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Resumo: O objetivo geral é verificar como ocorrem as reconstruções das culturas do povo no espaço urbano. Para isso, a proposta apresenta algumas visões sobre as ideologias presentes nos conceitos de “domínio público” e “anonimato”. Dentro de tal perspectiva, o folclore, como linguagem, e as culturas do povo, como meios de resistência, ajudam a entender a função social e autoral dos agentes responsáveis pela elaboração dos bens simbólicos das comunidades. Palavras-chave: Folclore, Rito, Mudança Social. Abstract:The general objective is to verify how occur reconstructions of the cultures of people in urban areas. For this, the proposal has some views on the ideologies present in the concepts of "public domain" and "anonymity". Within this perspective, the folklore, like a language, and the cultures of people, like means of resistance, help you understand the social function and copyright of agents responsible for the development of symbolic goods communities. Keywords: Folklore, Rite, Social Change. Considerações
sobre as funções da Cultura e do Folclore O objetivo geral de pesquisa é verificar como acontecem as reconstruções das culturas do povo no espaço urbano. Tal proposta é baseada nas impressões obtidas numa pesquisa que registrou a presença de foliões migrantes do espaço rural de cidades mineiras, como Boa Esperança, no espaço urbano de Campinas, São Paulo. Os foliões fazem parte das chamadas Companhias de Reis, grupos folclóricos influenciados pelas práticas culturais de índios, africanos e portugueses. Os resultados do estudo dos grupos foram descritos no livro-reportagem Bandeiras do Divino – A Folia de Reis de Campinas (2007). A compreensão das relações entre os espaços rurais e urbanos ajuda a desenvolver algumas considerações sobre a atuação das culturas do povo. As disputas entre o urbano e o rural são marcadas por interesses de dominados e dominantes. A busca pela apropriação das matérias-primas do espaço rural e a centralização dos empregos no espaço urbano interferem nas estruturas sociais e no processo de migração. As procissões, realizadas com velas acesas, os andores de madeira, os santos, os véus e as roupas com significados religiosos, foram meios que serviram para produzir sentidos à espiritualidade rural. Ainda existem procissões não só nos sítios, mas também nas cidades. No entanto, o modo como a procissão é realizada passou por alterações, e começou a enfrentar obstáculos. As ruas movimentadas das cidades grandes, o excesso de carros, e as várias horas de trabalho interferiram nos eventos estabelecidos pelas culturas do povo. Os faróis dos carros nas estradas e nas rodovias impossibilitam um ambiente marcado pela escuridão natural, apenas iluminado pelas luzes das velas e da fé dos devotos. O andar a pé se submete aos desvios dos carros, para não sofrer atropelamentos, as convenções sociais, as faixas, aos semáforos, pertencentes a um sistema de sinalização urbanizado e industrializado. A urbanização dos locais de trajeto começa a pôr em risco as peregrinações dos viajantes, porque impõe regras que limitam as ações dos participantes. As práticas culturas religiosas enfrentam uma constante dessacralização, direcionada pelos interesses capitalistas. Carlos Brandão comenta como a industrialização faz as práticas culturais passarem por um processo de dessacralização. Segundo ele, “e, todos sabem, para a indústria da cultura não há arte, devoção, tradição ou ritual. Há produtos culturais que interessam à Indústria pelo seu valor comercial: ‘Vendem? São Bons’” [BRANDÃO, 1994]. A coletividade das culturas do povo tem sido trocada pela singularidade da homogeneização das produções. Segundo Marilena Chauí, “outra observação concerne ao uso do singular ‘cultura’, quando talvez fosse mais adequado empregar o plural, ‘culturas do povo’” [CHAUI, 2006]. A exclusão das “culturas do povo”, enquanto conceito favorece os pequenos grupos sociais dominantes, porque cria uma sensação de predominância ou hegemonia de um suposto “saber único”, de modo que se negue ou não se fortaleça o papel simbólico das diversidades, das diferenças e dos grupos na criação das culturas. A cultura, quando entendida como algo acabado e sem autores, passa a ser encarada como algo pertencente a um conhecimento erudito e inflexível. Ao contrário de tal visão, quando se pensa no valor simbólico das participações das culturas do povo, o foco da abordagem deixa de se restringir à erudição, ao conhecimento acadêmico ou às mercadorias à venda, e passa a se centralizar no reconhecimento da pluralidade criativa. Enfatizar o papel dos agentes sociais é uma maneira de pluralizar o saber e fazê-lo ter afinidade com afinidade com o povo, enquanto grupo de receptores e criadores, de modo que se pense não só no que se faz e para quem se faz, mas também em quem são os seus fazedores, enquanto sujeitos criadores, portadores de um saber, pertencentes a um espaço social e observadores de sua comunidade. Entre os conceitos “cultura popular” e “culturas do povo”, a noção de descobrimento dos criadores é fundamental para evitar a desvalorização da autoria e a supervalorização do produzido, enquanto mercadoria. De acordo com Chaui:
Os conceitos de anonimato e domínio público afetam as autorias dos agentes criadores do folclore, enquanto comunicação visual e sonora dos saberes do povo, e da cultura, enquanto representação dos modos de vida. Conforme Brandão, “a criação do folclore é pessoal. Alguém fez, em um dia e algum lugar. Mas, a sua reprodução ao longo do tempo tende a ser coletivizada, e a autoria cai no chamado ‘domínio público’” [BRANDÃO, 1994]. Um estilo de música, por exemplo, depois de ser criado por um tocador de instrumento de uma certa comunidade para expressar sua criatividade, quando conhecido e incorporado pela industrialização, passa a ser rotulado pelos padrões dominantes, como se o produzido estivesse desvinculado ao autor. Isso favorece o lucro dos que se apropriam das criatividades do povo e, ao mesmo tempo, prejudica a significação dos bens culturais, pois faz com que fiquem sem uma essência, vinculada aos sentidos autorais atribuídos pelos criadores. Isso ocorre freqüentemente com as criações folclóricas. Segundo Brandão, “o folclore vive da coletivização anônima do que se cria, conhece e reproduz, ainda que durante algum tempo os autores possam ser conhecidos” [BRANDÃO, 1994]. Os saberes do povo sobre a Congada, a Folia de Reis, a Catira, entre outras manifestações folclóricas, são originários das fontes culturais, criadas e reconstruídas pelas experiências dos participantes, pelos conhecimentos transmitidos entre as gerações e pelas relações simbólicas de troca. Clifford Geertz ajuda a compreender o papel das fontes culturais. Segundo Geertz:
Há dois
tipos de reconstrução das culturas do povo. Uma de resistência e outra
de dominação. A reconstrução da cultura, enquanto processo de dominação,
é um reaproveitamento dos bens autorais, com a finalidade de transformá-los
em mercadorias anônimas. Assim como se trocou o valor das experiências
dos antigos artesãos pelo valor das marcas dos tapetes produzidos em
série, o propósito da cultura industrializada não é acrescentar valor
às experiências e à função do forró de autoria, composto numa comunidade,
para representar os sentimentos vividos num determinado local. Mas,
sim, aproveitar todos os elementos disponíveis sobre a produção do forró,
e não sobre sua autoria, para, assim, transformá-lo numa melodia rápida,
de fácil assimilação, desvinculada do ruralismo e das tradições da comunidade
pertencente ao autor. Com isso, ocorre a fragmentação ou a segmentação
da música. Hoje, por exemplo, já se diferenciam os gêneros “forró pé
de serra” e “forró universitário”. O que interessa ao mercado é o consumo
e, portanto, quanto mais uma produção se identifica com o seu público
e vende, mais lucro ela gera. Todo o processo de industrialização tem
por objetivo último alcançar o lucro e, por isso, é construído num racionalismo
que não reconhece o valor dos bens autorais como necessário ou até mesmo
existente. Entretanto,
a reconstrução das culturas do povo, enquanto meio de resistência, é
o meio usado pelos grupos para continuarem a realizar as práticas culturas,
folclóricas e religiosas, aprendidas com os amigos e familiares de suas
comunidades. Na Folia de Reis, por exemplo, os filhos dos foliões, quando
migram dos sítios para cidades, reconstroem o que aprenderam, de modo
que suas práticas consigam se adaptar aos conflitos, às dificuldades,
à industrialização, às imposições capitalistas e aos preconceitos dos
espaços urbanos. Guilherme Porto demonstra como são as adversidades
vivenciadas pela Folia de Reis, um ritual presente nas culturas do povo: "Apenas
os membros de algumas denominações protestantes, mais fanáticas, recusam-se
a receber as folias. Ultimamente, porém, tem havido restrições, por
parte de autoridades policiais, quanto ao horário e mesmo ao trajeto
dos foliões. Isso, mais que conseqüência de reclamações ou hostilidade
do povo, tem sido causado pelo autoritarismo de certos delegados de
polícia, que, em sua ignorância, assumem atitudes de menosprezo para
com essa forma folclórica tão rica. A atitude, muitas vezes descabida,
de autoridades locais vai espalhando uma mentalidade tacanha, que se
traduz em desprezo, como se as folias fossem sinal de atraso e ignorância.
Uma parte da população já foi influenciada por essa mentalidade”
[PORTO, 1982]. Algumas
questões merecem atenção a respeito dos significados gerados sobre a
Folia de Reis. Ao influenciar as pessoas a pensarem na Folia de Reis
como algo “ignorante” e “atrasado”, se cria uma ideologia de ocultamento
sobre a sua funcionalidade social; rejeitada pelas autoridades policiais,
e instituições religiosas e sociais. No entanto, festejos religiosos
como a Folia de Reis não dependem da institucionalização para existirem.
Os agentes culturais dos folguedos brasileiros atuam sem contar com
o amparo de templos em auxílios para mercadorias, propagandas, publicidades,
organização de rituais, festas, arrecadação de donativos, espaço de
danças ou cantorias, dízimos. Diferentemente de instituições religiosas
como as denominações protestantes, a Folia de Reis atua sem converter
e recrutar fiéis para o seu séqüito. Por isso, o ritual dos Santos Reis,
ao se reconstruir entre as famílias e os amigos dos foliões e promover
a visitação às casas das pessoas, ao aceitar os participantes sem estabelecer
doutrinas ou dogmas, ao distribuir bênçãos desde as favelas até os sítios
dos Estados brasileiros, ao elaborar e reorganizar uma cerimônia sem
estabelecer restrições, ao aceitar a presença de pessoas de diferentes
crenças, se diferencia das práticas religiosas institucionalizadas e
centralizadas em templos. As interferências
dos processos de reconstrução O processo
de reconstrução das culturas do povo e das linguagens do folclore atua
nas explicações dos mitos. As cantorias da Folia do Divino, os movimentos
da capoeira, os batuques dos tambores afro-brasileiros do jongo e das
Folias de Reis, as conversas entre os participantes das procissões,
os símbolos das bandeiras das festas juninas, os fandangos, entre outras
manifestações, fazem parte da oralidade e da visualidade das linguagens
do folclore. De acordo com Brandão, “qualquer que seja o tipo de mundo
social onde exista, o folclore é sempre uma fala. É uma linguagem que
o uso torna coletiva. O folclore são símbolos. Através dele as pessoas
dizem e querem dizer” [BRANDÃO, 1994]. O mito
é reconstruído conforme as interpretações dadas pelos participantes
das práticas culturais. Segundo Paul Ricouer, “o mito é uma forma
de relato: ele conta os acontecimentos do início e do fim num tempo
fundamental – naquele tempo; – este tempo de referência acrescenta uma
dimensão suplementar à historicidade de que está encarregado o sentido
simbólico, devendo ser tratado como um problema específico” [RICOEUR,
1978]. A organização dos ritos e das funções dos foliões também está
relacionada ao processo de reconstruções das culturas do povo. Tal processo
pode ser entendido como bricolage. Segundo Claude Lévi-Strauss,
o processo de bricolage se faz pela reconstrução por meio dos
mesmos materiais, de modo que existam combinações e transformações entre
elementos antigos e novos, significados e significantes [LÉVI-STRAUSS,
1989]. De certa forma, o processo de reconstrução contínua dos significados
também interfere na utilização dos instrumentos musicais, na confecção
de máscaras e roupas para os palhaços, no modo de falar, tocar ou cantar
as músicas ou os versos, entre outras atitudes praticadas e inovadas
por certos foliões ou por seus grupos de Folia de Reis. Essas questões
estão relacionadas ao ato de recombinar os elementos das tradições. As denominações
protestantes, por meio de um arcabouço ideológico, promovem uma linguagem
centralizada na Bíblia, de modo que o folclore, as culturas do povo,
e qualquer tipo de atividade desvinculada dos valores dos líderes dos
templos, seja resignificado como meio de “demonização”. Dentro dos preceitos
protestantes, a maioria dos conceitos não-valorizados (e, portanto,
opostos) pelos líderes dos templos, ganha uma “livre” interpretação
evangélica, a ponto de serem reconhecidos como veículos de “satanização”,
por serem separados dos posicionamentos do autoritarismo dominante.
Chauí [2006] comenta a oposição entre a cultura dominante e a do povo.
De acordo com Chauí: “[...]
O autoritarismo das elites se manifestaria na necessidade de dissimular
a divisão, vindo abater-se contra a cultura do povo para anulá-la, absorvendo-a
numa universalidade abstrata, sempre necessária à dominação em uma sociedade
fundada na luta de classes” [CHAUI, 2006]. Mas, mesmo
com as restrições e os esquecimentos propositais, a Folia de Reis se
manifesta como uma cultura de resistência aos posicionamentos de elite,
principalmente por incluir, sem reservas, colonos rurais, migrantes,
bóias-frias, moradores de favelas, entre outros participantes que passam
por processos de exclusão e marginalização sociais. A Folia de Reis
se manifesta nos sítios e nas cidades como uma cerimônia religiosa organizada
por foliões e devotos dos Santos Reis. A intenção dos peregrinos é comemorar
o nascimento de Jesus. Os rituais da Folia de Reis são representados
por foliões, como palhaços dançarinos e acrobatas, portadores de bandeira,
mestres, instrumentistas, cantadores e declamadores. Chauí ajuda
a entender como o discurso das denominações protestantes e de outras
instituições é marcado por ideologias e, portanto, por práticas de ocultamento,
que excluem as culturas do povo e o folclore brasileiro. Segundo Chauí,
“para ser posto como o representante da sociedade no seu todo, o discurso
do poder já precisa ser um discurso ideológico, na medida em que este
se caracteriza, justamente, pelo ocultamento da divisão, da diferença
e da contradição [CHAUI, 2006]. As instituições
sociais e religiosas tentam ocultar os valores simbólicos das práticas
folclóricas. Por exemplo, nas escolas e em outras instituições, as festas
juninas são feitas sem os mastros dos santos padroeiros, como o São
Pedro, o Santo Antônio e o São João, sem as fogueiras, sem a sanfona,
sem a viola. O esquecimento proposital de tais elementos simbólicos
interfere no modo como as pessoas convivem com as tradições ensinadas
pelos ancestrais. Segundo Lévi-Strauss, o cuidado com os requintes do
ritual é uma “microperequação”, isso é, não dispensar nenhum
ser, objeto ou aspecto [LÉVI-STRAUSS, 1989]. Nos festejos religiosos
e não-religiosos, o ato de dispensar os detalhes prejudica os significados
sociais. Tal processo favorece a reconstrução da cultura para fins capitalistas,
pois estabelece substituições sem considerar os valores das comunidades. Em algumas
festas juninas, os organizadores trocaram os bailes pelos bingos, a
doação de prendas pela comercialização de comidas e bebidas, a alimentação
feita com as matérias-primas do sítio pelas latinhas e caixinhas de
mercadorias industrializadas, os terços cantados e rezados pelas músicas
eletrônicas típicas do Rio de Janeiro (entre elas, o funk). O
anonimato cultural também está incluído nesse processo de reconstrução,
porque, ao se ignorar certos costumes ou práticas de um ritual, se exclui
a autoria dos agentes simbólicos, criadores das práticas. Em algumas
escolas, a festa junina é tratada como algo desvinculado de uma tradição
religiosa, de modo que se omitam certos elementos simbólicos, para se
favorecer outras questões, relativas à transformação do festejo num
espaço de venda, comercialização de mercadorias, tais como o cachorro-quente
e o refrigerante. Ou seja, se diz apenas o conveniente (aquilo que tem
afinidade com os interesses) às instituições, e não o todo (tal como
percebido e transmitido). Chauí contribui com as discussões sobre como
as ideologias expressam apenas o que se vincula aos interesses sociais,
institucionais ou dominantes. Segundo Chauí, “o discurso ideológico se sustenta, justamente, porque não pode dizer até
o fim aquilo que pretende dizer” [CHAUI, 2006]. Assim como
Marilena Chauí questiona o uso de “culturas popular”, ao invés de “culturas
do povo”, também se pode questionar o porquê do uso de “domínio público”,
ao invés de “domínios do povo”. Ao usar o termo “domínios do povo”,
cria-se, por exemplo, uma imagem de que os agentes culturais, ao se
reconhecerem como criadores autorais, e não simplesmente como adeptos
de uma cultura “pública” ou “popular”, atuam como construtores e reguladores
de seus processos históricos, independentemente das questões postas
pelos saberes formais. Em tal caso, os conceitos relacionados aos “domínios
do povo” fazem a comunidade, portadora de saberes sociais, se entenderem
como responsável pela defesa de sua cultura, e pela resistência aos
padrões ditos “públicos” ou “populares”. Num exemplo imaginado, quando
se milita em prol dos “domínios do povo” em relação às culturas, cria-se
um valor simbólico sobre as funções sociais das cantorias de um determinado
folião perante a comunidade visitada por sua Folia de Reis. Tal questão
pode ser comparada com a funcionalidade social do mito dos pássaros
anunciadores da chuva (entre eles, a seriema), pois, por meio deles,
as comunidades, principalmente as rurais, formulam suas hipóteses e
seus presságios sobre a plantação e sobre outras questões relacionadas
à vida social. Os autores
do folclore e das culturas do povo atuam como reorganizadores e construtores
da comunidade onde pertencem. A maneira como a função dos agentes culturais
é compreendida pela população sofre as distorções do senso comum. Por
meio dos padrões e preconceitos gerados pelos dominantes, o senso comum
generaliza os bens culturais, de modo que se menosprezem os processos
históricos inseridos na vida de cada agente simbólico. A Folia
de Reis, ao se readaptar no espaço urbano, estabelece relações simbólicas
sem se restringir às normas religiosas criadas pelas instituições. De
acordo com Zaide Castro e Araci Couto, no Rio de Janeiro, os foliões
levam a bandeira para benzer nos centros espíritas, e também incluem
a presença de um andor dedicado a São Sebastião na peregrinação [CASTRO;
COUTO, 1959]. Ao incluir as práticas espiritualistas dos Centros Espíritas
e das Igrejas Católicas, sem discriminar as crenças individuais, o folguedo
dos Santos Reis realiza um avivamento das relações de sincretismo religioso
brasileiro entre o Kardecismo, a Umbanda, a Pajelança e o Catolicismo.
Os padres das comunidades católicas também benzem os instrumentos musicais,
as roupas, as máscaras e a bandeira dos foliões. Conforme foi observado,
há inter-relações espiritualistas entre as práticas do sincretismo religioso
adotadas pelos participantes das Companhias de Reis. A Folia de Reis
é uma cerimônia religiosa constituída de relações de troca de objetos
e favores e, portanto, marcada por interações simbólicas. Ao contrário
das denominações protestantes, os praticantes da Folia de Reis atuam
sem criar mecanismos de exclusão, proibições de artigos religiosos ou
menosprezos de práticas afro-brasileiras. A crítica das denominações
protestantes às práticas ritualísticas de afro-brasileiros se fortalece
pelos discursos da dominação e do ocultamento. A imagem divina ganha,
nas interpretações ideológicas das denominações protestantes, cargas
simbólicas relacionadas às atitudes humanas de vigiar, punir e controlar
o que difere dos posicionamentos adotados por seus líderes religiosos.
A “demonização” dos bailes e das demais festividades das culturas do
povo também está incluída no discurso moralista das denominações protestantes;
e, por isso, há uma constante e insistente tentativa de promover uma
suposta conversão; que, de maneira geral, atende aos interesses dos
líderes religiosos, enquanto responsáveis pelas relações simbólicas
e de troca (de bens materiais) dos templos. Segundo Miguel Mahfoud: "Dentre
as novidades que chegaram, estão as igrejas evangélicas: assim, as festas,
bailes e folias, são substituídos por cultos, cantos, leitura e estudo
bíblico, e a nova comunidade religiosa passa a se identificar pelos
novos bons costumes, baseados principalmente em não dançar, não beber,
recolher-se em casa logo em seguida às tarefas do trabalho, afirmando
serem eles os verdadeiros religiosos. O relacionamento entre as religiões
vai se dando principalmente ao apontar as imperfeições e as distâncias
entre o que se propõe e o que se consegue efetivamente realizar, e fazendo
uma comparação entre os prodígios realizados por Deus em uma ou outra
comunidade – comparação inevitável entre benzedores católicos ou espíritas
de um lado e pastores e comunidades orantes evangélicas de outro, na
busca de afirmar a predileção de Deus por uma delas [MAHFOUD, 2003]. Ao entender
o processo de construção da ideologia, também se compreende, por exemplo,
como ocorre a reconstrução dos significados sociais sobre os chamados
“bons costumes”, como se observa nos comentários descritos por Mahfoud.
A influência gerada pelo discurso pode gerar uma aparência social capaz
de mobilizar as massas em busca da incorporação de supostos “bons costumes”,
presentes nas ideologias moralistas e conservadoras. Chauí ajuda a compreender
a influência gerada pelas aparências sociais: “Na ideologia, o modo imediato do aparecer (o fenômeno) social é considerado
como o próprio ser (a realidade do social). O aparecer social é constituído
pelas imagens que a sociedade e a política possuem para seus membros,
imagens consideradas como a realidade concreta do social e do político”
[CHAUI, 2006]. Ao usar
a analogia de Lévi-Strauss, o processo de conversão e recrutamento de
fiéis e a substituição proposital de sabres se assemelham à metáfora
de desmontagem das peças do despertador. Isso porque a “desmontagem”
ou a “desconstrução” ocorre para atender às expectativas de um suposto
relojoeiro, interessado em remontá-lo, conforme sua própria mecânica
[LÉVI-STRAUSS, 1989]. Em outras palavras, as peças podem ser comparadas
aos elementos dos saberes sociais, e o despertador pode ser encarado
como o sistema de crenças adotado pela comunidade. O que interfere em
todo esse processo de reconstrução dos significados é a reflexão ou
a reorganização mítica, porque uma vez que se explica ou re-significa a relação com o sagrado a partir da crítica e da “desconstrução”
dos significados de uma determinada comunidade, interfere-se no modo
de compreender até mesmo os mitos da criação do Homem e do Universo,
de modo que o antigo seja interpretado como inadequado e o novo seja
encarado, dentro de tal discurso, como “salvação” ou “verdade”. O modo
como Lévi-Strauss trata essa questão a partir da metáfora do despertador
ajuda a compreender os processos de reconstrução. De acordo com Lévi-Strauss: "As
imagens significantes do mito, os materiais do bricoleur, são elementos
definíveis por um duplo critério: eles serviram, como palavras de um
discurso que a reflexão mítica ‘desmonta’, à maneira do bricoleur que
cuida das peças de um velho despertador desmontado e eles ainda
podem servir para o mesmo uso ou para um uso diferente, por pouco que
sejam desviados de sua função primeira” [LÉVI-STRAUSS, 1989]. A interpretação
é algo que interfere na remontagem do relógio. Ou seja, a interpretação
das tradições pode reconstruir os elementos das lembranças, de modo
que certas explicações ganhem críticas, contradições e, assim, sejam
propositalmente substituídas. Ao reinterpretar as tradições da Folia
de Reis, por exemplo, uma pessoa não-participante dos festejos pode
questionar os motivos dos foliões praticarem o ritual no tempo, nas
datas, e no espaço determinados. As situações
temporais e o espaço vivenciado pelos foliões que moram em cidades não
são os mesmos que os que foram vividos pelos Santos Reis, pelos grupos
de Folia de Reis do meio rural e pelos padres jesuítas. O que liga as
crenças, as heranças e as histórias das pessoas à Folia de Reis é também
a interpretação das tradições, porque ela estabelece relações, por meio
da reconstrução dos significados, entre épocas e práticas. O modo como
a Folia de Reis, vivenciada na cidade, reelabora e reorganiza a tradição,
aprendida nos sítios, depende das interpretações exteriores, ou seja,
dos que não são foliões, e interiores, isso é, de pessoas de Companhias
de Reis, praticadas no campo ou na cidade. De acordo com Ricoeur: "[...]
A tradição, mesmo entendida como transmissão de um depositum, permanece
tradição morta, se não for a interpretação contínua desse depósito;
uma ‘herança’ não é um pacote fechado que passamos de mão em mão sem
abri-lo, mas um tesouro de onde sacamos com as mãos repletas e que renovamos
na operação mesma de sacá-lo. Toda tradição vive graças à interpretação.
E a este preço que ela dura, quer dizer, permanece viva” [RICOEUR,
1978]. O modo
como se encara a história também está relacionado à interpretação da
tradição, pois é, por meio das lembranças de determinadas datas e épocas,
que são formulados os saberes sociais. E, por isso, as reconstruções
da cultura do povo, ao rememorarem tais saberes, interferem no modo
como os significados sociais são compreendidos e transmitidos. Referências
Bibliográficas BRANDÃO, C. R. O que é folclore. 13ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 34-107. CHAUI, M. Cultura e democracia: O discurso competente e outras falas. 11ª ed. São Paulo: Cortez, 2006, p. 32-54. CASTRO, Z. M. D.; COUTO, A. D. P. Folias de Reis. São Paulo: Separata da Revista do Arquivo CLXV, Secretária de Educação e Cultura, Prefeitura do Município de São Paulo, 1959, p. 41-48. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989, p. 61. LÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. 5ª ed. Tradução de Tânia Pellegrini. Campinas: Papirus, 1989, p. 25-51. MAHFOUD, M. Folia de Reis: Festa raiz: Psicologia e experiência religiosa na Estação Ecológica Juréia-Itatins. São Paulo; Campinas: Companhia Ilimitada; Centro de Memória, 2003, p. 47. PORTO, G. Folias de Reis no Sul de Minas. Rio de Janeiro: MEC-SEC: FUNARTE: Instituto Nacional do Folclore, 1982, p. 15. RICOEUR, P. O conflito das interpretações: Ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978, p. 27-28. SARAIVA, B. A. et al. Bandeiras do Divino – A Folia de Reis de Campinas. Trabalho de Conclusão de Curso. (Comunicação Social – Jornalismo – Universidade Paulista) Campinas – SP, 2007, p. 13-79.
Notas: [1] Juliano Luis Pereira Sanches é formado em Comunicação Social - Jornalismo pela UNIP Campinas/SP - 2007. O trabalho As culturas do povo no espaço urbano - Anonimato e domínio público se baseiam nas impressões obtidas numa pesquisa realizada sobre o ritual da Folia de Reis, apresentada no livro Bandeiras do Divino - A Folia de Reis de Campinas (2007), que contou com a participação dos jornalistas Gustavo Longuinhos de Sousa, Eduardo Henrique de Freitas, Bruno Affonso Saraiva, José Santos Dolfini e Juliano Luis Pereira Sanches. Tal trabalho foi defendido na conclusão do curso de Comunicação Social - Jornalismo.
Revista
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- ISSN 1806-2962 - Ano VI - Número 10 - Novembro de 2008
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