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RESENHA DO LIVRO “ELOGIO DO INDIVÍDUO”[1], DE TZVETAN TODOROV
Autores: Rafael Alves Pinto Junior - rafaeljuniorcefet@gmail.com e Vânia Maria Faria Floriano de Carvalho

Este livro (Éloge de l´individu) segue o caminho aberto pelo autor em Elogio do cotidiano (Éloge du quotidien: essai sur la peinture hollandaise).  Além da valorização do cotidiano e das coisas comuns, a representação da figura humana passa por mudanças responsáveis por uma imagética que alterará substancialmente os rumos da pintura européia daí em diante. A própria idéia de beleza se alteraria à imagem deste tipo de individualização e representação. A beleza não pode mais ser vista como um conceito universal, mas pode ser encontrada em qualquer coisa e em qualquer homem a partir da singularidade inseparável que lhe é constituinte enquanto sujeito.

O olhar de Todorov vai mais longe e identifica um momento na historia da pintura européia em que os indivíduos passam a ser tema das imagens. Quando surge o gênero do retrato, a materialização de imagens de pessoas dotadas de nome e biografia e não destinadas às oferendas funerárias ou à glorificação de poder político ou religioso? O autor identifica a pintura flamenga do século XV como o ápice de um processo iniciado vários séculos antes e que evidencia que o “o mundo e os homens somente existem porque Deus os olha”. A partir deste momento, o olhar sobre o homem adquire um novo significado.

O autor tece uma história nem sempre linear, mas que conduziu uma revolução à concepção de como se representar o indivíduo, partindo da grandeza e decadência do retrato na antiguidade, passando às alterações que este sofreu sob o peso do cristianismo. Nesse sentido, o trabalho de Todorov é de uma minúcia comparável ao dos artistas flamengos cuja obra submete à análise.

O livro está dividido em duas partes. Na primeira apresenta as premissas de uma imagética da individualidade ao relacionar a questão da identidade ao conceito do que é um retrato. Desta maneira, uma imagem de um ser humano que não permita o reconhecimento de suas características individuais e únicas não seria um retrato. Estaríamos diante de uma representação e não de uma retratística. Além disto, os retratos que não seriam destinados à contemplação, não deveriam ser classificados como tal. Destinados aos deuses, à contemplação dentro do túmulo ou à afirmação de uma memória, os retratos da antiguidade, tanto os do Antigo Império (2700-2300 a.C.) quanto os gregos da Idade Clássica, pertenceriam à este universo.

A existência do individuo seria assim prolongada mediante sua representação. Testemunho diante dos deuses onde o retratado encontraria, no além túmulo, comemoração para os que o haviam conhecido em vida e glorificação – prolongação temporal e espacial – destinado aos que não tiveram a oportunidade do contato. Neste caso, a produção da imagem propugnava uma certa autonomia, e não se poderia esperar o reconhecimento de uma identidade. Apenas que fosse plausível. O autor identifica a valorização do indivíduo como o denominador comum às diversas obras destes diversos pensadores. Tanto no pensamento, na política, na representação e na vida cotidiana, concede-se um maior valor ao individuo, que deixa de ser um simples brinquedo nas mãos de Deus para ser alguém que possui influência sobre seu próprio modo de vida, pública e privada. Um ser que busca conhecer o mundo por si mesmo, não se submetendo a imagem transmitida pela tradição. Esta descoberta do individuo aconteceu em várias áreas do conhecimento, mas é mais facilmente verificável na pintura.

Isto posto, chegamos à segunda parte: a pintura Flamenga do século XV. Todorov identifica um processo a que corresponderiam três etapas – ruptura, apogeu e posteridade.

Entendendo por ruptura a transposição destes conceitos restritos às iluminuras para a pintura em cavalete, não exclusivamente destinada ao uso privado, restrito aos limites da página. O pioneiro desta ruptura seria Robert Campin (1375-1444). Diante da Natividade (1425) estamos diante de uma imagem que evidencia a revolução por que passava a imagem na época. Apropriando-se da história sagrada do nascimento de Cristo e representando-a num espaço profano cotidiano, Campin introduz uma novidade à representação pictórica: a presentificação concreta das coisas. A paisagem do fundo não é a da região de Belém onde Cristo nasceu, e sim a que o pintor vê e na qual vive e conhece. O pintor vai mais longe. Diante do triptico da Anunciação (1425-30) o observador se defrontava, pela primeira vez com a sensação de estar vendo, através da superfície de um painel, um mundo com todas as realidades da vida cotidiana. É o primeiro painel da Anunciação que tem por cenário um interior doméstico completamente mobiliado e também o primeiro em que se honra São José, o pai de Jesus. A divindade não está longe no céu, mas na vida cotidiana, no aqui e no agora. A paisagem que a janela entreaberta de José mostra é uma imagem da cidade do pintor e o quadro é, ele próprio uma janela aberta de onde se pode entrever um recorte do mundo.

Na obra de Campin a ruptura com a tradição pictórica anterior é evidente e completa. Até então não se havia pintado a experiência cotidiana e os objetos reais com tal precisão, nem levado o indivíduo real ao centro da representação. E não somente nos quadros de temática religiosa, esta posição aparece também nos diversos retratos que executa como encomenda, principalmente de burgueses onde o pintor parece não fazer nenhuma concessão aos cânones de beleza de sua época. Confirmando a nova autonomia do indivíduo, as imagens pretendem registrar os retratados como o pintor realmente os via: o registro da identidade. O indivíduo se afirma como objeto da pintura. Se, para Todorov, Campin representa o pioneirismo na representação da figura humana, Jan van Eyck (1390-1441) será o responsável pela sua perfeição. No grande retábulo do Cordeiro Místico (1432) podemos observar a influência das iluminuras[2] em sua obra. São evidentes a extrema atenção aos detalhes, a iluminação onipresente e inclusão de personagens num nível de precisão até então desconhecidos na pintura européia.

Após 1432 e a conclusão do Cordeiro, van Eyck superará uma nova etapa em sua produção. Herdeiro de Campin e dialogando com ele, van Eyck se diferencia radicalmente deste em Virgem com o Menino (1433). Se por um lado, Campin humaniza a divindade e aproxima o sagrado ao profano, inscrevendo suas Virgens ao mundo cotidiano dos burgueses flamengos de sua época, distante do mundo sobrenatural, van Eyck assume a posição do indivíduo pintor, do sujeito que vê e do autor que concebe uma imagem. O quadro é concebido de um ponto de vista exclusivamente humano. É a visão do artista que compõe a imagem, submetendo tanto os objetos quanto as pessoas ao espaço da obra de arte que se coloca à contemplação.

Rumo à uma conclusão, o autor identifica os séculos XVIII e XIX como desdobramentos da descoberta do indivíduo no sec. XV. Seria o apogeu do retrato, onde convergiriam as subjetividades tanto dos artistas quanto dos retratados. A concordar com Todorov, a pintura renascentista flamenga corresponderia ao mais alto grau de intensidade no contexto da pintura européia. Estaríamos diante de uma pintura “em si”. Representação que somente seria colocada em xeque pelas vanguardas artísticas do início do século XX. Mas esta já é uma outra questão.

Notas:

[1] Elogio del indivíduo. Ensaio sobre la pintura flamenca del Renacimiento. Barcelona: Galáxia Gutenberg, 2006, 304 P.

[2] Ver o Nascimento de São João Batista em Très belles Heures, atribuído a ele.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano VI - Número 10 - Novembro de 2008 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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