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EM BUSCA DOS SENTIDOS DO TEATRO EM PRISÕES
Autor: Vicente Concilio [1] - viconcilio@gmail.com

Resumo: O presente artigo trata de questionamentos nascidos da prática teatral tanto em instituições penais do Estado de São Paulo, quanto com presos em regime semi-aberto. A fim de investigar a relevância da arte em tais ambientes, recorreu-se às reflexões de Jean Piaget acerca da relação dos homens com as regras, buscando comparar a coerção imposta pelo regime prisional com a tentativa de busca de autonomia proposta pela prática teatral aqui analisada.

Palavras-Chave: Teatro-Educação, Prisão, Presidiários.

Abstract: The present article deals about questions proposed by the analysis of theatrical practices in prisons at the state of São Paulo. In order to investigate art´s relevance in such places, we studied Jean Piaget´s theory of the relationship between men and rules, comparing the prison´s coercion and the aim at autonomy, both offered by the theatrical practices that are analyzed here.

Key-Words: Theater-Education, Prison, Prisoners.

A entrada de práticas teatrais em presídios iniciou-se em meados dos anos 1970. Neste período, as organizações difusoras de políticas de direitos humanos e denunciadoras das torturas e abusos do governo militar geraram um leve abrandamento da rigidez modelar das propostas de encarceramento.

Esse movimento introduziu, ainda que de forma irregular e pouco integrada, algumas propostas diferenciadas na trato com a população carcerária. Surgem, então, iniciativas que atribuem à arte teatral relevância social e artística, defendendo sua presença em prisões como um instrumento capaz de proporcionar a homens e mulheres presos uma experiência estética, propiciadora de uma tomada de consciência oriunda da convivência grupal e do desafio da criação de um espetáculo.

Em São Paulo, experiências narradas por Frei Betto [FREIRE e BETTO, 1986], Maria Rita Freire Costa [COSTA, 1983] e Ruth Escobar [ESCOBAR, 1982] são exemplos da variedade e da vitalidade das práticas cênicas. Elas foram construídas no interior de instituições punitivas, em um momento extremamente delicado da política nacional, no qual coexistiam a censura e a “abertura” política, e no qual a luta pelos direitos humanos iniciava sua campanha pela repatriação dos exilados; ao mesmo tempo, questionavam-se práticas dos órgãos de defesa pública, denunciando-se torturas e trazendo-se à tona discussão relativa aos desaparecidos políticos.

Essas práticas teatrais, dotadas das particularidades de cada contexto em que estavam inseridas (tipo de presídio, grau de apoio oferecido pela direção da instituição, etc...), possuíam em comum o anseio de trazer para a sociedade, com a mediação de um espetáculo teatral. Estes temas são importantes no universo carcerário, a fim de que se busquem possibilidades outras àquelas vidas inutilizadas pelo fracasso da prisão, em seu intuito de oferecer alternativas ao mundo do crime.

De forma trágica, e a despeito da repercussão que esses projetos atingiram, estas práticas teatrais nunca concluíram seu ciclo, pois foram expulsos que eram das unidades penais na medida em que sua visibilidade trazia à tona a incompetência da prisão em realizar seu objetivo declarado, que é o de “ressocializar” indivíduos através do encarceramento. Esse panorama persiste, a despeito de esforços isolados, como a experiência que aqui será analisada.

O presente artigo dialoga com a dissertação Teatro e Prisão: dilemas da liberdade artística em processos teatrais com população carcerária[2], cuja pesquisa nasceu em um presídio feminino, em maio de 2002, e culminou com uma proposta de prática teatral que envolveu egressos do sistema penal e presos em regime semi-aberto, que durou até novembro de 2005.

Esses dois processos, respeitando suas devidas especificidades e propostas de trabalho distintas, tinham como desafio maior a possibilidade da criação de uma obra teatral a partir do trabalho colaborativo de um grupo composto por artistas profissionais e artistas presos. Inseridos no projeto “Teatro nas Prisões”, da FUNAP - Fundação de Amparo ao Preso, órgão governamental ligado à Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, essas experiências buscavam gerar reflexão crítica e social ao mesmo tempo em que possibilitavam o acesso à criação artística para pessoas condenadas ao regime de privação de liberdade, porém não condenadas ao regime de total ausência de meios básicos de saúde, educação e cultura, panorama atual do sistema penitenciário brasileiro.

Durante dois anos, a denominada Oficina de Montagem Teatral aconteceu na Penitenciária Feminina do Tatuapé (PFT), e por ela passaram cerca de 50 mulheres presas. Quando o resultado desse processo estreou, em agosto de 2003, sob a direção de Jorge Spínola, o grupo era composto por 13 atrizes presas e 4 atores profissionais, convidados a integrar o projeto com o objetivo de promover formação em técnicas teatrais específicas ao grupo e ampliar a qualidade da discussão estética elaborada no trabalho.

Essa encenação foi construída a partir de um texto de Plínio Marcos, Homens de Papel, o qual foi adaptado e passou a se chamar Mulheres de Papel. Nesse texto, o dramaturgo explora de maneira contundente as relações de poder no submundo dos catadores de papel, os quais sobrevivem do lixo e a ele se confundem pelo tipo de relação de opressão a que são submetidos pelo comprador do papel coletado.

Em 2004 e 2005, o projeto deixa de acontecer em prisões e passa a ser realizado do “lado de fora”, recebendo presos em regime semi-aberto e ex-presidiários, os primeiros interessados em fazer uso do seu direito de passar o dia trabalhando fora da penitenciária, e os segundos interessados no auxílio financeiro que lhes era oferecido.

Nesse momento, o grupo passou a se chamar Núcleo Panóptico de Teatro e a relevância do projeto foi reconhecida através da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo[3], a qual considerou a criação e o circuito de apresentações do espetáculo Muros (obra inspirada no conto O Muro, de Jean-Paul Sartre) como uma proposta essencial para o teatro desenvolvido na cidade. Assim, o grupo recebeu aporte financeiro suficiente para as 90 apresentações realizadas do espetáculo.

Ao longo dos processos que culminaram com as estréias de Mulheres de Papel e Muros, merece destaque, no tipo de condução dos processos orientados por Jorge Spínola, uma ação que residia nos “subterrâneos” de nossos ensaios.

“Subterrâneos” pois, em uma oficina denominada Oficina de Montagem Teatral, o que está em evidência é a criação de um espetáculo teatral. Esse é o objetivo principal da reunião, em torno do diretor, de todos os integrantes que atuaram na encenação.

O que está oculto é o processo de construção de um contrato de grupo. E esse processo, que visava construir uma relação não-heterônoma entre os artistas presos e o trabalho de criação, é aqui analisado como indispensável a um projeto artístico-pedagógico inserido em um contexto penal, o qual tem o dever de promover uma reflexão sobre o cumprimento das regras no âmbito de uma ação estética coletiva.

Podemos definir um contrato de grupo como uma série de acordos coletivos decididos entre os integrantes do processo, com o objetivo de realizar um projeto em conjunto. Um contrato está comumente associado ao universo das leis e é responsável por estabelecer as regras, os direitos e deveres das partes envolvidas nas situações regulamentadas por ele.

No caso de determinadas produções teatrais profissionais, um contrato é assinado entre artistas e produtores, a fim de regulamentar as bases do trabalho artístico a ser desenvolvido. Ele explicita um regime de trabalho, valores a serem pagos e todas as condições que delimitam o vínculo entre artista e a produção artística, estabelecendo critérios que, não sendo cumpridos por qualquer das partes envolvidas, contratante ou contratado, resultam em penalidades pré-estabelecidas.

Por outro lado, em um processo teatral vinculado a propostas pedagógicas, e nas condições específicas de uma prática realizada dentro de uma prisão (ou com população dela egressa), promover um regime de contratação nos moldes descritos anteriormente seria a aniquilação de um processo particularmente importante.

Jean Piaget (1896-1980), em O Juízo Moral na Criança [PIAGET, 1994], apresentou bases epistemológicas para a compreensão da construção do conceito de regra pelos homens. Trata-se do único estudo sobre moral produzido por ele em toda sua trajetória como estudioso do desenvolvimento da inteligência humana, e é ainda hoje uma referência fundamental sobre o assunto.

Sua abordagem estabeleceu a ipótese de que o homem atribui sentido à prática das regras. De acordo com os pressupostos piagetianos, essa relação entre a prática e a consciência das regras dirigem-se à conquista da autonomia.

No que se refere à prática das regras, ele constatou a presença de quatro estágios. O primeiro é aquele em que as regras praticamente não produzem efeitos sobre a criança (motor e individual). Segue-se uma fase em que elas já se fazem notar, porém não são compreendidas em termos sociais (egocêntrico). O terceiro (cooperação) já revela indícios de uma preocupação em uniformizar as regras que norteiam o jogo coletivo. Esta preocupação leva à consolidação do quarto estágio (codificação) em que as normas se tornam patrimônio do grupo, estabelecendo critérios uniformes a todos os jogadores.

A evolução da prática das regras provoca desenvolvimento equivalente nos estágios de aperfeiçoamento da consciência destas regras. Estes estágios são chamados de anomia (ausência da consciência sobre as regras), heteronomia (obediência a regras por meio da coerção ou por respeito a sua origem “adulta” ou “mística”) e autonomia (consciência da prática das regras).

Piaget constatou que, por volta dos dez anos de idade, um indivíduo já começa a sinalizar a presença de uma moral autônoma, ou seja, a regra passa por uma elaboração consciente, e a decisão de respeitá-la ou transformá-la ganha uma intencionalidade subjetiva. Assim, o respeito às regras estaria vinculado a uma construção pessoal de sentidos pela manutenção desse código de leis, que possui sempre uma reverberação coletiva.

No momento em que as crianças começam a se submeter verdadeiramente às regras e praticá-las segundo uma cooperação real, formam uma concepção nova da regra: pode-se mudá-las, com a condição de haver entendimento, porque a verdade da regra não está na tradição, mas no acordo mútuo e na reciprocidade [PIAGET, 1994, P.82].

Autonomia é um conceito que nasce em oposição à heteronomia, que é a obediência a regras por coerção. O homem autônomo é aquele que segue as regras por consciência de seu significado e sua importância para o coletivo, e está disposto a alterá-las sempre que as considerar inúteis ou incompletas.

Assim, autonomia não é um conceito que se confunde com individualismo, pois está preocupado com a reverberação de opiniões pessoais na organização coletiva. É por isso que Piaget afirma que a democracia é o sistema político ligado à idéia de autonomia, enquanto o autoritarismo está em sintonia com a heteronomia.

Durante nossos ensaios com grupos de presos e egressos, e na medida em que os integrantes do grupo iam estabelecendo vínculos com aquele processo, foi se tornando cada vez mais relevante a consolidação de um contrato erigido em comum acordo e respeitado mutuamente por todos os envolvidos.

Na verdade, uma espécie de pré-contrato existia desde o momento em que os encontros tiveram início. Nos cartazes em que as oficinas foram divulgadas, já havia um horário estabelecido, os dias da semana em que os encontros aconteceriam, enfim, existiam elementos que sinalizavam a presença de algumas regras.

Mas isso não significa muita coisa, pois a validade de uma regra se constrói no sentido a ela atribuído por aqueles que lhe estão sujeitos. E foi por investir na construção de significados para o contrato de grupo, valorizando-o perante o esforço coletivo de realizar um espetáculo teatral, que os processos de criação de Mulheres de Papel e de Muros nos remetem às teorias do juízo moral propostas por Piaget.

O sistema penal estabelece uma relação essencialmente heterônoma com o indivíduo encarcerado. Isso porque ele é:

aparelho disciplinar exaustivo. Em vários sentidos: deve tomar a seu cargo todos os aspectos dos indivíduos, seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições; a prisão, muito mais do que a escola, a oficina ou o exército, que implicam sempre numa certa especialização, é ‘onidisciplinar’. Além disso, a prisão é sem exterior nem lacuna; não se interrompe, a não ser depois de terminada totalmente sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina incessante. Enfim, ela dá um poder quase total sobre os detentos; tem seus mecanismos internos de repressão e de castigo: disciplina despótica. Leva à mais forte intensidade todos os processos que encontramos nos outros dispositivos de disciplina. Ela tem que ser a maquinaria mais potente para impor uma nova forma ao indivíduo pervertido; seu modo de ação é a coação de uma educação total” [FOUCAULT, 2004, P.199].

Essas palavras de Foucault são uma síntese das ações de um presídio sobre os condenados. Em ambiente puramente disciplinar, o respeito às regras é obtido através da coerção e do medo. A obediência é fruto da reafirmação exaustiva dos castigos e da vigilância onipresente.

Mas se a heteronomia é marca da relação entre o sistema penal e seus sujeitados, esse é também o tipo de relação estabelecida pelos presos entre si. É a força bruta que faz valer as leis próprias do cotidiano dos internos. Essa lógica está arraigada em relações que constituem uma rotina permeada pelo terror e pela violência, onde as infrações são punidas com a própria vida daquele que não seguiu o “proceder”.          

Se nos remetermos novamente a Piaget, recordaremos que a heteronomia está ligada ao egocentrismo, estágio em que a prática das regras está pouco ligada à subjetividade. A obediência acontece por medo da punição, e o indivíduo não é capaz de se perceber como modificador das leis, simplesmente porque a relação que estabelece com elas não o impele a criticá-las. Assim sendo, ele permanece alheio aos processos que regem as normas às quais está submetido e, dessa forma, está praticamente condenado a acatá-las, por mais injustas que sejam.

A cadeia quer indivíduos com esse comportamento. Do contrário, ela não seria o que é, um centro de vigilância e manutenção de sua ordem interna conquistada através de castigos, ameaças e alijamento de direitos básicos.

Mas a função da prisão, ao menos aquela explicitada pelos seus dirigentes, é a ressocialização. É considerado ressocializado aquele que demonstra bom comportamento, aquele que é obediente. 

As noções de juízo moral lançadas por Piaget provam que é muito pouco almejar a obediência. Principalmente quando ela é compulsória, conquistada por meio de punições constantes. Quem, em liberdade, está sujeito a tanta vigilância? Quem, em sociedade, está submetido a tantas normas e a tanta força bruta quanto um indivíduo encarcerado?

Essas questões são urgentes, porque a cadeia lida com os infratores da lei, condenados e presos por infringirem leis e regras importantes para a sociedade. E eles passam muito tempo atrás das grades sem refletir sobre isso: leis e regras.

Nos processos de construção de Mulheres de Papel e Muros, a partir do desafio coletivo de construção de um espetáculo teatral, Jorge Spínola realizou um contato entre vidas marcadas pela prisão e o difícil processo de enfrentarem a lei, agora não como réus, e sim como deliberadores do próprio contrato de trabalho.

Piaget vincula a conquista da autonomia com o momento em que o indivíduo deixa de se relacionar com as regras de forma egocêntrica, e passa a se perceber como propositor e modificador das leis, desde que estabelecidas por acordos mútuos. A regra deixa de ter um valor em si e passa a ser alvo de discussão. Nessa relação, o egocentrismo perde espaço, pois o indivíduo passa a respeitar não mais a regra pela regra, mas a regra de acordo com as necessidades consentidas em parceria. O indivíduo não está mais apenas submetido às leis, ele é responsável por elas.

No caso específico de um processo teatral, esse vínculo entre o grupo e a manutenção das regras pode ser substituído por uma relação autoritária entre um diretor e seus atores. Neste caso, uma proposta que deveria ser de construção de saberes artísticos, e portanto de conscientização sobre a prática teatral, acabaria se transformando em uma relação de subserviência, na qual os atores apenas realizam o que lhes é solicitado, sem vínculo real com a criação encenada.

Um trabalho deste tipo estaria distante da visão piagetiana aqui citada, pois não estabelece relações passíveis de conscientização, não estimula a construção de saberes e, portanto, priva os artistas envolvidos de emitir opiniões, reduzindo-os a seres que obedecem. Eles não são estimulados a construírem sua autonomia e, não sendo considerados dotados de idéias e referências sobre a prática que realizam, não podem propor nenhuma mudança, nenhum aperfeiçoamento, nenhuma crítica.

Os processos de criação citados eram conduzidos em outros moldes. Sabia-se que o resultado de um espetáculo em cena dependia do quanto o grupo se considerava autor daquela criação. Para isso, o grupo precisava expressar suas idéias e opiniões, precisava vê-las transformadas em cenas testadas e avaliadas pelos outros componentes, reensaiadas, reencenadas e, por fim, definitivamente inseridas ao espetáculo.

O espaço de troca de opiniões era materializado nas rodas de discussão. A roda era o espaço da palavra: todos eram chamados a contribuir, com opiniões e sugestões, para o aperfeiçoamento dos temas e problemas que emergiam dos debates. Uma roda podia ser solicitada por qualquer um dos integrantes do trabalho, mas normalmente ela acontecia no início e antes do encerramento de cada encontro, por proposição do diretor.

Era comum iniciarmos debatendo a cena recém-realizada. Pouco a pouco, a discussão tomava dinâmica própria, de acordo com as necessidades artísticas e estruturais do grupo. A roda se transformou em um espaço importante daqueles coletivos, pois evitava que críticas parecessem ofensivas a quem eram dirigidas: o que era dito passava a ser um patrimônio do grupo, e não um boato sem autoria. Isso instituiu uma rotina de troca de idéias e garantia repercussão para as sugestões e opiniões trazidas por qualquer um dos integrantes. Dessa forma, validava-se a participação no debate, o que se traduzia em respeito para com os diferentes pontos de vista explicitados.

A roda foi, para grande parte dos integrantes, responsável pela construção de uma atitude de atenção pelo que era dito, e instauradora de um exercício de reflexão coletiva que poucas pessoas, mesmo fora da prisão, estão acostumadas a enfrentar. Dela nasceram muitas idéias que, em ação, deram solidez aos espetáculos, e construíram um ambiente de respeito e carinho daquele grupo pelo seu próprio trabalho.

Havia a obrigação com o processo artístico, mas isso não nos impediu de estimular discussões aparentemente exteriores ao resultado teatral, mas surgidas da necessidade de elaboração de um contrato de grupo.

Um contrato essencial, pois era necessária uma consciência da especificidade territorial dos ensaios teatrais dentro do cotidiano acachapante da prisão. Era preciso compreender novas bases de convivência, que não estariam mais submetidas a um controle coercitivo externo, mas estariam reguladas pela manutenção e necessidade de sua preservação pelo próprio grupo.

Em um espaço habituado ao poder heterônomo, o teatro procurava funcionar através de princípios de autonomia e de gestão participativa. Tarefa da qual tomava-se consciência aos poucos, enfrentando a hostilidade de quem preferia simplesmente obedecer e considerava mais eficiente evitar o debate.

Ao mesmo tempo em que ocorriam os desafios instaurados para a realização de um objetivo comum, o de montar uma peça, acontecia também um encontro entre os artistas e sua própria capacidade de tomar decisões coletivas, capacidade aniquilada pelo contexto penal em que estavam inseridos.

Os artistas presos encontravam, nos momentos destinados à “Oficina de Montagem Teatral”, um espaço onde suas opiniões seriam levadas em conta, pois eram necessárias para a qualidade do resultado final do processo. Idéias eram estimuladas, alterações de horários e datas de ensaio eram avaliadas, problemas de ordem pessoal que produziam efeitos na rotina do grupo deveriam ser expostos para todos, e não mais só para o Jorge, o que evitava desconfianças de favorecimento.  

Essa maneira de compreender, dentro do processo, o valor da prática diária de um posicionamento contra tudo aquilo que desfavorecesse o trabalho, encontrava o seu oposto em todos os outros tipos de relação consagrados pela cadeia.

Dessa forma, o teatro contribuía para a formação estética e possibilitava a criação artística e promovia também uma relação de natureza reflexiva entre homens e mulheres infratoras e a noção de contrato social e a relevância de sua manutenção. Nas palavras de Josenita, da PFT:

O que eu mais gosto é da roda. Eu gosto porque lá a gente põe tudo em pratos limpos. O que não foi bom pra você, que não foi bom pra mim, a gente coloca onde que tá o erro, a gente tenta ver, enxergar. Tem a crítica, que é ótimo, pra melhorar, pra ver se o povo vai gostar de ver a mudança que a gente pode fazer. Eu gosto de estar em cena, porque eu saio daqui, eu não tô aqui. Eu estou presa, mas não sou presa, das duas às seis eu posso fazer outras coisas. Agora, vai eu fazer isso lá dentro? Eu vou ser linchada! Tem suas regras lá dentro. Aqui tem, mas não é tão imposta assim. Você é o que você é. Você pode mostrar seu lado bom. Você fala dos seus planos, da sua vida, com pessoas que você conheceu aqui há quatro meses. Eu não falaria tudo pra alguém que eu conheço há tão pouco tempo se eu não tivesse aqui. Hoje eu falo, eu troco, eu não tenho medo de ser criticada”.

 E nas palavras de Kely, egressa do sistema, uma síntese do esforço e da transformação que o processo instigou em uma pessoa que nunca sequer teve vontade de fazer teatro na vida.

No começo eu achava muito esquisito, fazer uma coisa que fosse do clima do presídio e ao mesmo tempo não. No começo eu não entendia nada! Mas muita ficha está caindo agora. Eu estou aprendendo que você tem que dar de si pros outros, tem que tirar de você pra platéia. Você tem que se manusear pra fazer a peça e isso é bom demais. Eu aprendi a superar meu nervoso e conseguir ver o outro lado das coisas. Ter paciência. Eu não sei explicar direito. Tem a realidade e a não realidade, o personagem, e ao entrar na peça você tem que ser o personagem, mas aí você sai e tem que pensar em você mesmo. Na discussão, você tem aquela raiva, mas tem que se acalmar, se controlar pro outro te entender. O que me fez superar foi minha força de vontade, de aprender a gostar, pelo menos um pouquinho. Ter a responsabilidade com o grupo, com os horários. Eu tinha um gosto e ao mesmo tempo um desgosto, e ficava por causa do dinheiro, mas aí eu faltava, ia no médico no horário do ensaio. Hoje eu não faço mais isso”.

Pequenos relatos que mostram a possibilidade de, mesmo na pior das realidades, realizar um trabalho de criação artística que promova qualidade da reflexão estética e aprimore a relação entre os homens a partir de desafios próprios do fazer teatral. 

Referências Bibligráficas

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Notas:

[1] Professor da Área de Teatro-Educação da UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina e Mestre em Artes pela ECA/USP.

[2]Esta dissertação está publicada com o título Teatro e Prisão: dilemas da liberdade artística.

[3] A Lei de Fomento ao Teatro destina à produção teatral da cidade de São Paulo verba para a manutenção da pesquisa e criação cênica, através de edital público, em dois processos de seleção realizados no decorrer de cada ano. Os critérios de avaliação compreendem a análise da importância de se viabilizarem propostas cênicas que não pretendem se submeter a leis do mercado e que se preocupem em multiplicar e difundir a arte teatral por toda a cidade.

 

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