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APONTAMENTOS SOBRE O CONCEITO DE APROPRIAÇÃO E SEUS DESDOBRAMENTOS NA ARTE CONTEMPORÂNEA
Autora: Karine Gomes Perez [1]- karinegperez@hotmail.com

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar a questão da apropriação na arte contemporânea. Para tanto, procura-se elucidar o conceito de “apropriação”, destacando-se seus desdobramentos, tais como o citacionismo. Também são investigadas as origens das manifestações artísticas produzidas sob esse viés, mediante um breve percurso histórico no qual são resgatados artistas e movimentos artísticos que possam ser pertinentes para uma reflexão sobre o tema. Por fim, investigam-se as razões possíveis para a ocorrência do procedimento citado na produção artística atual. Nesse sentido, o estudo, de tipo bibliográfico, tem por enfoque a abordagem qualitativa e adota os métodos histórico e comparativo.

Palavras-chave: Arte contemporânea, Apropriação, Citacionismo.

Abstract: This article has for objective to analyze the appropriation question in the contemporary art. Therefore, the origins of the contemporaries manifestations that use the artistic appropriation concept are searched, through the Art History, ransoming artists and movements that can originate the contemporaries appropriations. Also, the concepts and the probable reasons for the appropriations in the Contemporary Art are studied through bibliographical research.

Key-Words: Contemporary Art, Appropriation, Citationism.

Resumen: El artículo tiene como objetivo analizar la cuestión de la apropiación en el Arte Contemporáneo. Por eso, el concepto “apropiación” es aclarado, siendo señalados sus desdoblamientos, tales como el citacionismo.  También son pesquisados los posibles orígenes de las manifestaciones artísticas producidas a partir de la noción de apropiación, a través de un recorrido histórico, rescatándose artistas y movimientos importantes para una reflexión acerca de las apropiaciones tema. Por fin, son estudiadas las probables razones por las cuales ocurren las apropiaciones en el Arte contemporáneo actual. En esta dirección, el estudio, de tipo bibliográfico, tiene por enfoque el abordaje cualitativo y utiliza los métodos histórico y comparativo.

Palabras clave: Arte contemporáneo, Apropiación, Citacionismo.

1. Considerações Iniciais

Em face da saturação imagética provocada pela ampla veiculação de informações através de meios digitais e midiáticos, o acesso a imagens de múltiplas fontes tem-se tornado banal. Numa cultura dominada pelo excesso, é compreensível que o pensamento contemporâneo seja redimensionado, operando por meio do empilhamento de variadas temporalidades. Como não poderia deixar de ser, a arte produzida em tal contexto é afetada por esse tipo de pensamento. Assim, estratégias como “apropriações” passam a ser freqüentes na produção artística atual. Por isso, o presente artigo constitui-se em uma tentativa de compreensão do conceito, das origens e do sentido desse procedimento. O fato de ser comumente observado nas manifestações artísticas contemporâneas justifica a necessidade de se cercar tal fenômeno, sob pena de confundir as práticas que assumem esse viés com meras cópias de outras obras ou mesmo com objetos reais do cotidiano.

Para tanto, surgem as seguintes indagações: O que é apropriação na arte contemporânea? Existem diferenças entre apropriação, citacionismo e releitura? Como se originou o conceito de apropriação nas Artes Visuais? Quais as razões possíveis para que artistas contemporâneos se utilizem do conceito de apropriação em suas produções? O que difere obras produzidas a partir do conceito de apropriação de objetos reais do cotidiano ou de obras de outros artistas?

Em busca de respostas às questões citadas, procura-se, em primeiro lugar, conceituar o termo apropriação para, em seguida, tentar distingui-lo das noções de citação e releitura. Na seqüência, traça-se um breve percurso histórico da arte sob o viés da apropriação, com o intuito de detectar a(s) origem(ns) do termo. Por fim, abordam-se os prováveis motivos que levam artistas a se utilizarem da apropriação em suas produções, mencionando-se algumas das razões que as legitimam e permitem distingui-las dos objetos reais do cotidiano.

Dessa maneira, o estudo que ora se apresenta pode ser definido sob os moldes da pesquisa bibliográfica, caracterizando-se pela abordagem qualitativa. Nele, utilizam-se o método histórico, que consiste na narrativa cronológica e encadeada dos fatos, e o método comparativo, que permite o estabelecimento de relações entre os autores pesquisados. A técnica empregada é a da documentação indireta, envolvendo o estudo da bibliografia encontrada sobre o assunto. Busca-se, portanto, estabelecer um olhar sobre a categoria de apropriação na arte contemporânea, com base nas considerações de autores como Arthur Danto, Tadeu Chiarelli, Ana Mae Barbosa, Ana Amália Barbosa e Valéria Cristofaro.

2. “Apropriação” e seus Desdobramentos na Arte Contemporânea

2.1 O conceito “apropriação”

“Apropriação”, em termos gerais, refere-se, basicamente, ao ato de alguém se apossar de alguma coisa que não é sua como se assim o fosse. Na arte contemporânea, essa expressão pode indicar que o artista incorporou à sua obra materiais mistos e heterogêneos que, no passado, não faziam parte do campo da arte, tais como imagens, objetos do cotidiano, conceitos e textos. Pode indicar também que o artista se apropriou de partes ou da totalidade de obras de autores que ocupam lugar consagrado na história da arte.

Fig. 01. “Futebol”, de Nelson Leirner, Fonte: http//Mocoloco.com

A partir das leituras realizadas, é possível identificar diversas formas de apropriação. Na tentativa de esquematizá-las, considerou-se pertinente dividi-las em dois tipos, relacionados entre si. O primeiro compreende o procedimento baseado na apropriação de materiais diversos para a criação de obras artísticas, tais como objetos e textos. Exemplifica-o a obra “Futebol”, de Nelson Leirner (Fig.01). O segundo tipo de apropriação corresponde ao procedimento que Chiarelli [2001] denomina de citacionismo e que se refere à produção artística que utiliza imagens preexistentes, pertencentes a obras de arte, histórias em quadrinhos, cinema, televisão, etc. Nesse sentido, pode-se comparar a apropriação a uma espécie de colagem de fragmentos, advindos de origens diversas.

2.2 Diálogos entre releitura, apropriação e citacionismo

Observados, de maneira geral, os procedimentos compreendidos sob o termo apropriação, cabe agora tentar distinguir essa categoria de duas outras noções com as quais apresenta semelhança: a releitura e o citacionismo. De acordo com Barbosa [2005], apropriar-se concerne ao ato de retirar imagens ou objetos de seus locais de origem, utilizando-os para construir uma obra (ou outra obra). Isso ocorre na composição de Sérgio Lopes (Fig.03.), em que se faz evidente a alusão a Paolo Uccello (fig.02).

Releitura, por sua vez, significa, conforme Barbosa [2005], ler novamente, dar novo significado, reinterpretar, pensar mais uma vez.  Posição afim assume Pillar [2003, p. 11], ao afirmar que reler é “um fazer a partir de uma obra, é recriar o objeto, reconstruindo-o num outro contexto com novo sentido; é uma criação com base num referencial”.

Já a citação indica, para Barbosa [2005], o uso, em determinada produção, de elementos que se relacionam a artistas, situações e movimentos consagrados pela história da arte, admitindo-se que seja empregado, até mesmo, o modo de trabalhar ou a cor mais comum utilizada pelo artista citado. Assim, de acordo com a autora, na citação, ao contrário da apropriação, não há referência direta, mas múltiplas referências. Knaak [2005] complementa essa afirmação, asseverando que o artista, ao reproduzir, repetir imagens existentes, pode estar fazendo uso da ironia.

Fig. 02. Paolo Uccelo, “Ritratto di donna”, 1450. Fonte: http://www.currenticalamo.com

Fig. 03. Sergio Lopes, 2006. Fonte: http://www.artewebbrasil.com.br/sergio_lopes/sergio.htm

Com vistas às considerações das autoras referidas, é possível observar que o conceito de “apropriação” é muito amplo, podendo abarcar a utilização de materiais, objetos e imagens de diversas naturezas, bem como de preceitos, idéias e estilos de outros artistas. Já o citacionismo seria uma subcategoria da apropriação, haja vista indicar a assimilação de outras obras de arte ou imagens da cultura visual, mas também parece estabelecer relações significativas com a releitura. Nesse sentido, ao analisar os conceitos das autoras mencionadas, percebe-se que os termos apropriação, citação e releitura acabam, em muitos casos, interligando-se, sendo quase impossível classificar uma obra apenas a partir de um desses conceitos, pois, em algumas circunstâncias, eles se confundem, designando o mesmo procedimento.

2.3 Origens da apropriação ou citação

Dos dois tipos de apropriação vistos anteriormente, pode-se dizer, de acordo com Banaggia [2004], que o primeiro deles, baseado na utilização de materiais diversos para a feitura do objeto artístico, constitui uma herança direta do Cubismo de Picasso [Fig. 04] e de Braque. Apesar de não comparecer com a referida denominação, nem apresentar a intenção com a qual é utilizado atualmente, o procedimento pode ser reconhecido pelo fato de Picasso e Braque, nessa fase, terem feito da colagem um de seus elementos de trabalho. No cubismo sintético, elementos heterogêneos, tais como recortes de jornais, pedaços de madeira, cartas de baralho, caracteres tipográficos, entre outros materiais, foram adicionados à superfície das telas, passando a ser potencialmente artísticos.

Fig. 04. “Natureza-morta em fundo de palhinha”, de Pablo Picasso,

1911-12. Fonte: http://www.homines.com

Afora o Cubismo, existiram outros artistas e movimentos posteriores passíveis de serem relacionados à apropriação. Um desses artistas foi o dadaísta Marcel Duchamp [Fig. 05], que deslocou objetos utilitários dos seus contextos originais, elevando-os, numa crítica ao sistema artístico, à condição de obra de arte por ganharem uma assinatura e um espaço expositivo. Esse tipo de procedimento também foi utilizado por diversos artistas surrealistas [Fig.06], que fizeram colagens e “assemblages”, justapondo objetos desconexos que pareciam impossíveis de serem associados e amparando-os na idéia de acaso e de escolha aleatória.

Fig. 05. “Fontain”, de Marcel DuChamp, 1917. Fonte: http://www.vivercidades.org.br

Fig. 06. “Busto de mulher retrospectivo”, Salvador Dali, 1933-reconstrução 1970. Fonte: http://kity619.blogspot.com/2007/02/blog-post.html

Outro movimento análogo à apropriação é a Arte Pop [Fig. 07]. Por meio da apropriação de materiais impressos do mundo comercial, de histórias em quadrinhos, da publicidade, das imagens televisivas e do cinema, a Arte Pop concede importância a objetos comuns, na tentativa de comunicação com o público por meio de signos e símbolos extraídos do imaginário que norteia a cultura de massa e a vida cotidiana.

Fig. 07. “Marilyn”, de Andy Warhol, 1967. Fonte: www2.kenyon.edu/.../Projects/pop.up/marilyn2.JPG

Conforme a instituição Itaú Cultural [2005], mesmo que o termo apropriação remeta às referidas experiências, realizadas nas primeiras décadas do século XX, sua incorporação ao vocabulário crítico se relaciona a artistas norte-americanos dos anos 80. Exemplo notório é o de Sherrie Levine [Fig. 08], que, ao fotografar fotografias de outros autores, apresentando-as como se fossem suas, utiliza a fotografia como ferramenta de apropriação [CRIMP, 2005]. Também é fundamental para a divulgação do termo a produção artística do grupo Neogeo, do qual se destaca Jeff Koons [Fig. 09].

Fig. 08. Sherrie Levine, “After Walker Evans”, 1981. Fonte: http://www.enxuto.net/images/text/levine.jpg

Fig. 09. Jeff Koons, “Three Ball Total Equilibrium Tank”, 1985. Fonte: http://www.tate:.org.uk/collection/T/T06/T06991_9.jpg

Por outro lado, é possível remeter as origens da apropriação em arte à fotografia, pois, a partir dela, um instrumento mecânico se apoderou de um recorte da realidade. Se os primórdios da apropriação forem atrelados a essa perspectiva, é admissível estabelecer uma retrospectiva temporal que conduz até os povos “primitivos”, para os quais o ato de representar uma imagem pode implicar a apreensão de uma forma real, isto é, do próprio referente dessa imagem.

Refletindo-se sobre as origens do segundo tipo de apropriação, aquele em que o autor cita imagens preexistentes, é plausível concordar com Barbosa [1987] quando considera que, ao longo da história da arte, o artista incluía em seus trabalhos imagens produzidas por outros artistas, sem, contudo, tornar claro esses empréstimos. Um exemplo disso são as figuras 10 e 11, que, mesmo sendo produzidas em épocas diferentes, possuem evidente proximidade formal.

Fig. 10. “O juízo de Paris”, de Marcantonio. Raimondi. C.1520. Fonte: http://www.studiolo.org

Fig. 11. “Lê Déjeuner sur l’Herbe”, de Édouar Manet , 1863. Fonte: http://www. esec-josefa-obidos.rcts.pt

A grande diferença entre as “apropriações” de imagens realizadas em outros períodos da história da arte e as apropriações contemporâneas está no fato de que, no primeiro caso, possivelmente as referências eram ocultadas e, no segundo, são apresentadas de maneira explícita para o público [BARBOSA, 1987]. Um exemplo disso pode ser observado nas figuras 12 e 13, uma vez que, na primeira, reproduz-se “Piedad Post Colonial”, de Guillermo Gómez Peña, a qual faz clara alusão à obra renascentista “Pietá”, de Michelangelo, reproduzida na segunda.

Fig.12. “Piedad post colonial”, de Guillermo Gómez Peña, 2006. Fonte: www.Pochanostra.com

Fig. 13. “Pietá”, de Michelangelo, 1498-99. Fonte: http://ee.eng.usf.edu/snider/light/artist

2.4 O sentido de apropriar-se/ citar na arte contemporânea

A abordagem das razões para o uso da categoria de apropriação por artistas contemporâneos torna necessário ter em mente as considerações de Archer [2001]. Para o autor, os artistas e teóricos da arte deixam, contemporaneamente, de acreditar numa idéia de progressão linear da história da arte, preconizada pela postura estética que fundamenta a arte moderna. Com isso, valores como a originalidade e a novidade, muito valorizados ao longo da história da arte, passam a não ser critérios importantes para a arte contemporânea. Aos artistas atuais, resta a impressão de que tudo já foi feito em termos de arte, em razão do excesso de informações e da velocidade com que essas circulam.

Outra concepção tradicional de arte que desmorona na contemporaneidade diz respeito à noção de artista como gênio. Talvez, por esse motivo, a idéia de autoria seja, em diversos casos, questionada. Assim, grande parte dos artistas combina e recombina fragmentos de vários tipos em suas obras, fazendo com que a apropriação funcione como uma referência irônica, como um modo de repensar questões próprias da cultura visual ou, mesmo, como reflexo da maneira pela qual o pensamento contemporâneo opera: uma espécie de junção anacrônica de partes díspares. 

Danto [2006] afirma que, na arte contemporânea, é permitido o uso de referências artísticas do passado conforme o desejo de quem produz, uma vez que, segundo o autor, o paradigma atual é o da colagem. Não obstante, Danto [2006] adverte que, apesar de tudo parecer possível, não se pode querer recuperar o espírito em que a obra apropriada foi realizada, haja vista não ser possível viver inteiramente o sistema de significados do qual ela extraiu sua forma de vida original. Conhecido posteriormente à sua vigência, esse sistema de significados não têm, no momento atual, o mesmo sentido que lhe atribuíram os que o vivenciaram em seu tempo. Danto considera plausível que o artista estabeleça uma relação com as imagens do passado de acordo com o tempo e as formas de vida atuais. Portanto, ao se utilizar da apropriação, o criador deve significar as imagens do passado a partir do seu contexto, uma vez que as obras devem ser motivadas por questões próprias do tempo vivenciado por ele.

Nesse sentido, observa-se que a arte contemporânea nada tem contra a produção artística do passado, aceitando que essa seja utilizada como elemento motivador. Em face disso, torna-se apropriada a afirmação de Jimenez [1999, p. 377-378] de que “os artistas se inspiram na memória histórica, justapõem ou misturam de forma eclética estilos heterogêneos numa mesma obra”. Postura semelhante assume Rossi [2006] ao considerar que os artistas contemporâneos, em vez de rejeitarem o passado, buscam na história da arte uma infinidade de imagens para ressignificar. Na mesma esteira, Knaak [1995] pondera que, “Ao voltar-se no tempo e na história através da citação, a arte propõe a revisão, a reflexão, o questionamento do passado histórico, ou de determinado momento deste passado, a partir de si mesma.” Sendo assim, pode-se afirmar, com Chiarelli [2001], que o valor de uma obra com tendência citacionista não está na novidade, mas na construção de outros sistemas visuais significativos.

De acordo com o Estúdio de Criação Digital Casthalia [2006], a idéia de apropriação parte do princípio de que a cultura pertence à humanidade, que (re)constrói seu imaginário a partir de sua herança. Por isso, em vez de negar o passado para afirmar uma suposta originalidade, o artista cria a partir de fragmentos da memória artístico-cultural. Assim, o leitor precisa, nas palavras de Barbosa [1987, p. 4], “ter o olho educado historicamente [...] para poder decodificar os trabalhos da maioria dos artistas contemporâneos”, pois, conforme Pillar [2003], muitas obras remetem a outras obras por meio de citações que, em verdade, correspondem a jogos intertextuais utilizados pelo artista para se amparar, gozar e legitimar-se.

Figura. 14. “Autorretrato com Goya” de Albano Afonso, 2003. Fonte: http://www.fernandoduransubastas.com/images/subastas/18/201.jpg

Além disso, Cristofaro [2005] destaca que a criação de mecanismos eletrônicos de reprodução de imagens, tais como xérox e “scanner”, somados à Internet (ou rede de computadores), aumentam a oferta e o acesso rápido a qualquer tipo de informação. Dessa maneira, são discutidas questões referentes à autoria e à propriedade do uso de imagens, pois, na legislação dos direitos autorais, o poder de reproduzir uma obra, ou parte dela, é exclusivo de seu titular. No entanto, a autora menciona que os tratados sobre autoria desconhecem o significado da arte da apropriação, reconhecendo que, no atual estágio da tecnologia, é impossível impedir ou controlar a apropriação de qualquer dado audiovisual.

Desse modo, cabe afirmar, em conformidade com Cristofaro, que não faz sentido, no tocante a obras dessa espécie, promover questionamentos éticos sobre o direito moral do autor ou sobre a inviolabilidade da obra originária. Isso se justifica pelo fato de que toda uma vertente da arte atual se estabelece a partir da reutilização de materiais colocados em circulação pela chamada indústria cultural. Conseqüentemente, o limite entre o permitido e o proibido se torna cada vez mais tênue.

Deve-se, ainda, salientar, juntamente com Cristofaro [2005], que o fato de o artista se apropriar de imagens não põe em risco sua expressividade individual ou sua visão do mundo, pois seu critério seletivo, define, em última instância, suas idéias, suas inquietações, sua inventividade e seu pensamento associativo. Assim, a apropriação justifica-se por permitir ao artista criar um novo código de leitura que vai além dos significados originários dessas imagens, transportando-lhes nova compreensão e atribuindo-lhes novo sentido. Logo, uma das razões possíveis para o uso da apropriação na arte contemporânea parece estar evidenciada numa necessidade de revisionismo própria de nossa era.

2.5 Analogias entre a arte da apropriação e a realidade

De acordo com Couchot [2003], a arte, até o Cubismo, manifestava a tendência de representar o real. A partir desse movimento, no qual foram colocados objetos reais [bidimensionais] nas pinturas, o artista não mais tenciona representar o real, procurando, sim, apresentar o mundo, projetando-o sobre a tela. Dessa forma, o sistema representativo passa da representação para a apresentação.

Em outros momentos da história da arte, como no Minimalismo, não há diferença visual entre objetos artísticos e objetos comuns. Assim, torna-se difícil distinguir a arte da realidade, pois ambas se confundem por uma espécie de indiscernibilidade perceptual, proveniente do deslocamento de objetos comuns para o espaço da galeria. Isso acarreta uma mudança de código de significação dos objetos artísticos, reconhecendo-se, desse modo, que o significado de uma obra não está, necessariamente, contido nela, mas emerge do contexto no qual ela se encontra.

Como bem afirma Danto [2006], qualquer obra é considerada artística desde que seja exibida no campo definido como domínio da arte. Essa é uma idéia legada pela personalidade embreante de Duchamp, que, ao deslocar objetos de lugar, acabou por transformar sua temporalidade. A partir disso, o artista passou a possuir o poder de se apropriar de objetos e imagens e designá-los obras de arte. Portanto, é a manifestação da intenção do artista que faz da obra arte, na medida em que a insere num espaço legitimador, como o ambiente de museus e galerias.

Dessa forma, com a apropriação e a citação, a obra de arte se torna uma tautologia em que o objeto artístico remete o espectador para outras imagens, que também aludem a outras, numa seqüência interminável. A transfiguração do objeto banal em obra de arte passa a ser, portanto, tema corrente na arte contemporânea. Por meio desse procedimento, vários objetos e imagens do mundo tangível assumem o status de obra de arte, desde que circulem na mídia e na rede artística.

3. Considerações Finais

Considerando-se o exposto, pode-se concluir que, por ser a apropriação uma espécie de colagem de fragmentos de origens distintas, na qual não há uma unidade estilística entre as imagens e objetos apropriados, ela corresponde a uma tendência que não se estende somente à arte contemporânea, estando presente em vários aspectos da cultura. A apropriação engloba desde meios de comunicação e produtos da indústria da moda e do entretenimento até as mais diversas atividades artísticas.

A partir das leituras realizadas, foram identificadas diversas formas de apropriação, não sendo possível fazer uma distinção clara entre os termos “apropriação”, “citação” e “releitura”, já que eles se encontram inter-relacionados. Dessa maneira, é quase impossível definir uma obra apenas a partir de um desses conceitos, pois, em alguns momentos, eles se confundem, designando a mesma coisa.

Se bem que a apropriação seja um termo utilizado por artistas Norte-Americanos a partir da década de oitenta, sua origem parece remeter a vários períodos da história da arte, como, por exemplo, o Cubismo, o Dadaísmo e a Pop Art. A apropriação faz-se relevante para a arte contemporânea por permitir que o artista estabeleça relações entre imagens e objetos pertencentes à vida cotidiana e imagens artísticas de diversos períodos históricos, podendo, com isso, ressignificar o passado artístico. Assim, é plausível que sejam utilizadas formas vistas no mundo cotidiano e no mundo da arte para a produção artística contemporânea.

Em razão de a habilidade manual do artista já não ser necessariamente valorizada, muitos artistas reexaminam alguns gestos da vanguarda modernista, reinterpretando-os. Desse modo, é possível que trabalhem com a mistura entre o tradicional e o novo, ou seja, que olhem para o passado e usem, em suas produções, toda a herança legada pela história da arte, atribuindo-lhe um sentido novo, relacionado ao tempo atual.  Nessa direção, o artista transita por vários tempos, revisita e reinventa a história. Assim, a obra, tal como o pensamento contemporâneo, estrutura-se por montagem, isto é, por fragmentos que se juntam para formar um sentido.

Por fim, percebe-se que a diferença entre obras produzidas a partir do conceito de apropriação artística e objetos do mundo real está na intenção do artista, na inserção das produções em espaços consagrados, tais como museus e galerias, e na mudança de sentido das imagens ou objetos apropriados. Mesmo que a apropriação permaneça muito presente nas práticas artísticas contemporâneas e em vários aspectos da cultura, jamais se deve esquecer que a produção artística atual não se limita somente ao conceito de apropriação, sendo esse um dos vários vieses a partir dos quais é possível analisá-la.                 

4. Referências Bibliográficas

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Notas:

[1] Mestranda e bolsista CAPES do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais [PPGART] da UFSM – Universidade Federal de Santa Maria [turma 2008], sob orientação de Luciana Hartmann. Graduada em Desenho e Plástica – Bacharelado [2005] e Desenho e Plástica – Licenciatura Plena [2007], ambos pela UFSM.

 

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