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O ATELIÊ DE ARTE NA ESCOLA: PERCURSOS RUMO À APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO
Autora:
Clarice Carolina Ortiz de Camargo[1] - claricecarolinacamargo@gmail.com

Resumo Neste texto buscamos refletir sobre a não-utilização do Ateliê de Arte numa escola municipal do Ensino Fundamental I, bem como o conceito de Ateliê de Arte e de espaço (escola e entorno).  Realizamos ainda uma breve análise das concepções e práticas pedagógicas que marcam a não-ocupação dos espaços físicos da escola, objetivando deste modo, uma ocupação reflexiva do espaço com vistas ao pertencimento coletivo e ativo.

Palavras-chave:Ateliê de Arte, Alfabetização geográfica, Conceito de Espaço, Concepção de Arte e Práticas Pedagógicas.

Abstract: It is our intention to reflect upon the non-utilization of the Art Room in one of the Munincipal Middle Schools, as well as the concept of the Art Room it self and the space around it. We will also make a brief analysis of the conceptions and pedagogical practices which are related to the non-occupancy of the physical spaces of the school and the reflexion about the collective and active.

Keywords: Art Room, Geographic Literacy, Concept of Space, Art Conception and Pedagogical Practices.

1. EU NA ESCOLA: UM OLHAR SOBRE O MOMENTO VIVIDO

Faço parte da Equipe de Gestão de uma escola pública do município de São Bernardo do Campo e nesta escola construí um trajeto bastante diversificado: em 2005, ingressei como professora do 1° ano ciclo I; em 2006, atuei como professora do ciclo I e apoio pedagógico (destinado aos alunos com dificuldades de aprendizagem), participei da comissão formada para auxiliar na elaboração da Proposta Curricular de Matemática de São Bernardo do Campo e nos anos de 2007 e 2008, entrei para a equipe gestora (como vice-diretora). Portanto, posso afirmar que, por ter vivenciado diferentes espaços e funções[2], desenvolvi nesta escola vínculos significativos que contribuíram, de certa forma, para uma crítica textual mais consistente.

Continuo experimentando a oportunidade de ser educadora e educanda e é nesta perspectiva de relacionar-me na/com a escola e seus sujeitos que proponho (após reflexão sobre a problemática relatada) levantar hipóteses, questionar, confrontar, inferir, errar, para, quem sabe, acertar.

1.1. Ateliê de Arte e Escola: Apresentação e Possíveis Abordagens

O tema central desta análise tem como objetivo refletir sobre a não-utilização do Ateliê de Arte existente na escola em que trabalho e suas possíveis implicações. Pretendo dialogar com as impressões que observo do espaço não-utilizado e as idealizações que foram construídas acerca de sua utilização. Esta temática favorece outros desdobramentos, que sendo causa ou conseqüência, surgem no decorrer da análise:

a) conceito de Ateliê de Arte na escola: função e utilização;

b) concepção de arte e práticas pedagógicas (não) contempladas no Ateliê de Arte;

c) conceito de Espaço na escola e no entorno: (não) ocupação e (não) utilização.

O desenvolvimento do texto será pautado na tríade Ateliê de Arte na Escola – Comunidade – Escola no Ateliê de Arte.  A temática apresentada será subdividida por eixos teóricos advindos dos(as) autores(as) Rosa Iavelberg, Luciana M. Arslan, Sonia Maria V. Castellar, Helena Copetti Callai, Marcelo Garrido Pereira e Paulo Freire que contribuem para a ampliação de caminhos possíveis e favorecem uma análise reflexiva teórica, fazendo desta temática objeto e sujeito de transformação.

1.2. Escola : Breve Caracterização

Há uma pedagogia indiscutível na materialidade do espaço.
Paulo Freire [apud CALLAI, 2005, P.227]

Situada entre as Rodovias dos Imigrantes e Anchieta, localiza-se numa Reserva manancial do município de São Bernardo do Campo e tem a Represa Billings como ponto de referência. O clima é úmido, com freqüentes cerrações. A escola fica na linha divisória da Reserva Manancial e apresenta características peculiares, como por exemplo, diversidade na fauna e flora. A parte posterior é contemplada com a mata nativa, sendo comum, inclusive, a aparição de cobras no pátio externo. Os arredores que caracterizam o bairro são de moradias regulamentadas e não-regulamentadas. Muitas são moradias ditas “invadidas”, construídas sem autorização da Prefeitura e Secretaria do Meio Ambiente, apresentando aspecto provisório/improvisado e sem condições de subsistência adequadas (eletricidade clandestina, ausência de saneamento básico, encanamento, etc.).

Há um posto de saúde e três escolas: creche, de ensino fundamental I, e outra que oferece o ensino fundamental II e Ensino Médio. A escola aqui mencionada é do Fundamental I, que contempla uma média de 900 alunos da Educação Infantil (6 anos), Ciclos I e II, mais 250 alunos da Educação de Jovens e Adultos no período noturno. São aproximadamente 36 salas de aula ocupadas diariamente e quase 80 funcionários. A escola possui uma ótima infra-estrutura, contendo, além dos espaços comuns que caracterizam uma escola - salas de aula, refeitório, secretaria, sala dos professores, pátios externo e interno, almoxarifado, etc. - espaço Inforrede, Laboratório de Informática, Biblioteca Interativa, Ateliê de Artes, Sala de Jogos, Sala de Robótica e Sala de Recursos abertos aos alunos e comunidade, cuja inauguração ocorreu em 13 de fevereiro de 2004.

O espaço físico é dividido em dois pavimentos: o primeiro localizado em piso térreo e o segundo, em andar acima com acesso por escadas e rampas apropriadas a alunos com necessidades educacionais especiais. Há também um fraldário instalado em 2006, devido à necessidade de troca de fraldas de alunos que ainda as utilizam.

1.3. Ateliê de Arte na Escola: Breve Descrição de um Espaço (Não) Ocupado

Situa-se num espaço aberto inserido no pátio interno e integra três ambientes: Espaço Inforrede, Biblioteca Interativa e Laboratório de Informática. Possui quatro mesas grandes com capacidade para 15 alunos cada. Há um armário com ventilação para guardar materiais e objetos, murais de madeira para exposição dos trabalhos, pia, cadeiras com rodas e sistema de adequação de altura.

Foi implantado juntamente com a construção da escola: nasceu pronto, sendo um ambiente constituído[3] da escola, sob o ponto de vista arquitetônico. Foi idealizado, planejado, estruturado e intencionalmente inserido entre os outros espaços com o intuito de ser um recurso a mais para educadores e educandos.

Tem como função e utilidade ser um espaço produtor de conhecimento, do fazer artístico e da apreciação estética. Ocorre que este espaço é praticamente vazio, quando se trata de sua utilidade, transitado pelo ir e vir constante de alunos, famílias e funcionários, de um local a outro da escola.  As aulas de Arte (componente curricular previsto na carga horária, com duração de 50 minutos, uma vez por semana) dificilmente acontecem ali. Seu desuso marca a não-interação entre os saberes e espaços, refletindo uma imagem fragmentada, distorcida, sem valor e desprovido de vida e arte. Neste cenário – pronto - surgiu aos poucos (mas com grande intensidade) o velho conflito entre o ideal e o real produzidos, o deveria ser - solidificação de uma proposta pedagógica marcada pela inteireza, interdisciplinaridade, autonomia e criação – e o não é - atrelado à não-utilização/ocupação do Ateliê de Arte unida à idéia de não-pertencimento deste espaço pelos educandos e educadores.

Reconheço que atribuí uma ênfase muito grande à não-ocupação do espaço, assim como compreendo que as aulas de Arte não se restringem somente ao Ateliê, visto que  outros lugares dentro da escola também são passíveis de desenvolver boas práticas, porém compreendo que, antes de ocupá-lo, faz-se necessário (des)construir uma série de definições, estereótipos e concepções acerca do espaço- sua funcionalidade, organização e ação/intenção/concepção pedagógica.

Não pretendo, com isso, desenvolver um roteiro de instruções de uso significativo do espaço, à La Fontaine[4], determinando “A moral é[5]” deste espaço vazio e ditando o que deve ser feito, favorecendo um cumprimento de ordens passivas, fruto de uma suposta relação autoritária.

O desafio ou a superação deste problema é torná-lo efetivamente um espaço de construção de conhecimento, de ensino-aprendizagem. Espaço constituinte[6] que dialoga e intervém no que é aparentemente pronto com o processo vivido neste espaço.

Diante de tais afirmações (e em tempos onde é comum o não desenvolvimento de trabalhos por ausência de materiais e espaços físicos adequados), cabe a questão: qual o lugar a ser ocupado por professores polivalentes do ensino fundamental que não possuem formação específica em arte? É possível fazer uso de um Ateliê de Arte desenvolvendo práticas pedagógicas e aprendizagens significativas?

2. ESPAÇO E TEMPO NA URBE E SEUS ENTORNOS

A história não se escreve fora do espaço, e não há sociedade a-espacial. O espaço, ele mesmo, é social.
Milton Santos [apud CALLAI, 2005, P.227].

Qualquer análise reflexiva realizada nos espaços físicos de uma escola, seja ela qual for, deve ser considerada primeiramente no contexto social, histórico e político em que foi projetada e está inserida. As histórias vividas no entorno nos auxilia a conhecer nossos educandos (quem são, o que fazem, quais são seus sonhos, projetos, anseios, medos, etc.) e nos dão pistas para refletirmos sobre o processo curricular, metodológico e avaliativo que consideramos válidos. Baseada  na crença de que a educação possibilita transformação nas ações subjetivas e coletivas (e portanto, nas transformações sociais, ou na realidade em que estamos inseridos), seriam as nossas escolhas válidas para a realidade de nossos educandos?  Uma vez levantadas as demandas locais, a escola, juntamente com outros segmentos e instâncias,  podem buscar alternativas de ação, respaldadas em fundamentos partilhados pelo grupo.

Muitos elementos favorecem a leitura e a vivência dos espaços sociais. [PEREIRA, 2005] sistematiza através de categorizações e relações estabelecidas nestes espaços “mecanismos de reconstrucción de significados, situados historicamente y pertenecientes a um proyecto sobre si mismo y sobre um nosotros.”,  explicitado no quadro abaixo:

Tabela.  1. Relaciones de significado que permiten la síntesis de la experiencia espacial

Categoría

Relación Significada

Categoría

Relación Significada

Paisaje

- Transtemporalidad

- Acumulación desigual de los tiempos

- Morfología Perceptiva

- Belleza Constitutiva

Región

- Unicidad

- Particularidad

- Limite

- Integración

Territorio

- Política

- Gestión

- Poder

- Ideología

- Ordenamiento

Medio Ambiente

- Soporte

- Circunstancias

- Entorno-Contorno

- Hábitat

- Ethos

Lugar

- Arraigo

- Pertenencia

- Filiación

- Simbolismos

- Identidad

Geosistema

- Estructura

- Funcionamiento

- Complejidad

- Homeostasia

- Retroalimentación

 

Estas relações estabelecidas pelo autor favorecem um olhar específico sobre determinado espaço que também pode ser analisado sob diferentes aspectos, fundamentais para o aprofundamento reflexivo acerca do espaço vivido.

Atualmente, num mundo com espaços cada vez mais reduzidos, a sociedade urbana propõe uma visão mercantilista e utilitarista, maximizando espaços reduzidos e ocupando-os de modo desordenado e frenético pela simples ação de ocupar.

Numa perspectiva oposta  a esta, mas também presente, está a ocupação irregular, marcada pela não-existência das cidades invisíveis [CALVINO, 2000] e num destes contextos invisíveis está inserida a escola em que trabalho. A comunidade mora, em sua maioria, clandestinamente, em casas que são mutantes- ora existem, ora não existem. Existem, quando vemos que pessoas- neste caso, nossos alunos-  lá habitam e modificam a paisagem e a relação que se estabelece no local. Não existem quando enviamos uma correspondência (algo já ultrapassado para uma sociedade tecnológica) e esta retorna, pois não existe a rua mencionada, portanto não há CEP, não aparece no mapa, não há saneamento básico nem parte elétrica regular e o local é identificado por ser uma Reserva Manancial. Não existem, quando estas pessoas- no caso, nossos alunos- são privados de suas carências básicas e se vêem em constante mudança, em busca de lugares melhores para habitar.  Não existem, quando são desapropriados (agora, passando a existir como pessoas indesejadas e inapropriadas) de suas  moradias em prol do desenvolvimento urbano (construção do Rodoanel[7]). Ora, não pretendo aqui fazer apologia da habitação irregular, mas não posso deixar de mencionar este fator quando percebo que há uma relação intrínseca com o espaço/tempo trazidos pelos nossos alunos no que se refere à idéia de pertencimento, estabelecimento de vínculo, identidade pessoal e coletiva no espaço habitado.

“O conceito de lugar na Geografia tem um papel central, pois o espaço vivido nos permite entender os diferentes usos e apropriações espaciais, nas suas diferentes contradições. É só por meio do vivido, do uso e apropriações, que as relações mundiais ganham materialidade no espaço, e por isso o lugar pode ser entendido como síntese do local e do global e o aluno passa a compreender o espaço concebido. É na vida de relações cotidianas que ocorre a articulação entre o próximo e o distante (o local e o global) e esse entrelaçamento dará o sentido do lugar e ao espaço de vivência” [CASTELLAR, 2007]

Entretanto, o que me parece, e isto não é fator determinante, mas determinado pelo meio, é que esta relação de “passagem” afeta o modo como os espaços na escola são utilizados ou não-utilizados, assim como a dificuldade em inserir definitivamente a escola na comunidade e a comunidade na escola. Isto se reflete nas idas e vindas dos alunos, no ir embora e retornar meses depois, na evasão, na dificuldade da escola estabelecer pontos de contatos (ausência de telefone, endereço...).

Neste contexto, realizar uma leitura e escrita do espaço vivido e concebido é uma das alternativas possíveis para transformá-lo e ampliar nossa compreensão de ocupação significativa, como menciona [CALLAI, 2000, P.243],

Reconhecer, enfim, a sua identidade e o seu pertencimento é fundamental para qualquer um entender-se como sujeito que pode ter, em suas mãos, a definição dos caminhos da sua vida, percebendo os limites que lhe são postos pelo mundo e as possibilidades de produzir as condições para sua vida”.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS- DA REALIDADE MULTICOLORIDA AO RETRATO DO ENTARDECER E VICE–VERSA.

Após quatro meses de dias letivos, evidenciamos alguns problemas (tais como os mencionados acima) e buscávamos ações que nos dessem pistas de soluções possíveis. Sabíamos, por exemplo, que conhecer e estabelecer vínculos com as vidas de nossos educandos era ação prioritária, objetivando a idéia de pertencimento tão enfatizada nesta análise.

Na primeira reunião pedagógica, houve uma votação sobre a troca dos dois últimos dias letivos do ano por dois sábados com eventos não definidos.  O sábado se aproximava e debatíamos o que fazer: compartilhar as práticas pedagógicas através de exposições ou desenvolver atividades para/com a comunidade?  Chegamos à conclusão de que nem todos conheciam a realidade de nossos educandos e que este era um rico momento de aproximação e criação de vínculos, sendo que nem todos os eventos propiciam isto. Lembramos também que, no ano anterior (2007), a Prefeitura Municipal havia incorporado na compra de materiais individuais uma tela para pintura e que, naquele ano, apenas 4 salas (das 34 existentes) as utilizaram. Estavam todas guardadas, encaixotadas no almoxarifado. Era evidente que havia uma crença coletiva (que precisava ser desconstruída) que somente aqueles que entendiam de pintura poderiam usá-las. Sabendo que a concepção do “belo e perfeito” da arte estava presente no medo de pintar as telas; da necessidade formativa em que nos deveríamos empenhar e no direito dos alunos em pintar as telas (visto que eram suas telas, recebidas com o repasse dos impostos que pagaram/pagamos), surgiu a idéia de unirmos todos esses elementos em uma ação que seria, a nosso ver, o ponto de partida para o trabalho formativo pretendido[8]: o evento do sábado seria a pintura em tela de educandos e seus familiares, sendo escolhido um membro da família para pintar a tela no dia do evento e representar na tela (através de pintura, desenho, colagem, fotografia, etc.) o que o aluno e o familiar escolhido gostam de fazer juntos. Ficou decidido que deixaríamos em cada sala diferentes materiais (papéis e tintas diversas, colas, massa de modelar, revistas, jornais, giz pastel, giz de cera, caneta hidrocor, purpurina, glitter, miçangas, etc.), assim como cada aluno poderia trazer de casa outros materiais significativos para o registro estético. A idéia era vivenciarmos a experiência de um ateliê, sem fazer uso dele, necessariamente. As salas de aula, velhas conhecidas, cumpririam esta função. As professoras ficariam responsáveis pela divulgação, organização dos materiais e recepção dos seus alunos e familiares.

Pensando no processo identitário presente nesta atividade, solicitamos também aos professores que as crianças antecipassem uma etapa da atividade, “pintando o fundo”, isto é, iniciasse a atividade representando o ambiente/local que foi escolhido com o familiar para registrar. Cada aluno representaria com a cor e do modo que quisesse (uma ou mais cores), assim, ao entrar nas salas de aula no dia do evento, já identificariam[9] o quadro e prosseguiriam com a atividade. Com a proximidade da data e com a tarefa a ser cumprida, o ateliê passou a ser um lugar disputadíssimo e cada professor fazia questão de que o outro professor respeitasse seu horário, não o invadindo.  Vimos de uma hora para outra, quase 1000 telas espalhadas pela escola (em cima dos armários, mesas, ateliê, secretaria, sala dos professores...), pincéis novos de “molho na água”, mãos “sujas” de tinta... Professores conversando sobre a experiência, tirando fotos, pedindo material... Estes foram aspectos que considero positivos.

Porém, como ação “nova”, vieram à tona também elementos que foram de caráter emergencial e que não poderiam “esperar” a formação pretendida, como pontuar  com os professores a liberdade na escolha das cores feitas pelas crianças, visto que houve uma tendência do professor em alegar que algumas cores são “bonitas” para um quadro e outras são “feias” (onde já se viu querer pintar de preto?), ou então de idealizar o cenário (“coisas boas” só acontecem em meio a flores, céu azul sem nuvens, sol radiante...). Ora, não é possível que a criança queira retratar que, dentre tudo, o que mais gosta de fazer é ficar em sua casa, por exemplo? A felicidade só cabe nos cenários novelescos?

Entre uma atividade e outra, três professoras estavam inseguras e resolveram desenvolver a pintura juntas. Foram ao ateliê de arte, mostraram uma tela cuja paisagem era um porto, com barcos e o entardecer predominante. Pediram então que as crianças pintassem este fundo: o entardecer, prestando bastante atenção nas tonalidades: primeiro pintar a cor amarela, na diagonal; depois, mais abaixo, pintar de vermelho, também na diagonal, depois misturar as duas cores, utilizando o amarelo com pinceladas bem fracas.

Noventa telas iguais e a pergunta: todos gostam de fazer coisas com seus familiares no entardecer? Conversamos com as professoras que alegaram escolher o fundo para não ficar “feio”, cheio de “borrão” causado pela mistura das cores e já haviam combinado que seria oferecido aos pais somente papéis pretos que “combinaria” com o fundo por elas escolhido.

Uma intervenção sobre a concepção que esta “escolha” revelava causou mal-estar, assim como a discussão sobre a liberdade de escolher e o que está por trás de nossas escolhas, e que não pretendíamos que noventa crianças viessem no sábado para realizar uma mesma composição. Nossa intenção não era retratar o “belo padronizado”, mas o que era significativo para os educandos. As professoras sentiram-se fragilizadas, pois fizeram o melhor que podiam,  não querendo que seus alunos “errassem” e nem elas próprias terem “errado” por isso. Era evidente também que muitos professores, por não se sentirem aptos ou à vontade com uma tela, transferiram isso para as crianças. Deste modo , confirma-se que a questão do (não)  uso do ateliê é conseqüência também da concepção de arte das professoras , que relacionam a arte ao “limpo”, “belo” e “arrumado”.

Muitas leituras podemos fazer deste fato, mas minha intenção neste relato é ilustrar que o desuso do ateliê se deve  à influência de muitos fatores. Este é apenas um deles. Mas, somente para finalizar um dos desfechos da história, o evento contou com a presença de muitos familiares e foi muito interessante acompanhar a escolha dos materiais, o “como fazer”, as negociações... Propiciar aos professores que ficassem no lugar de espectadores foi fundamental para que conhecessem mais e melhor seus alunos. A maioria dos alunos presentes veio acompanhada de mais de um familiar e muitas vezes víamos seis, sete acompanhantes, todos em volta da tela, discutindo e pintando juntos. Algumas crianças, assim como os professores, recorreram à velha casinha com chaminé, outras compartilharam conosco momentos de alegria e de saudade. Muitos familiares ficaram surpresos ao saber que coisas “sem importância” do cotidiano marcam a vida destas crianças. A arte, neste caso, serviu para dar voz e nos surpreender. A escola não virou um “mar de sujeira de tinta” , como temiam algumas pessoas e um “silêncio” foi tomado, visto que tínhamos muitas pessoas na escola. Silêncio ativo, concentrado e criador que surpreendeu a todos, pois não precisou ser pedido nem gritado. E quanto às telas iguais... viraram duas telas, com duas propostas. Em uma, a continuação da reprodução e na outra tela, o registro estético das crianças. O entardecer virou multicolor...

Com base neste relato, podemos afirmar que a ocupação de um espaço, seja ele qual for, representa uma ação política, social, pedagógica e cultural, sendo assim, penso que é função da escola realizar leituras do contexto vivido, podendo aprender sobre o espaço, no espaço e com o espaço,

ensinar a ler o mundo é um processo que se inicia quando a criança reconhece os lugares, conseguindo identificar as paisagens. Portanto, observar, registrar e analisar são processos que estão relacionados com o significado de ler e de entender, desde os lugares de vivência até aqueles que são concebidos por quem lê, dando significados às paisagens observadas, pois na leitura se atribui sentido ao que está escrito” [CASTELLAR, 2000, P.29-46].

Considero de relevante importância nesta tentativa de dar conta de aspectos (vários) que as culturas abarcam, o alargamento da razão e o aprofundar da sensibilidade e, para isso acontecer, identifico a afetividade -possibilidade de afetar e pelo outro ser afetado- como base sólida para as relações interculturais a serem estabelecidas, pois é através dela que conseguimos desenvolver uma relação/experiência sensível com o mundo e, portanto, humanizadora. 

A aprendizagem para ser significativa deve ser entendida como conhecimento, prática e sensibilidade, onde a arte, a ciência e a técnica podem e devem dialogar e nesse caso, o educador é a figura que tem como função promover esta relação entre educando e aprendizagem significativa através  de situações didáticas. [ZABALA, 1998 apud IAVELBERG, 2003, P.36].

“A arte, por si só, não opera transformações na educação, mas a experiência com os processos de criação pode reorientar o sentido de ensinar, o papel do professor, a imagem da escola, bem como o valor das práticas culturais na comunidade e na vida pessoal e profissional dos professores e nas relações entre as escolas e as instituições que promovem ações sociais” [IAVELBERG, 2003, P.23].

Assim, suponho que muitos elementos constituem a prática docente e o processo ensino-aprendizagem, a começar pela relação dialética que está contida nas ações que estabelecemos com o mundo, no modo como ensinamos e aprendemos.

Um Ateliê de Arte vazio na referida escola de Ensino Fundamental, com professores polivalentes, reflete muitas coisas que vão além do que pode ser visto [IAVELBERG, 2003, 51-74], tais como: uma concepção pautada na supervalorização da alfabetização em Língua Portuguesa; ausência de relação entre a leitura e escrita do código alfabético com a leitura e escrita do mundo (Alfabetização geográfica); atribuição de superioridade aos saberes teórico-formais em relação aos saberes práticos e cotidianos; falta de espaços/ tempos de diálogo e debate entre concepções distintas de conhecimento e entre os processos de sua validação social; visão de arte como área de conhecimento de pouco valor, realizada, geralmente, quando sobra tempo; repetição de modelos, projetos e procedimentos prontos, geralmente estereotipados, sem relação entre si; introjeção de modelos autoritários de autocontrole disciplinar que, quando rompido nas aulas de Arte, causam sentimento de desconforto e de perda de autoridade; tentativa de executar os guias curriculares prontos, sem incorporá-los à sua própria prática pedagógica; isolamento do professor e separação entre os âmbitos organizacional, pedagógico e cultural.

Eis as questões a serem superadas, para que se efetive uma ocupação consciente do Ateliê de Arte. Para que isso aconteça, é necessário voltar ao ponto de partida, criando situações que favoreçam encontros verdadeiros. Há de ser colocada em evidência a identidade de cada um, atrelada à formação de uma identidade coletiva. Há de se iniciar a apropriação deste espaço com o seu uso: criar trabalhos- planejados e refletidos.

Estudar o lugar, como contrapartida ao movimento de homogeneização:

[...] “nossa ação pode ser efetiva e eficaz, dependendo do jogo de forças em que se insere, e que os homens podem não ser apenas cobaias ou partes de uma estrutura na qual não têm o direito de pensar e de tomar atitudes que lhe pareçam adequadas. Ao se reconhecer o lugar como parte de nossa vida, como um dado que nos permite criar uma identidade e termos a idéia de pertencimento, será possível agir para o grupo, e não apenas para servir a interesses externos” [CALLAI, 2005, P.242].

Olhar para o ateliê de arte sem aprofundar o olhar para o entorno no qual este ateliê está inserido foi tarefa impossível e, construir esta ponte- passível de ser atravessada- entre escola e comunidade fez-se urgente e necessário.

Algumas ações voltadas para a formação dos professores foram implementadas neste ano, como: estudo da Proposta Curricular de São Bernardo do Campo e PCN; divulgação das ações implementadas pela Secretaria de Educação; projeto pintura do muro (feita por alunos e comunidade): parceria com o Ateliê de Arte/ Secretaria da Educação; parceria com a Secretaria do Meio Ambiente: palestras, materiais de apoio, cursos para os professores (Furnas) e materiais – discussão temática: meio ambiente, comunidade, reflexos do Rodoanel, etc.; acompanhamento do Plano de Ação dos anos/ciclos; curso em parceria em Arte (com profissional especialista), que tem como objetivo favorecer a reflexão e o acompanhamento da própria prática; parceria entre a Professora de Apoio do Laboratório de Informática e Professora de Apoio da Biblioteca Escolar Interativa nos planejamentos e recursos oferecidos.

Outras ações objetivaram especificamente o setor de arte: organização, compra e utilização de materiais disponibilizados no Ateliê; estudo do meio no Ateliê de Arte da Secretaria de Educação, para o grupo do Infantil, com foco na apreciação estética das obras de Volpi; compra de materiais artísticos diversos (individuais, coletivos e para portadores de necessidades educacionais especiais); parceria com arte-educador que desenvolve trabalhos com a comunidade. Este profissional atuou diretamente no Ateliê de Arte, favorecendo práticas artísticas interdisciplinares para os alunos do 2º ano ciclo II; Dia da família na escola, que teve como atividade o registro estético de pais/responsáveis e alunos sobre “coisas que gostamos de fazer juntos”. O registro foi desenvolvido em telas de pintura com o uso livre de diferentes suportes[10].

Foram também realizadas ações conjuntas com a comunidade: estudo do meio nas mediações da comunidade (Associação Comunitária de Reciclagem, organizada por antigos freqüentadores do “lixão do Alvarenga”); reuniões com lideranças comunitárias (Associação dos moradores); apresentação da Banda Sinfônica municipal.

Enfim, eis pequenas ações que já começam a surtir efeitos. Errar, vivenciar o conflito, garantir seu uso semanal, preencher os espaços invisíveis, comunicar coisas (medos, receios, sucessos, fracassos, descontentamentos, alegrias, práticas)- esta é a nossa função, enquanto educadores: fazer coisas.

O ateliê de arte pode ser um destes lugares possíveis de se fazerem coisas... É um espaço que possibilita retratar a paisagem observada (modificações geográficas, benefícios e malefícios trazidos com a urbanização), ocupação de moradias (quem entra, quem sai...), espaço que dialoga com o vivido na comunidade e o vivido na escola (deste modo, amplia o olhar do educador, que passa a conhecer melhor o cotidiano das famílias.), espaço que sugere identidade com os alunos que o utilizam (cultura jovem), espaço compartilhado e de gestão coletiva (entre professores e alunos) e, finalmente, espaço que se transforma ao longo do tempo  e a partir do uso. Eis as justificativas que validam seu uso... O convite foi lançado! Há de ser coisa feita, para que possa ser coisa discutida e refletida. Finalizo com [IAVELBERG, 2003, P.12]:

Ensina-se a gostar de aprender arte com a própria arte, em uma orientação que visa à melhoria das condições de vida humana, em uma perspectiva de promoção de direitos na esfera das culturas (criação e preservação), sem barreiras de classe social, sexo, raça, religião e origem geográfica”.

Referências Bibliográficas

CALLAI, H.C. Estudar o lugar para compreender o mundo. In: CASTROGIOVANNI, A.C. (Org.). Ensino de Geografia: práticas e textualizações no cotidiano. Porto Alegre: Mediação, 2000.

________. Aprendendo a ler o mundo: a geografia nos anos iniciais do ensino fundamental. Caderno Cedes, Campinas, 2005, n.66, p. 227-247, 1ª edição, maio/agosto 2005. Educação geográfica e as teorias de aprendizagem/ Centro de Estudos Educação Sociedade.

CALVINO, I. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das letras, 2000. p.83 – 84.

CASTELLAR, S.M.V. Ementa do Módulo “Ação Interdisciplinar no Espaço Público”, do Curso de Especialização em Linguagens da Arte, realizado no  Centro Universitário Maria Antonia, da Universidade de São Paulo, no 2° semestre de 2007.

________. Alfabetização em Geografia.  Espaços na escola. Unijuí, ano 10, n. 37, p.29-46, jul./set. 2000.

GLOBO ONLINE. Recomeçam obras do trecho sul do rodoanel.  O Globo, São Paulo, 28 mai. 2007. Acesso em 29 de novembro de 2007. Disponível em <http://oglobo.globo.com/sp/transito/mat/2007/05/28/295922144.asp>.

IAVELBERG, R. Para gostar de aprender arte- sala de aula e formação de  professores. Porto Alegre: Artmed Editora, 2003.

________. O desenho cultivado da criança: práticas e formação de educadores. Porto Alegre, RS: Zouk, 2006.

IAVELBERG, R. e ARSLAN, L. M. Ensino de Arte. São Paulo: Thomson Learning, 2006.

MACEDO, L. e DEHEINZELIN, M. Curso “Arte e conhecimento na escola”, realizado no Centro Universitário Maria Antonia, da Universidade de São Paulo, no período de abr./jul. 2008

OLIVEIRA, C.M. La Fontaine (1621-1695). Acesso em 12 de julho de 2008. Disponível em <http://www.graudez.com.br/litinf/autores/lafontaine/lafontaine.htm>.

PEREIRA, M. G. El espacio por aprender, el mismo que enseñar: lãs urgências de la educación geográfica. In: Caderno Cedes Campinas, 2005, n.66, p. 137-163, 1ª edição, maio/agosto 2005. Educação geográfica e as teorias de aprendizagem/ Centro de Estudos Educação Sociedade.

WIKIPÉDIA. Fábulas. Acesso em 12 de julho de 2008. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Fábulas>.

ZABALA, A. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: Artmed, 1998.

Notas:

[1] É pedagoga com habilitação em Gestão Escolar do Ensino Fundamental e Médio. Trabalhou em escolas pública, privada e conveniada como professora de Educação Infantil e Fundamental, professora de Apoio Pedagógico e Assistente de Coordenação. Atua como Vice-diretora numa Escola de Ensino Fundamental da Rede Municipal de São Bernardo do Campo.

[2]A paixão pelo conhecimento sempre esteve presente em minha prática pedagógica, assim como, inevitavelmente, os conflitos, dúvidas, anseios por superar o que não sei. E neste cenário, de três anos inconclusos, nem eu nem a escola somos as mesmas. Mudamos conforme as vidas, práticas e saberes com que nos deparamos, embora estejamos ainda no mesmo lugar...

[3] Constituído enquanto “espaço pronto”, “produto final” da construção, assim como a escola em si [MACEDO, 2008].

[4] Francês de origem burguesa, nascido na região de Champagne, foi autor de contos, poemas, máximas, mas com as fábulas ganhou notoriedade mundial.

[5]Uma fábula é um conto em que as personagens falam sendo animais e que há sempre uma frase de cunho didático  para  não cometermos erros. Geralmente estas fábulas terminam com “A moral é”.

[6] Constituinte assim compreendida: Espaço que se constitui através da relação que estabelece com as práticas e saberes vividos. Narra o processo do vir a ser (produto final) mencionado [MACEDO, 2008].

[7] O trecho terá 61 quilômetros e ligará as rodovias Régis Bittencourt, Imigrantes e Anchieta. Além das três ligações, terá início a construção das passagens das estradas de Itapecerica e de Parelheiros, das pontes da Guarapiranga e da Billings e da conexão com a Avenida João 23, em Mauá. O setor sul do Rodoanel interligará sete rodovias (Anchieta, Imigrantes, Régis, Raposo Tavares, Castelo Branco, Anhangüera e Bandeirantes).

[8] Conhecer nossos educandos e sua realidade (com esta atividade: “o que gostam de fazer e quem é este membro da família mais próximo”), a aproximação dos educandos com os materiais e a possibilidade de ocupação do ateliê e fazer da arte um elo de comunicação e diálogo (entre professores e alunos) e vínculos  (familiares e educandos, comunidade e escola).

[9] Considerando que todo registro possui sua própria marca subjetiva e expõe a identidade da pessoa que o fez, enfatizando a heterogeneidade.

[10] Outro aspecto significativo desta atividade foi a inversão de papéis (professores como espectadores), visto que geralmente os eventos escolares colocam os pais/responsáveis neste papel.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano VI - Número 10 - Novembro de 2008 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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