na tabela que segue:

Tabela 5: zonas rítmicas das Cartas Celestes.

Zonas rítmicas das Cartas Celestes

Qualidade

Quais são

Quantidade

O que são

Parte onde se apresenta mais claramente no volume I

rítmico-harmônica

Zonas rítmico-harmônicas

 

Ritmo harmônico causado pelos 24 acordes-alfabeto

_

Exclusivamente rítmica

Zonas rítmicas explícitas

Tempo estriado

Momentos onde as pulsações se fazem sentirem nítidas e as materializações das pulsações são diretas e claras

Constelação de Scorpius.

Zonas rítmicas ambíguas

Tempos não-homogêneos

Pulsações confusas, utilização de superposições de valores irracionais

Aglomerado globular Messier 13 e Nebulosas

Zonas de atemporalidade

Tempo liso

Tentativa de criar um tempo cósmico através do uso dos 24 acordes-alfabeto, que são um elemento atemporal

Constelações

Já as zonas de ressonâncias (Tabela 6) são criadas através do uso contínuo do pedal e da criação de ressonâncias próprias ao piano. “Sonoramente, entre dois acordes emitidos, as ressonâncias preencherão este espaço” [PRADO, 1985, P. 527]. O sistema de Almeida Prado de organização das ressonâncias tem nesse princípio o seu conceito. Ele é baseado na maior ou menor aproximação às ressonâncias naturais da série harmônica, ascendente ou descendente. Dessa maneira, ele divide também as ressonâncias em zonas:

Tabela 6: Zonas de ressonâncias das Cartas Celestes:

Zonas de ressonâncias das Cartas Celestes

Quais são

Quantidade

O que são

Parte onde se apresenta mais claramente no volume I

Zona de ressonância explícita

Maior incidência sobre alturas de uma série harmônica ascendente ou descendente

Leva em conata o uso racional e organizado da série harmônica superior e inferior;

Considera notas estranhas ao espectro como invasoras.

Via-Láctea.

Zona de ressonância implícita

Menor incidência sobre alturas de uma série harmônica ascendente ou descendente

Uso de uma seqüência atonal para insinuar notas que se impõem como elementos constituintes de ressonância dos espectros harmônicos superiores ou inferiores.

Nebulosa NGC 696095

Zona de ressonância múltipla

Incidência sobre alturas de duas ou mais séries harmônicas ascendente ou descendente

Uso de acordes simultâneos ou seqüenciais, constituídos de ressonâncias misturadas;

Processo acumulativo de notas.

Constelação de Scorpio

Zona de não-ressonância

Nula

Uso racional de elementos melódicos simples ou polifônicos, resultando em pouca ou mínima ressonância.

_

Como pudemos perceber na tabela acima (Tabela 6), as zonas de ressonâncias das Cartas Celestes são baseadas na maior ou menor incidência de alturas sobre uma série harmônica, ascendente ou descendente. Mas, o que seria uma série harmônica descendente? Ela é uma criação artificial usada pelo compositor que nada mais é do que a inversão da série harmônica ascendente (Fig. 09).

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Fig. 09: Séries harmônicas ascendente e descendente usadas como parâmetro para a classificação das Zonas de ressonâncias nas Cartas Celestes de Almeida Prado.

Um exemplo citado por Almeida como uma zona de ressonância explícita, ou seja, mais próxima da série harmônica ascendente, é a Via Láctea (Fig. 10), das suas Cartas Celestes I.

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Fig. 10: Via-Láctea nas Cartas Celestes I de Almeida Prado.

Percebemos que, são poucas as notas que fogem à série harmônica de dó. Porém, de um dó mais grave, tal como aquele do exemplo anterior. As notas que escapam à série são o fá natural, no 3º compasso do exemplo, o dó #, no 4º; e o mib, no 2º compasso da 2ª linha do exemplo acima (Fig. 10).

Almeida Prado demonstra o objetivo da criação das zonas rítmicas e das zonas de ressonância na seguinte afirmação:

Eu achava que, na música serial, era tudo muito rápido. Nunca voltava. É a idéia da espiral. Por causa desse não-voltar, eu não podia memorizar. E, para mim, a música deve haver um quê de memória” [PRADO, 1985, P. 29].

Ou seja, a tentativa primordial das Cartas Celestes I era a criação de um novo espaço estriado, onde o ouvinte pudesse se situar. Para tanto, o compositor cria, para a realização dessa peça, uma tabela com acordes-alfabeto que pudessem ser reiterados pelo compositor e reconhecidos pelo público.

Almeida Prado, em sua criação de um espaço-sonoro cósmico através das Cartas Celestes I, dialoga com dois outros autores citados no presente artigo. Ao basear as zonas de ressonâncias nas séries harmônicas, lembramos de Messiaen, para quem o som-cor somente se desenvolvia com o auxílio da ressonância natural dos corpos sonoros. Essa relação talvez tenha sido apreendida durante o período em que Almeida passou em Paris estudando no Conservatório com Messiaen, de 1969 a 1973. Já com Boulez, o diálogo nos parece um pouco mais amplo: Almeida Prado busca, na sua estética musical, um estriamento do espaço através de elementos lisos. Para Boulez, o parâmetro de diferenciação entre o liso e o estriado nas alturas é o temperamento. Sendo assim, Almeida Prado utiliza-se de elementos lisos, ou seja, não-temperados tais como a série harmônica e a ressonância do piano através do uso continuado do pedal, com o intuito de obter um espaço estriado, ou seja, de fácil reconhecimento pelo público. O resultado sonoro desse processo é caracterizado por uma zona não-homogênea, ou seja, em suas Cartas Celestes I, Almeida Prado promove o estriamento de elementos lisos.

Deleuze e Guattari: o devir-música

Deleuze e Guattari são dois autores que também abordam a possibilidade de troca dos fundamentos básicos de expressão das artes plásticas e da música. Ou seja, para eles, a música pode também expressar o espaço e vice-versa.

Em seu livro Mil Platôs, no platô intitulado “1730 – devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível”, os autores compreendem a possibilidade de haver na música um paralelo claro e simples com as artes plásticas: enquanto, em uma textura contrapontística musical, há linhas melódicas horizontais onde pontos são determinados e que se deslocam ao longo de verticais harmônicas, as artes plásticas valem-se também das verticais e horizontais de um quadro e nos remetem também às verticais de deslocamento – tal qual a linha é o ponto em movimento para Kandinsky– e às horizontais de sobreposição – vertical, horizontal; forma fria, forma quente; branco, negro; luz, cromático; tonal, modal etc. [DELEUZE & GUATTARI, 2005, P.93]. A isso, foi dado um nome de sistema pontual, pois se vale de pontos e coordenadas determinadas por linhas verticais e horizontais, tanto em música quanto em artes plásticas. As diagonais, nesse sistema, “desempenharão o papel de ligações para pontos de nível e de momento diferenciados, instaurando, por sua vez, freqüências e ressonâncias com esses pontos da horizontal” [DELEUZE & GUATTARI, 2005, PP. 93-4]. Ou seja, pensando-se em música, há, no sistema pontual, sempre algo que chama a atenção para si: algo maior a quem as linhas horizontais e verticais se remetem. No caso do exemplo pensado pelos filósofos, uma textura contrapontística com centro tonal, há sempre justamente esse elemento, a tonalidade ou a modalidade ou uma nota centro, à qual as linhas melódicas e harmônicas são subordinadas. Para os autores, esse é um sistema arborescente, molar[16] por excelência.

Percebida essa primeira possibilidade, os autores nos propõem, por outro lado, a criação de sistemas multilineares. O sistema multilinear compreende um sistema onde não haja a possibilidade de criação de coordenadas, ou seja, as diagonais e as horizontais não mais se submetam a algo maior que as atraem.

“Tudo se faz ao mesmo tempo, num sistema multilinear: a linha libera-se do ponto como origem; a diagonal libera-se da vertical e da horizontal como coordenadas; da mesma forma, a transversal libera-se da diagonal como ligação localizável de um ponto a outro; em suma, uma linha-bloco passa no meio dos sons, e brota ela mesma por seu próprio meio não-localizável” [DELEUZE & GUATTARI, 2005, P. 96].

Para a criação de um sistema multilinear através da liberação da vertical, da horizontal e da diagonal, deve-se tentar criar pontos de fuga onde os pontos e as diagonais que os unem não se submetam de maneira alguma às coordenadas regidas pelas verticais e horizontais:

“Liberar a linha, liberar a diagonal: não há músico nem pintor que não tenha essa intenção. Elabora-se um sistema pontual ou uma representação didática, mas com o objetivo de fazê-los detonar, de fazer passar um abalo sísmico. Um sistema pontual será mais interessante à medida que um músico, um pintor, um escritor, um filósofo se oponha a ele, e até o fabrique para opor-se a ele, como um trampolim para saltar.” [DELEUZE & GUATTARI, 2005, P.94].

Pensando em termos musicais, acreditamos que um excelente exemplo seja a obra toda de Messiaen. A partir de seus escritos, tais como o Traité e o Technique[17], o compositor francês cria para si um sistema próprio didático (abertura da possibilidade de uma arborescência). Porém, ao escutarmos as suas composições, percebemos que esse sistema não passa de instruções analíticas, pois o resultado sonoro advindo do uso dele, para lembrarmos as palavras de Deleuze e Guattari, causam um abalo sísmico, ou seja, não é facilmente reconhecido e está além da simples utilização prática do próprio sistema didática. É um trampolim criado por Messiaen que o faz saltar para além de sua simples realização. Outro exemplo musical seria, sem dúvidas, as Cartas Celestes I, de Almeida Prado: apesar de toda a reflexão e criação de um sistema organizado de ressonâncias, a peça em si está além da teorização criada pelo compositor: ela ultrapassa e expande os limites dessa teoria. Isso ocorre porque, em ambos os casos, tanto Messiaen quanto Almeida Prado compõem a partir de uma manipulação direta do objeto sonoro, não se fazendo surdos ao resultado sonoro advindo dessa manipulação e privilegiando esse à teoria pura.

O século XX, em geral, e a história da música em particular estão cheios de sistemas multilineares, ou seja, ocorrem, na música ocidental, blocos sonoros que são desterritorializações de algo que está implantado. São pontos que se opõem às coordenadas e delas tentam escapar. Em comparação ao pensamento de Boulez, as diagonais de um sistema multilinear são lisas, ou seja, não há a possibilidade de identificá-las enquanto x; y. Porém, muitas diagonais desterritorializantes acabam se transformando em novos territórios: criam para si novas horizontais e verticais. E isso ocorre com o uso da memória e da reiteração de um bloco sonoro diagonal. Um exemplo disso é o uso da série dodecafônica que, com o tempo e o uso, passou a ser comum a vários compositores e, por isso mesmo, tornou-se um novo território.

Em artes plásticas, a desterritorialização do ponto, da linha, da diagonal e da transversal também opera, mas com seus meios próprios. Aqui, há uma oposição ao pensamento de Kandinsky. Para os pintores, o ponto transforma-se em linha ao entrar em movimento, que, por sua vez, transforma-se em plano ao entrar em movimento, que, por sua vez, transforma-se em volume ao entrar em movimento e assim por diante. Já para Deleuze e Guattari, em um sistema multilinear:

“Não é o ponto que faz a linha, é a linha que arrasta o ponto desterritorializado, que o arrasta para sua influência exterior; então a linha não vai de um ponto a outro, mas entre os pontos ela corre numa outra direção que os torna indiscerníveis. A linha tornou-se a diagonal que se libera da vertical e da horizontal; mas a diagonal já se tornou a transversal, a semi diagonal ou à direita (reta?[18]) livre, a linha quebrada ou angular ou então a curva, sempre no meio delas mesmas” [DELEUZE & GUATTARI, 2005, P. 97].

Aqui podemos perceber mais um paralelo criado pelos filósofos entre a música e as artes plásticas: ambos se valem da desterritorialização de seus elementos constituintes – melodia, harmonia, em música; pontos e linhas, em artes plásticas – para a criação da expressão.

Voltando à questão musical, percebemos que ela cria devires. Ou seja, a partir da música temos a potência de nos tornarmos algo minoritário, tal como uma criança nos Kinderszenen de Schumann, de Almeida Prado etc.; ou um animal, nos pássaros de Messiaen; ou uma mulher, nos lieder de Schubert. Ou seja, a música aumenta a nossa capacidade de agir – potência – deslocando-nos a um devir-criança, devir-animal, devir-mulher: esses elementos tornam-se formas de expressão musical. E, para que isso ocorra, deve-se operar a desterritorialização dos blocos sonoros, ou seja, novas formas de expressão devem ser pesquisadas pelos compositores. A conclusão que se pode ter a partir desse pensamento é que a música não é a criança, nem o animal e nem a mulher, nem o rio, pensando em Denise Garcia, nem um corpo celeste qualquer, pensando em Almeida Prado, e nem tão pouco opera uma representação destes: ela os arrasta a outro patamar, a outra forma de expressão.

“A música toma por conteúdo um devir-animal; mas o cavalo, por exemplo, adquire aí, como expressão, as pequenas batidas de timbale, aladas como tamanco que vêm do céu ou do inferno; e os pássaros tomam expressão em grupetos, apojaturas, notas picadas que fazem deles almas” [DELEUZE & GUATTARI, 2005, P. 106].

Um devir nunca é imitação:

“Nem o pintor e nem o músico imitam um animal; eles é que entram em um devir-animal, ao mesmo tempo em que o animal torna-se aquilo que eles queriam, no mais profundo de seu entendimento com a Natureza” [DELEUZE & GUATTARI, 2005, P. 107].

Assim também é a relação entre a música e as artes plásticas: o espaço-sonoro é a música que cria para si um devir-espaço que é a potência de expressão da música enquanto espaço. Ou seja, ela não representa e nem imita um espaço: ela cria uma expressão do espaço enquanto qualidade do som. A música se expressa, dessa maneira, através daquilo que não é musical no homem e que, por sua vez, já o é na Natureza; sendo que o espaço é uma das possibilidades expressivas musicais. O devir-espaço da música não está, portanto, localizável nem na música, nem no espaço: ele está entre os meios (sistema multilinear) e torna expressivo o espaço através da música. Tornar expressivo: eis a operação fundamental das artes em geral nos agenciamentos que as tornam devires.

É assim, por exemplo, que Almeida Prado, em suas Cartas Celestes I, torna expressivo o espaço-sonoro cósmico, através do devir-cometa, do devir-Júpiter, do devir-manhã etc. da música. E também é assim que Denise Garcia cria um devir-rio em sua peça para flauta solo: a compositora torna expressivas as qualidades sonoras do rio em música. Mas não se localiza mais esse devir nem no rio e nem na música: ele está entre os dois; está no agenciamento de ambos. E é assim também que Messiaen faz soarem as suas cores; ou seja, torna expressiva a potência sonora da cor através de um devir-cor do som, ou seus pássaros: torna expressiva a potência sonora do canto dos pássaros através de um devir-pássaro da música.

Considerações Finais

Uma das possibilidades de compreensão do espaço-sonoro se apresenta, portanto, como a inversão da relação [som-tempo] - [imagem visual-espaço] em uma nova relação [imagem visual-tempo] – [som-espaço]. Enquanto que na música, o tempo é tratado, a priori, como o seu parâmetro primordial; em artes plásticas, o espaço ganha o status de indispensável. Porém, conforme vimos em alguns exemplos nesse texto, nem sempre essa prerrogativa é válida. Em muitos casos, o tempo se funde com o espaço em artes plásticas e o espaço ocupa a música. A essa ambigüidade conseguida através da abertura de possibilidades que uma prática artística engendra, dá-se o nome de espaço-sonoro: mistura entre o espaço e o tempo tornada expressiva pelo som.

Vimos, nos exemplos citados, algumas possibilidades de criação de um espaço-sonoro. Agrupando-se os semelhantes, percebemos que os exemplos demonstrados podem ser ligados entre si em XX grandes categorias. Kandinsky foi um dos autores que se ocupou da criação do tempo na pintura. Dos artistas que se ocupam do espaço-sonoro na música, percebemos, por um lado, aqueles que, de certa maneira, tratam o som metaforicamente, pois tentam exprimir aquilo que o espaço imprime neles. Nessa categoria temos a flauta-rio de Denise Garcia, os pássaros de Messiaen e as Cartas Celestes de Almeida Prado. E ainda percebemos que, mesmo dentro de uma perspectiva puramente musical, o espaço também se faz presente, como é o caso de Ligeti demonstrado por Caznok e do som-cor de Messiaen. Podemos, agora, criar um quadro demonstrando as várias possibilidades agrupadas em uma tabela (Tabela 7):

Tabela 7: possibilidades do espaço-sonoro enquanto uma nova relação [imagem visual-tempo] – [som-espaço] demonstradas no presente artigo.

Espaço-sonoro: Intersecções possíveis entre o espaço e o tempo nas artes plásticas e na música

Onde

Subdivisão

Principal característica

Representantes

Artes plásticas

Criação do tempo na pintura.

Kandinsky

Música

Espaço metafórico

Criação em música de metáforas do espaço

Denise Garcia e o Solo-rio; Messiaen e os pássaros; Almeida Prado e as Cartas Celestes

Espaço musical

Criação de ferramentas técnicas composicionais que, a priori, não representam um espaço, mas nos levam a ele

Continuum de Ligeti; som-cor de Messiaen.

 

Vimos, ainda, com Boulez, que o espaço-sonoro, enquanto música, pode ser pensado em termos de estriado e liso e que essas são as qualidades principais do mesmo. Um espaço liso não tem um dimensionamento em seu módulo – corte sobre o continuum –; enquanto um estriado apresenta um módulo claro. Identificamos aí, algumas práticas musicais que podem, de alguma maneira, ser categorizada em estriado ou liso. Pensando da maneira como Boulez, toda a música que utilize um temperamento, quer ele tonal ou não, é estriada.

De outra maneira, um espaço-sonoro liso por excelência pode ser desenvolvido principalmente com o auxílio de elementos eletrônicos, através da música eletro-acústica. Porém, encontramos, principalmente em Almeida Prado, uma categoria mista: através do uso de elementos lisos, as ressonâncias e séries harmônicas, o compositor faz explodir em um instrumento extremamente estriado, o piano, um espaço-sonoro cósmico, que, tal como o mar, apresenta quase nada ou nenhum estriamento (No cosmos os estriamentos podem se apresentar apenas pela presença de astros, o que, para a visão humana sobretudo, é de uma dimensionalidade insuperável; e no mar o estriamento só ocorre quando em contato com a terra, no litoral.)

Foram, entretanto, Deleuze e Guattari quem nos ajudaram sobremaneira a pensarmos nas funções e nas possibilidades que se abrem frente ao espaço-sonoro liso e estriado. Nesse sentido, percebemos que a operação de tornar expressivo o espaço em música é a principal razão de existir do espaço-sonoro. Ao colocarmos em agenciamento o espaço e o tempo, temos aí algo que já não é nem mais o tempo e já deixou de ser o espaço. É algo que surge a partir da junção de ambos e está entre eles; é um devir: devir-espaço do som e devir-tempo da pintura. Dessa maneira, percebemos que um espaço-sonoro liso torna expressivos as intensidades, os afetos e os sintomas; enquanto que o espaço-sonoro estriado torna expressivas a matéria, as distâncias e as medidas.

A definição do espaço-sonoro se faz importante, pois pode ser vista, a partir de então, como uma nova possibilidade que se abre aos compositores, intérpretes e pesquisadores na busca de uma expressão artística já bastante trabalhada ao longo do século XX, porém não muito absorvida por todos.

Referências Bibliográficas

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Notas:

[1] Doutorando em Música. Unicamp-SP, com orientação do prof. Dr. Silvio Ferraz de Mello Filho. Bolsista FAPESP.

[2] KANDINSKY, W. Do espiritual na arte. Tradução de Álvaro CABRAL. 2 ed. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1996.

[3] KANDINSKY, W. Ponto e linha sobre plano. Tradução de BRANDÃO, E.. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

[4] Isso ocorre principalmente nos seus Technique de mon langage musical e Traité de rythme, de couleur et d’ornithologie, onde o autor traz, de maneira bastante extensiva, a técnica composicional empregada por ele em suas peças.

[5] Artista suíço nascido em Lausanne, 1890 e morto em Riex, 1966. Pintor autodidata e músico amador, Charles Blanc-Gatti consagrou o seu trabalho artístico à transposição das sensações musicais coloridas e formais para a pintura. Adaptado do site: http://www.hls-dhs-dss.ch/textes/f/F9139.php . Acessado em 18/11/2007.

[6] Todas as traduções aqui citadas dos textos de Messiaen foram feitas pelo autor.

[7] Messiaen cita que as simultaneidades destacadas pelas letras A e B são acordes de ressonâncias contraídas.

[8] CAZNOK, Y.B. Música: entre o audível e o visível. São Paulo: Unesp, 2003.

[9] BOULEZ, P. A música hoje. 3 ed. Tradução de CARVALHO, R. e BARROS, M.A.L. de. São Paulo: Perspectiva, 1986. Coleção Debates, Nº. 55. A parte em que esse debate ocorre está, especialmente, em um trecho intitulado Quanto ao espaço presente no segundo capítulo e que compreende as PP. 82-98.

[10] Apesar de Boulez não citar esse termo estritamente, chegou-se a ele por oposição. Como o estriado é o temperamento, e isso está escrito em letras cheias, o oposto dele, o não-temperamento, deve ser sobre o que o compositor francês, pressupõe-se, estava se respaldando para chamar de liso.

[11] Visto que o espaço liso é definido por um padrão no corte do continuum, a esse padrão se estabeleceu o nome de módulo.

[12] DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Coordenação da tradução: Ana Lúcia de OLIVEIRA. 2ª reimpressão. São Paulo: 34, 2005. V. 5.

[13] TAFFARELLO, T.M. & FERRAZ, S. Relógio, de José Augusto Mannis e a Composição por Ciclos. In: Cadernos da Pós-Graduação. Campinas: Instituto de Artes/Unicamp. Ano 9 - volume 9, nº 2 - 2007. PP. 69-77. ISSN: 1516-0793.

[14] Musicista, compositora e pesquisadora, Denise Garcia teve uma formação acadêmica que inclui a graduação na Usp (1974-85), mestrado na Unicamp (1989-93), doutorado na Puc-SP (1994-98) e um período de estudos na Alemanha (1979-84).  Atua, desde 1985, como professora na Unicamp. Como compositora trabalha principalmente com música instrumental, eletroacústica e para cenas de teatro e de dança. Currículo lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4795871J4#Dadospessoais Acessado em 18/11/2007.

[15] GARCIA, D. Composição por metáforas. In: FERRAZ, S. (org.). Notas . Atos . Gestos. Coleção Trinca-Ferro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.

[16] Por arborescência se entende algo que, tal como uma árvore, há um tronco principal de onde as ramificações aparecem, mas sempre dependem desse ponto de apoio central. A oposição de uma árvore, nos autores, é um rizoma. Já o termo molar, em oposição a molecular, representa a maioria, a macro-forma, a estrutura prevalecente.

[17]té de rythme, de couleur et d’ornithologie” e “Technique de mon langage musical”.  Ambos os livros se encontram na referência bibliográfica.

[18] Não seria talvez aqui um erro de tradução? Em francês, a palavra droite significa tanto direita quanto reta. Porém, parece-nos que, dentro do contexto do texto, “reta” seria mais apropriado do que “direita”, tal como foi traduzido na edição brasileira.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano VI - Número 10 - Novembro de 2008 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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