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PARA DESEQUILIBRAR O BALÉ: UMA ANÁLISE DE SUA CONSTITUIÇÃO ESTÉTICA
Autora: Rousejanny da Silva Ferreira[1] - rousedance.ferreira@gmail.com

Resumo: Na maioria dos livros de história da dança escritos no Brasil há uma disposição linear e cronológica dos acontecimentos. Tomando o balé como objeto desta pesquisa, identificamos que não há preocupação de síntese, contextualização social e observância das fontes.  Nosso objetivo, no entanto, é compreender que estética preza neste balé construído por sujeitos do século XXI; qual o seu lugar numa identidade estética ou concepção de dança; e seu percurso ditado pela historiografia com as características acima citadas, dos autores brasileiros. A partir disso, repensar uma possível abordagem do balé, que se permitam embates e diálogos que possam ampliar o imaginário do mundo do balé, desestabilizando antigas certezas, pluralizando inclusive, a tradição clássica.

Palavras-chave: Balé, Historiografia da Dança, Estética.

Abstract: Most books of written history of dance in Brazil there is a provision of linear and chronological events. Taking the ballet as an object of this research, we identified that there is no concern of synthesis, and social background with the sources. Our goal, however, is to understand that aesthetic values in this ballet built by subject of the XXI century; place in which your identity or design aesthetics of dance, and its path dictated by the historiography with the characteristics mentioned, the Brazilian authors. From there, rethink a possible approach to ballet, which will allow collisions and dialogues that can enlarge the imagination of the world of ballet, destabilizing old certainties, including multiplication, the classical tradition.

Keywords: Ballet, Historiography of Dance, Aesthetics.

Introdução

A historiografia da dança no Brasil, na maioria das vezes, tem preservado sua centralidade numa determinada abordagem estética do que seja a linguagem artística do balé. Confrontar os autores e seus respectivos pensamentos sobre a arte da dança significa questionar dogmas que estes próprios autores vieram construindo e solidificando no decorrer do tempo. Neste trabalho, pretendemos inicialmente destacar os principais autores brasileiros que tratam da História da Dança, com enfoque na linguagem do balé e em um trato específico que este recebe. Em seguida, buscamos analisar alguns conceitos presentes nesta literatura, as conseqüências de determinado uso e finalmente, contra-argumentar algumas posições destes autores, colocando em xeque outras manifestações pertencentes à estética do balé, lembradas por outras linguagens da arte, mas muitas vezes, esquecidas por esta historiografia.

Historiografia da dança: um reinado chamado balé

Contar uma história da dança. Este tem sido o trabalho de alguns autores que se dispuseram a revelar a imensidão destas histórias e seus vários desfechos. Analisaremos neste primeiro momento o perfil destes autores e suas respectivas relações com a dança. Os livros apresentados aqui representam grande parte da produção nacional. Neste caso, priorizamos as produções de maior popularidade e que geralmente aparecem como referências bibliográficas quando se trata de história da dança.

A primeira produção nacional a tratar da história da dança foi o livro A Dança e a Escola de Ballet em 1956, escrito por Pierre Michailowsky e publicado pelo Ministério da Educação e Cultura. Michailowsky era russo, ex-bailarino da Escola Imperial de São Petersburgo e atuou como professor de Filosofia do Direito na Universidade de Petrogrado. Mudou-se para o Brasil em 1926 e iniciou seu trabalho de balé em clubes freqüentados por jovens que não tinham o anseio de serem bailarinas. Ele se define como pioneiro no Brasil do estudo teórico e técnico do Ballet, com seu enfoque artístico-pedagógico fundamentado na história, teoria e técnica.   Michailowsky justifica a necessidade do seu livro para a formação da juventude e ressalta que as escolas formadoras de bailarinos não se preocupavam com a formação teórica e estética dos alunos valorizando somente a base empírica, como descreve no trecho abaixo:

“A idéia de escrever este livro nasceu da constatação da absoluta ausência no Brasil do estudo do problema teórico do Ballet como a base estética do estudo técnico. As Escolas de Ballet disseminadas no Brasil e existentes no Rio são escolas empíricas que se ocupam somente com uma instrução técnica, sem preocupar-se com o estudo do problema teórico de Ballet, que deve ser a própria base da educação artística e da instrução técnica” [MICHAILOWSKY, 1956:07].

Adepto da eugenia, o autor faz pontes entre arte, ciência e saúde dando valor à educação do corpo saudável, disciplinado. Estas eram as bases de sua pesquisa que já vinha se realizando com seus estudos em Estética Física, desde que residia na Rússia. Dedica a primeira parte do seu livro à exposição de sua teoria - A Arte Geradora do Corpo e do Espírito: Doutrina Estética e Visão Educacional do Professor Pierre Michailowsky.

Colocando seu livro como uma homenagem à Arte Brasileira, pela contribuição sistematizada deste estudo, explica a dança sob o ponto de vista da evolução natural, orgânica, até a transformação desta, em arte (leia-se ballet). Traz no decorrer do livro, uma síntese do histórico do balé europeu desde seu surgimento na França até o balé russo do século XX, além de uma divisão arbitrária da Dança Cênica em categorias:

a) dança clássica: representa a poesia coreográfica, merece maior atenção por ser considerada a arte imortal e universal:

“Sendo a essência poética da imaginação abstrata, a dança clássica é universal, é a ”linguagem da divindade perdida entre os mortais”. Ela não conhece os limites dos grupos éticos nem as fronteiras político-nacionais. A arte da dança clássica não tem pátria, sendo patrimônio universal de toda a humanidade” [MICHAILOWSKY, 1956: 135].

b) dança característica: nacional, reflete o temperamento do povo;

c) dança estilizada: representa o caráter original das danças nacionais, a psique dos povos.

Após a contribuição de Michailowsky, a literatura referente à história da dança só volta a ter impulso na década de 1980 com lançamento de quatro livros: Dalal Achcar: Balé: Uma Arte [1980]; Antônio José Faro: Pequena História da Dança [1986]; Eduardo Sucena: A Dança Teatral no Brasil [1989] e Maribel Portinari: História da Dança [1989].

Pondo em análise os livros de Faro [1980] e Portinari [1989], observam-se muitas características em comum, desde o título do livro às abordagens dadas à história. Os dois livros, apesar de pretenderem fazer um panorama geral da história da dança acadêmica, privilegiam a historia do balé, pois a quantidade de páginas dedicadas a este é superior a metade do livro, sendo o restante referente a danças pré e pós-balé. Uma característica metodológica bastante acentuada destes autores é a neutralidade quanto aos fatos ocorridos. Eles são simplesmente expostos, passando por rotulações e classificações hierarquizantes das supostas formas de dança, explicitando estes traços marcantes do modelo positivista e eurocentrista de se fazer ciência. Peculiaridade encontrada não somente nestes dois autores, mas em grande parte da historiografia da dança no Brasil. O olhar eurocentrista dos autores acentua-se quando se percebe que, mesmo tratando de panoramas gerais, outras formas de dança e até mesmo a dança produzida no Brasil, tem pouco espaço, sendo o maior enfoque para os desfechos do balé na Europa.

Antonio José Faro teve formação em balé e Direito, foi professor de história da dança e crítico em jornais e periódicos que tratam da dança no Brasil e no exterior. Além do livro que utilizamos como base para este trabalho, que já está na sua quarta edição, o autor já escreveu A Dança no Brasil e Seus Construtores [1988] e Dicionário de Balé e de Dança [1989].

Em Pequena História da Dança [1986] Faro coloca suas considerações sobre os grandes inovadores da dança e sua abordagem histórica a partir da evolução técnica e artística. Durante sua exposição, cita nomes de vários bailarinos e coreógrafos ligados ao balé, e segue atribuindo somente a estes, os méritos de inovações técnicas e artísticas da dança acadêmica. Dos quatro capítulos dedicados propriamente para a história da dança, três são inteiramente para a história do balé.

Quanto a sua abordagem da dança moderna e contemporânea, não mantém a mesma neutralidade e linearidade de fatos que apresenta no balé. Referente à dança contemporânea explana em quase todo o texto suas opiniões, trazendo poucas informações consistentes. Utiliza termos como “pseucontemporâneos”, “pseudocompanhia”, “retrocesso da dança”, e “apelação”. Aproveita então, para reforçar sua posição de defensor do balé e sobrepô-lo perante as outras danças, neste caso a contemporânea. Ao tratar da dança contemporânea, defende a seguinte posição:

"É mais uma tentativa de se criarem novos espaços, novas formas de expressão, mas o resultado desta mistura não parece muito enriquecedor para a dança como tal, já que tais espetáculos atraem o público mais como curiosidade do que propriamente como arte. Um bom balé, tal como um bom conto, uma boa música ou uma boa peça, deve aguçar nossa vontade de voltar a vê-lo outras vezes. E cada vez que o virmos haverá sempre uma renovação das emoções que devem ser despertadas. A arte imediatista é como um panfleto político: a gente lê, amassa e joga fora" [FARO, 1998: 126].

Passando para o livro de Maribel Portinari, encontramos maior pudor científico, pois mesmo ficando subentendido sua preferência pelo balé, apresenta um histórico mais consistente que Faro. Portinari teve formação em História e Jornalismo, tornando-se posteriormente crítica de dança do Jornal O Globo. Antes de escrever seu livro sobre história da dança, lançou Nos Passos da Dança em 1985, composto de 27 entrevistas feitas por ela a personalidades da dança, sendo grande parte, do balé. Quatro anos depois, em 1989 lança História da dança trazendo as mesmas características de privilégio ao balé em suas escritas, tanto na quantidade de páginas dedicadas, como no enfoque que o balé tem em relação a outros estilos de dança.

"Quem domina a técnica do ballet pode se quiser interpretar uma coreografia moderna [...]. Mas aqui a recíproca não é verdadeira. Um profissional formado exclusivamente na técnica da dança moderna não faz 32 fouettés nem entrechats, nem cabrioles, não sabe dançar sobre as pontas" [PORTINARI 1989: 134].

Dentre os livros produzidos nesta década, estes são os que pretendem dar um panorama geral do histórico da dança no ocidente, inclusive no Brasil. Além de apresentar um viés tendencioso para o balé, esses livros privilegiam somente determinadas manifestações que esta dança construiu, principalmente entre os séculos XVIII e XIX, formulando conceitos do que se tem como balé e suas manifestações. Esta discussão será colocada mais ao fundo no segundo momento deste trabalho.

Seguindo nas análises dos livros da década de 80, apresentamos Dalal Achcar que tem como eixo de seu trabalho o balé e seus aspectos históricos e Eduardo Sucena que traz um livro-documento das companhias, escolas e acontecimentos que permearam o universo da dança acadêmica no Brasil.

Dalal Achcar, autora do livro Balé: uma arte lançado em 1980 e com segunda edição em 1998, faz uma breve visita pelo histórico da dança, passando pelas tribais, folclóricas, de salão e acadêmicas – classificação estabelecida pela própria autora – mas seu foco principal como o próprio nome do livro já confirma, é o balé. A autora do livro tem uma trajetória importante na formação do balé na cidade do Rio de Janeiro, como bailarina e posteriormente como diretora do Balé do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sendo até o início do ano de 2008, a única Escola Oficial de Balé do Brasil.

Nos oito capítulos que se seguem, Achcar expõe elementos da composição de um balé, desde suas especificidades como música, vestuário, aulas, ensino, até biografias de grandes personalidades, companhias de balé e um diagrama da dança no Brasil no tempo recente, escrito pelo pesquisador de dança Roberto Pereira.

O que nos chama atenção para esta pesquisa é o lugar que o balé ocupa na construção da história da dança e seu método de ensino. Para Dalal Achcar, o balé é a dança imortal, sem fronteiras, feita por países civilizados. Para chegar a isso, segundo a autora, a dança passou por um processo evolucionista até a sistematização do balé, quando finalmente a dança se torna arte. De acordo com a autora, a dança acompanhou a evolução do homem, aperfeiçoando-se à medida que ele se civilizava [1998:15]. Além disso, acredita que o ensino do balé é indispensável para a formação de um bailarino, independente da linha de dança que este queira seguir.

No livro A Dança Teatral no Brasil [1989] Eduardo Sucena, que atuou como bailarino do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, posteriormente como coreógrafo de companhias e professor de dança, define seu trabalho como uma obra documental. Seu trabalho é dividido por tópicos, com biografias de coreógrafos, história das companhias do eixo Rio-São Paulo, com suas respectivas trajetórias e contribuições para a dança; prioriza a história da dança no século XX, e ao longo do livro cita festivais, concursos, e encontros de escolas que considera importante para o desenvolvimento da dança teatral no Brasil.

Outra grande produção historiográfica da dança só voltará a acontecer em 1999 com o livro História da Dança: Evolução Cultural, por Eliana Caminada, professora de História da Dança numa faculdade carioca de dança. Caminada assume logo no início de seu livro que sua pretensão não é ser historiadora, ou teórica da dança, sendo assumidamente bailarina, e talvez por isso, a autora se refira tanto ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro (local de sua formação) quando faz referência às obras coreográficas e imagens além de utilizar fotografias de sua carreira e arquivo pessoal.  Sua obra é a maior em número de páginas e ilustrações, de todos os livros analisados neste trabalho. 

Seu foco é bem semelhante a outras produções já analisadas aqui. Dedica mais da metade do seu livro à história do balé, principalmente do século XVIII ao início do século XX. Quanto aos aspectos históricos do livro tem uma estrutura parecida com a de Maribel Portinari: traz os fatos linearmente, por classificações e coloca o balé como centro da história da dança, ou seja, interpreta a história do ponto de vista de sua vivência, o balé.

Isso pode ser claramente visto nas imagens do livro, sendo grande parte de obras de balé, mesmo que a autora esteja tratando de danças nacionais como a egípcia ou grega, por exemplo. Mais afirmativo ainda, é sua posição de defensora do balé como no trecho o ballet se tornou uma arte imortal [IBIDEM, 87] e reafirmando sua visão eurocentrista já tomada por todo o discurso que os livros de dança vinham produzindo no Brasil: “Sabe-se que nem todos os povos possuem talento na mesma proporção, contudo, seria um tanto leviano falar que existem povos que não dancem” [IBIDEM, 01].

A bibliografia da história da dança no Brasil, até este momento, apresentou pontos em comum entre todos os autores. O tratamento dado ao balé merece destaque em todos e é superior a outras formas de dança. Esta corrente de pensamento segue bases científicas ligadas ao positivismo, delineando um único modelo de balé que se coloca e é aceito como verdade. Dessa forma, estes livros legitimam apenas uma parte da história do balé, pois há poucas referências deste no século XX, principalmente após a década de 1920, e abordam uma parte menor ainda da história da dança moderna, contemporânea, já que muitas vezes as informações aparecem muito superficiais e diminuídas em relação ao trato que o balé tem.

Abordagens que vão traçar outro olhar para a história do balé começam a tomar corpo com os trabalhos do pesquisador Roberto Pereira a partir de seu livro A Formação do Balé Brasileiro em 2003. Pereira traz novas contribuições para historiografia da dança, principalmente para a formação do balé no Brasil. Trata-se de um pesquisador de dança, que possui uma série de livros e artigos especialmente relacionados ao balé. Possui doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC - SP e coordena atualmente o curso de graduação em dança da UniverCidade – RJ onde organiza uma coleção chamada Lições da Dança composta por artigos de pesquisadores brasileiros.

Em seu livro A Formação do Balé Brasileiro problematiza o processo de formação do bailado nacional desde a vinda de companhias de balé da Europa e a conseqüente construção da Escola de Bailados no Brasil na cidade do Rio de Janeiro. Explicita os trâmites ideológicos da dança com o Estado Novo, a atuação da bailarina Eros Volúsia na formulação de um bailado nacional e as relações entre representação nacional e autenticidade nacional tão em voga no período Getulista.

"As complexas relações entre as idéias de nacionalismo e balé romântico, bem como as transformações dela advindas e ocorridas, não apenas na cena, mas no corpo que dança, repercutiram como já se observou, de forma decisiva em momentos posteriores. [...] Conceitos românticos delineavam a concepção da qual partiam as investidas no sentido de construir um balé que pudesse representar o que era considerado como legitimamente brasileiro. Uma concepção importada é certo, mas que ansiava por ser traduzida num novo país, uma nova cultura" [PEREIRA, 2003:16].

Fechando este primeiro momento do trabalho, onde apresentamos as principais produções brasileiras, observamos um enfoque unilateral de grande parte dos autores, norteando suas bases teóricas pelo campo do balé, deixando transparecer muitas vezes, posições tendenciosas referentes às estéticas da dança e a própria trajetória do balé.  Roberto Pereira é o autor que se desprende das características dos outros autores, e vem contribuindo para novas reflexões da história da dança, menos tendenciosas e mais problematizadas. 

Seguimos para o próximo tópico deste trabalho, onde pretendemos compreender como estes livros dialogam com a produção artística das manifestações consideradas balé, independente do campo delimitado pelos livros aqui usados como fonte de pesquisa/análise.

Analisando os conceitos: que balé é esse?

Para iniciar nossas questões, apresentamos conceitos de palavras consideradas chave e de uso comum no universo a ser analisado. São elas: balé, clássico e repertório.

Balé: 1) Representação dramática em que se combinam a dança, a música e a pantomima. 2) Companhia de balé [DICIONÁRIO AURÉLIO, 2001: 84].

Clássico: [...] 2) Que segue em matéria de arte, letras, cultura, o padrão deles. 3) Da melhor qualidade. [IDEM; 158].

Repertório: (...): conjunto das obras interpretadas por uma companhia teatral, por um ator, por uma orquestra, por um solista, etc. [IDEM; 598].

Os conceitos delineiam pontos de vista que se pretende formar.  Na análise dos livros feita anteriormente, pode-se observar que na maioria dos autores que uma mesma matriz científica e artística delineia a estrutura de suas obras. Estes conceitos, mesmo que não apareçam claramente no texto, definem olhares para um determinado tipo de balé. Nos conceitos retirados do Dicionário Aurélio, balé significa não somente um estilo/escola, mas compreende também representações que a dança pode ter. Já clássico e repertório, que são nomenclaturas usuais dos autores do balé para definir de qual balé se fala, no dicionário é colocado como uma obra de qualidade que não está preso a um determinado momento da história.

Para compreender como a definição de conceitos leva a um sentido e conseqüentemente a um conteúdo, recorremos a Renhart Koselleck, historiador alemão que atua na teoria da história e nos aspectos da história moderna e contemporânea.  De acordo com o autor um conceito relaciona-se sempre àquilo que se quer compreender, sendo, portanto a relação entre conceito e conteúdo a ser compreendido, ou tomado inteligível, uma relação necessariamente tensa [IDEM, 1992:136].

Na investigação da história dos conceitos pretende-se verificar como e quando determinados conceitos entram em voga e ocupam o lugar de verdades. Para a maioria dos autores analisados, balé faz referência ao sistema de dança formalizado a partir do reinado de Luís XIV na França, com a criação da Escola Oficial em 1672, que aqui daremos o nome de Escola Acadêmica Tradicional, devido sua importância quanto à disseminação deste sistema por toda a Europa possibilitando a criação de segmentos e escolas especificas advindas então deste próprio sistema balé.

Dentro desta Escola, terminologias foram moldando o que historicamente foi sendo chamado de balé clássico ou balé de repertório. Isto se liga essencialmente a trajetória de glória e formalização deste modelo de balé, ocorrida nos séculos XVII e XIX. Ou seja, estes conceitos representam determinados contextos, lugares e posicionamentos e não deveriam ser colocados como conceitos universais como ocorre com pesquisadores e artistas que possuem certa afinidade com este pensar da dança.

Esta construção do balé foi norteada por alguns fatos que contribuíram para a consolidação destes conceitos da Escola Acadêmica. Expomos aqui uma seqüência de fatos que consideramos relevantes para entender o percurso da formação do conceito de clássico e repertorio dentro desta escola.

Com a criação da primeira Escola Oficial de Dança na Ópera de Paris, houve a necessidade de estabelecer um sistema de ensino, modos de se organizar e moldar o corpo e tratados para codificar os movimentos elaborados pelos estudiosos do balé. O grande responsável por esta codificação foi Pierre Beauchamps, que deixou ainda a herança de preservar intactos o vocabulário e os termos técnicos utilizados no seu tempo. Segundo CAMINADA [106; 1999], graças a isso, a tradição pôde ser mantida oralmente pelos bailarinos, o que foi de fundamental importância na preservação do sistema.  O balé já começa neste momento, a delinear o que quer para seu vocabulário, traçando limites entre o que seria ou não balé.

A terminologia clássica é um dos grandes triunfos desta Escola, pois com ela o balé estabeleceu características fundamentais como a valorização do corpo feminino, o uso de sapatilhas de ponta, o incremento de saltos e passos de elevação. O balé Giselle estreado em 1841 representa o auge desta fase e favorece a popularização do balé e sua inserção nas discussões artísticas da época.

O auge do ballet romântico coincide com o de uma intensa produção literária valorizando o pitoresco, o fantástico, o exótico, o medieval, o espiritual. Os libretistas nutriram-se dessas fontes refletindo o gosto e as fixações dominantes na primeira metade do século XIX [PORTINARI, 1989: 96].

O Romantismo é o ponto chave para se registrar o que é balé clássico, pela proporção artística e estudo sobre a técnica corporal alcançado. CAMINADA [1999:115] coloca como clássico a arte que já completara um século com o domínio técnico virtuosístico e racional, com passos e trajes que já faziam parte de uma tradição. A tradição, a composição do ideal clássico aliado a uma fórmula de balé romântico que vinha agradando platéia e coreógrafos, por longos anos e atravessou séculos, formulou um modelo de balé eleito como favorito e oficial. Desta Escola Acadêmica surgem os balés de repertório, obras coreográficas divididas em atos, com estrutura narrativa, geralmente abordando temáticas de relacionamentos amorosos ou o cotidiano dos povos europeus. Este modelo está relacionado a um conceito de arte e estética, formatado na maioria das artes da época.

Os balés de repertório são predominantemente ligados ao lirismo romântico e às obras criadas dentro da Escola Acadêmica Tradicional, tratada pela maioria dos autores como Balé Clássico.  Dalal Achcar apresenta em seu livro, no capítulo que explana as linhas que fizeram a história do balé, que a coreografia Carmem, de Roland Petit, estreado em 1941 é à linha clássica, por datação histórica, mais próxima dos nossos dias, e caracterizada como balé moderno. Ao contrario disso, no mesmo capítulo apresenta o balé A Mesa Verde, feito por Kurt Jooss em 1932 na Rússia, como uma grande obra, mas fora do estilo clássico.

Kurt Jooss coreografava fora dos moldes da Escola Tradicional, tinha referências do movimento expressionista e do estudioso do movimento Rodolf Laban. Criou vários balés, sendo que A Mesa Verde foi sua obra mais famosa por tratar de maneira satírica as relações diplomáticas entre os países que compunham a Liga das Nações. Achcar não explica que critério adotou para definí-la como não-clássica, apenas cita que “esta obra, que está fora dos moldes tradicionais do balé russo, é de grande interesse e foi aplaudida por todo o mundo civilizado, com exceção dos países fascistas” [ACHCAR, 1998:94].

Nesse contínuo de classificação do balé, Michailowsky, Portinari, Dachcar, Faro e Caminada concordam que o balé moderno surge com a ascensão dos Ballets Russes em 1909, preparando o balé para o que seria considerado neoclássico. Caminada por exemplo, quando se refere aos trabalhos criados no século XX que não estão ligados à Escola Acadêmica Tradicional, refere-se a estes com o nome de vanguarda, um movimento passageiro, realçando uma situação de preferência, em que os autores se quer problematizam como determinados balés se tornaram clássicos e quais critérios  são usados, já que as obras do século XX, também pertencem a uma estética do balé mas que bebem em outras fontes,  dentro de um  universo mais amplo da dança .

A continuação do balé no século XX, segundo esses autores se dá somente pelo advento do estilo neoclássico, desenvolvido pelo coreografo George Balanchine, fundador e coreógrafo do New York Ballet em 1948. Foi influenciado pelos trabalhos dos Ballets Russes, mas propunha uma retomada ao estilo tradicional do balé, mas renovado por alguns pontos:

Através da obra de Balanchine pode-se definir, em linhas gerais, o neoclassicismo na dança [...]. Seriam elas: criação baseada no virtuosismo da técnica acadêmica; geometria no tratamento do conjunto, reportando-se às concepções de Beaujoyeulx e às renascentistas, com seus ideais clássicos gregos; temas e concepção estética, inúmeras vezes, de inspiração renascentista, compreendendo uma dose de atleticismo da alma e do corpo e uma certa impessoalidade na apresentação; revalorização da dança do conjunto e da qualidade do corpo de baile, com a conseqüente negação do star system; produções espartanas e despojadas e, em caso contrário, estas parecem não ser indispensáveis a obra; foco, acentuação e intenção sempre à plasticidade do corpo humano; padrão musical básico de excelência; utilização da abstração, predominando sobres os ballets com enredo [CAMINADA, 1999:236].

Portanto, a autora caracteriza as novas formas de balé como uma continuação dos modelos criados anteriormente, sendo acrescentados novos elementos necessários para a revitalização deste modelo de balé. Os Ballets Russes, por exemplo, que foi um movimento anterior à ascensão de Balanchine, apesar de fazerem parte do balé moderno e até merecerem uma atenção especial nas historiografias analisadas - se comparadas com outras que se quer são citadas – não são colocadas efetivamente como produções clássicas do balé, por que dentro desta estética seguida por estes autores as produções clássicas são as anteriores ao século XX. Dessa forma, os balés modernos e contemporâneos não recebem a mesma atenção e importância devida, o que influencia no (re)conhecimento desta produção dentro do universo do balé.

Mas qual o lugar do clássico e do repertório no balé? Peças como Giselle, Bela Adormecida, Lago dos Cisnes são tombadas como repertórios clássicos pela sua grande importância na construção histórico-artística do balé, sua perpetuação e legitimação social, claro que advindos de uma competente disseminação e valorização dada a esta Escola Acadêmica. Entretanto, questionamos que parâmetros são usados para identificar se uma obra pertence ou não a este universo. 

Quando autores como Caminada, Dachcar e Michailowsky afirmam claramente no conteúdo de seus livros que o balé é a arte imortal e sem fronteiras, referem-se a este modelo artístico, construído pela Escola Acadêmica Tradicional num determinado momento histórico. Balé, clássico e repertório parecem ter vindo de um lugar comum, e por lá mesmo terem ficado. E mesmo em Faro e Portinari, que não afirmam diretamente o que vem a ser o balé e seus predicados, é possível identificar vestígios de um positivismo, permeado pela valorização e enaltecimento de determinados balés, sem contextualizar como os conceitos foram formados e ignorando outras manifestações artísticas de dança que também são balés.

Apesar da confirmação constante na crença deste modelo de balé como eleito e destacado por esta historiografia, geralmente nestes livros, enquanto movimento artístico, o balé aparece com poucas conexões entre arte e sociedade, como se não fizesse parte de uma rede de interesses políticos, movimentos artísticos, conflitos e reflexões que transformaram inclusive, sua própria estética. Esse deslocamento formulou a crença de um balé à parte do mundo, enquadrando a história da dança a movimentos estanques que surgem e acabam se sobrepondo uns aos outros como a seguinte linha histórica: balé – dança moderna – dança contemporânea.

Sobre este assunto, o Doutor em Sociologia José Fernando Rodrigues de Souza discute em seu artigo Rupturas e permanências na construção da arte moderna, publicado em 2007, que a história da dança nestes livros é norteada pelo balé, que criou seu próprio mundo, suas celebridades, e que com o passar dos anos e suas respectivas mortes, estes artistas levaram consigo toda a linguagem da dança desenvolvida no seu tempo.

Há uma crença em habilidades e competências individuais que produzem movimentos, escolas. A morte destes indivíduos representa o fim de eras, períodos. E assim a cronologia vai sendo refeita. São manuais imensos, mas com poucas respostas sobre origens, diálogos entre as experiências construídas a partir do ballet de corte [SOUZA, 2006].

Nesta esfera, toda a história da dança é contada pelo norte do balé de maneira classificatória a mensurar os acontecimentos, já que sua seleção surge do que os autores vêem como dança a partir do que o balé produziu. O foco biográfico e terminal desta construção fragmentam a dança, dificultando muitas vezes, a compreensão do leitor da relevância dos fatos abordados e até mesmo os porquês de determinados julgamentos ou tratamento com a história do balé.

[...] É dentro dessa abordagem que os manuais de história da dança ou de história social da arte apresentam em tempo contínuo evolutivo, cronologizado sobre cada movimento ou era. Perde-se espaço para a discussão sobre ambigüidades, permanências e interações entre os estilos, movimentos e tendências. Mesmo os “cortes”, momentos de ruptura, aparecem genialmente como resposta a uma longeva e decadente experiência anterior” [SOUZA, 2006].

Neste olhar positivista e restrito colocado por estes autores desta historiografia, o que o balé produziu foi sendo filtrado a cada momento, para formular conceitos de acordo com o seu pensamento de dança, geralmente ligados ao modelo da Escola Acadêmica. Concordando com Koselleck que novos conceitos, articulados a conteúdos, são produzidos/pensados ainda que as palavras empregadas possam ser as mesmas, buscamos a seguir, ampliar os conceitos de balé, clássico e repertório e enxergar em outras manifestações - não menos importantes do que a Escola Tradicional construiu - as várias faces do balé, tentando abrir um leque maior de possibilidades, interferências e conexões que esta linguagem apreendeu, principalmente no século XX.

Balés e balés...

Com intuito de identificar que outras formas de balé foram e ainda são construídos, e enfatizar seu lugar no panorama da dança, contra-argumentamos maior parte da historiografia brasileira, ao abrir espaço para outras formas de balé, situando na medida do possível, seus desdobramentos e cruzamentos artísticos, que foram negligenciados por estes livros, mas valorizados por literaturas de outras linguagens da arte.

De início, destacamos os trabalhos dos Ballets Russes criado em 1909 que, apesar de ser citado por muitos autores da história da dança, seu conteúdo acaba sendo mais um emaranhado de nomes e datas, que uma análise do que representou o movimento. A partir deste movimento da vanguarda artística européia, encabeçado na dança por Sergei Pvlovitch Diaghilev, os coreógrafos do balé se aproximaram dos intelectuais europeus e de todo o movimento modernista das artes que vinha ocorrendo na época.

Os Ballets Russes alcançaram o ideal que o movimento simbolista tinha proclamado: a evocação simultânea de todas as ordens de sensações estéticas em coordenadas alegóricas. Dança, mímica, música, luz, colorido, tudo tornava viva a poesia, realizava o espetáculo completo e absoluto com uma perfeição homogênea provavelmente insuperável. É bem possível que uma visão de alguns minutos como Le Spectre de La Rose, um ballet como Schérèrazade, um drama mimado como Thamar, tenham atingido o ponto supremo de todas as aspirações estéticas dos tempos modernos e tenham respondido a todas as condições da obra-prima sintética das artes” [SASPORTES, 1983:36].

A grande contribuição deste movimento para a dança foi à renovação estética proporcionada ao balé, com coreógrafos como Michel Fokine, que dentre seus inúmeros trabalhos, criou A Morte dos Cisnes, que representa a morte do balé lírico-romântico, pois acreditava que uma nova maneira de se construir balés só era possível com a “morte” deste antigo modelo; e Vaslav Nijinski, bailarino e coreógrafo, rompeu com a estabilidade da dança, atiçando a platéia com seus trabalhos sensuais e provocativos. Seus três trabalhos como coreógrafo marcaram esta nova estética do balé: “L’ aprés-midi d’ um faune, Jeux e Sacre du Printemps”.

Os trabalhos realizados nos Ballets Russes desencadearam uma série de movimentos paralelos e também posteriores, como por exemplo, o balé participando dos trabalhos performáticos, inclusive na Escola de Bauhaus, e nas performances e vídeos criados pelos Ballets Suecos a partir de 1920.

No livro A Arte da Performance: do Futurismo ao Presente, de Roselee Goldberg lançado em 2006,  é possível ver em vários momentos o uso do termo balé para nominar trabalhos corporais realizados por performers ligados ao futurismo. Marinetti, pintor e performer citado no livro, advertia que; “era preciso extrapolar as ações musculares e buscar na dança aquele corpo ideal e múltiplo do motor, com o qual sonhamos a tanto tempo [Ibidem, 2006:14].

Esses balés futuristas construídos por volta de 1917 faziam pontes com os Ballets Russes já que o movimento da vanguarda européia era composto por artistas de diversas áreas. Com isso, havia uma constante troca de experiências entre o balé e performance.

Posteriormente em 1919, com a abertura da Bauhaus, instituição alemã de ensino das artes de grande importância para o desenvolvimento de trabalhos e pesquisas nas Artes Visuais, houve a abertura de uma Oficina de Teatro comandada por Oskar Schlemmer, um pesquisador do movimento, que cria o Balé Triádico, que significa: três, devido aos três bailarinos, as três partes da composição sinfônico-arquitetônica. Segundo Goldberg “o balé triádico era um estudo metafísico” [IBIDEM, 2006:99]. Além disso, Schlemmer acreditava que os movimentos deveriam começar com a própria vida, com o ficar de pé e o caminhar, deixando o saltar e o dançar para bem mais tarde [IBIDEM, 2006:99]. Era o equilíbrio dos opostos, de conceitos abstratos e impulsos emocionais, fusão que a Bauhaus pretendia entre a arte e a tecnologia.

Nos Ballets Suecos criados em 1920, mais conhecidos como Les Ballets Suédois os cruzamentos entre performance, dança e filme resultaram em trabalhos de grande relevância, não só para a dança, mas todas a áreas comuns, por isso arriscam uma justaposição de formas diferentes e uma combinação de várias disciplinas.  Destacamos dentre eles, o Ballet Relâche composto por Jean Börlin e com contribuição do artista plástico Francis Picabia em 1924, Paris. Foi um trabalho cinematográfico anunciado como Instantaneous, um balé com dois atos, considerado como umas das últimas manifestações do movimento dadaísta, que reunia cinema e espetáculo coreográfico.

The premiere of Relâche, as described by Francis Picabia, marks the end of the Dada years. The collaborators’ scenario, choreography, and music were written to shock, disorient, confuse, and beguile. The ballet’s nonsensical scenario includes elegantly dressed men and women undressing and dressing all while “chain-smoking” cigarettes on stage, as well as other acts of ridiculous tomfoolery. At times signs deck the stage, taunting the audience with obnoxious sayings such as “Do you prefer ballets at the Opera? Poor imbecile!” and “Those who aren’t satisfied are authorized to go fuck off!” [UNIVERSITY OF SOUTHERN CALIFORNIA, 2008].

O segundo filme, apresentado no intervalo dos atos de Relâche, dirigido por Rene Clair,foi o filme Entr'acte,  um dos trabalhos criados pelo artista Francis Picabia e o compositor Erik Satie, junto com aparências de Marcel Duchamp e Man Ray. Trata-se de uma comédia surrealista de humor negro, com a fuga de um homem barbudo vestido de bailarina, e a partir desse modelo, pretendia criar uma nova estética para a arte do novo século, usando recursos como o uso da câmera para captar movimento e velocidade, aliados à dança, as artes visuais e música.

"Lasting roughly twenty minutes, the film is densely packed with about 300 shots. Picabia describes the film as “a true entr’acte, an intermission from life’s monotony and from all hypocritical and ridiculous convention" [IDEM: 2008].

Essa revolução estética idealizada tanto no Ballets Russes como nos Les Ballets Séidois, abrem caminho para novas possibilidades de se pensar o balé do início do século XX ao tempo recente. Vários coreógrafos lançaram novas discussões estéticas para o balé como o coreógrafo Kurt Jooss (Alemanha) que lançou os balés sócio-crítico, no qual postulava que a linguagem do balé era tão expressiva quanto à palavra; os balés abstratos de George Balanchine (Estados Unidos), baseados num esquema coreográfico sem enredo, cenário e figurinos pomposos, onde o que mais importa é o movimento em si; o coreografo Maurice Bejárt (Bélgica), com sua companhia Ballet du XX Siècle, abordando a angústia de sua época e a busca por um significado da humanidade; e o mais recente, e ainda em atividade, William Forsythe (Alemanha) que embaralha a técnica do balé acadêmico, partindo da desconstrução, colocando o bailarino sempre em estado de alerta.

Entretanto nos livros analisados anteriormente, grande parte das informações sobre estes trabalhos são rasas descrições de nomes e datas, o que dificulta mais ainda a apropriação e compreensão destes balés. Tanto que para a composição deste trabalho, a maioria de nossas fontes advém de documentários, artigos e revistas que abordam os balés do século XX e XXI.

Ana Francisca Ponzio em seu artigo: O Classicismo do Contemporâneo publicado na Gesto - Revista Centro Coreográfico em 2003, afirma que “segundo Forsythe, o vocabulário clássico jamais será velho. É a sua escritura que pode ficar datada. [...] a desestruturação da linguagem clássica permite obter possibilidades inauditas ocultadas pela abordagem tradicional do balé” [2003:68]. Essas estruturas desenvolvidas por William Forsythe e pelos coreógrafos anteriores facilitaram os cruzamentos do balé acadêmico no cenário da dança contemporânea, trazendo novos significados para o balé, a possibilidade de flexibilizar a tradição e incorporar as inovações do pensamento da dança do tempo recente.

Mats Ek, coreógrafo sueco que faz parte da nova geração de coreógrafos, trabalhando no Ballet Cullberg, na Ópera de Lyon e em outras companhias, fazendo um trabalho interessante de revisões de balés do repertório clássico romântico. Ele promove mudanças radicais na estrutura da obra, sem alterar a história original do balé, afirmando seu ponto de vista à história original, como ele coloca em entrevista à Revista Bravo!:

A coreografia é alterada, transformando-se em algo novo. Eu pego parte da antiga montagem e faço uma nova, mantendo somente a música e o conceito. A história está lá, senão não poderia ser batizada com o mesmo nome” [2001:137].

Atualmente temos inúmeras companhias de balé que cruzam várias referências da dança com problemáticas da sociedade, e pretendem desequilibrar a técnica acadêmica tradicional, buscando novas maneiras de utilizar este corpo híbrido da dança de hoje. No Brasil, temos o De Anima Ballet Contemporâneo no Rio de Janeiro, que tem como referência principal a pesquisa de William Forsythe, o Ballet Stagium em São Paulo, que engloba no seu balé características nacionalistas, utilizando música popular brasileira nas suas composições; e o Grupo Corpo, em Minas Gerais, que trabalha com a dança moderna, mas com base no balé acadêmico.

Outras companhias que preservam sua identidade no repertório do balé acadêmico tradicional do século XVIII e XIX, ultimamente estão procurando variar seus repertórios e incorporar clássicos de coreógrafos do século XX e até a criar seus próprios repertórios coreográficos.  Como exemplo, temos o Ballet Municipal do Rio de Janeiro, Ballet Nacional do Brasil, National Ballet of Canadá, Ópera de Paris, Ballet Kirov, Bolshoi e Stuttgarter Ballet.

Essa mobilidade e descentralização da produção balética, apesar de ser conhecida, muitas vezes não é apreendida pela historiografia brasileira, ou relatada de maneira muito simplista. Como discutimos no decorrer deste texto, a focalização da maioria dos autores num determinado modelo de balé, ou melhor, em uma história acrítica e desatenta com as transformações estéticas da própria arte não permitiu que se visse o balé com outras roupagens, construindo clássicos após o período romântico, ou fora da Escola Tradicional, mas que apesar disso, existem e são legitimados por algumas companhias que acreditam que o balé também pode ter várias faces, desde a tradicional até a multiplicidade de cruzamentos feitos por coreógrafos do tempo recente.  O interessante de todos esses movimentos, e olhares diferentes para sua estética, é a manutenção e a vivacidade de uma linguagem que não se estagnou e morreu com a decadência de uma Escola Tradicional, e que pode ser reinventada a cada dia.

Considerações Finais

Há uma incompatibilidade entre o que grande parte da historiografia da dança no Brasil produziu no século XX, e as produções coreográficas que ocorreram neste mesmo tempo. Os discursos destes autores direcionados para um determinado modelo de balé definiu quais os créditos para o balé ser considerado clássico e fazer parte do repertório da história do balé. Assim, minimizaram outras manifestações que também fizeram parte da produção balética, mas que por não pertencerem à linguagem estética defendida por eles, ficaram fora do conteúdo de seu livro.

Portanto, delimitar que somente um determinado modelo de balé do passado seja considerado clássico e tenha maior importância que outros que também fizeram parte da construção estética do balé, legitimam um estilo e negam outras produções artísticas construídas por esta mesma linguagem. Sendo assim, coreografias elaboradas fora do eixo do romântico possuem as mesmas condições para se tornarem também integrante dos clássicos que o balé possui, independente da época que foram elaborados.

O balé não é só um movimento estanque que vive de seu passado europeu glorioso, ele permite incorporar as mais variadas técnicas, debates e críticas sobre seu processo e sua construção estética. Por isso, se faz necessário promover sérios debates entre esta historiografia construída e como outro olhar, menos conservador e mais reflexivo pode ser apropriado e servir mais aos problemas da história e da dança e menos aos interesses particulares.

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Notas:

[1]. Pesquisadora em dança, professora e bailarina. Artigo produzido para conclusão da Especialização em Filosofia da Arte - IFITEG orientado pela Ms. Luciana Ribeiro.

 

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