voltar ao menu de textos

O MITO, O HERÓI, O ARTISTA
A
utora: Luciane Ruschel Nascimento Garcez[1] - lucianegarcez@terra.com.br

Resumo: Neste artigo pretende-se fazer uma análise da narrativa mitológica que compõe o mito do herói. Com a ajuda de alguns teóricos que refletiram sobre o mito, seu discurso e o papel do símbolo, vai-se tentar apreender qual a extensão da narrativa mítica na composição da imagem do artista. Dentro desta análise é possível encontrar os diversos mitologemas, que são partes da narrativa que contam momentos importantes da vida do herói, fatos que compõem sua biografia. Dentro dos mitologemas, encontram-se os mitemas, que são as menores unidades com algum sentido e que formam o mito em si. Os mitemas são redundantes e podem ser encontrados em diversos mitologemas, e é justamente a repetição destes mitemas que dá sentido á narrativa mítica. Há certa ordem de mitologemas, que em sua totalidade, contam a vida do herói. Para se fazer esta análise precisa-se buscar, sempre que possível, no texto integral a mitologia existente. Apesar de se ter que fragmentá-lo para que se possam identificar os diversos mitemas, é no discurso integral que se percebe a redundância e a construção de sentido dos mitemas.

Palavras-chave: Mito, Artista, Obra de Arte, Símbolo.

Abstract: In this article is intended to perform an analysis of the mythological speech that shapes the myth of the hero. With the help of some writers that thought about the myth, its speech and the role of the symbol in this topic, it will try to apprehend the extension of the mythical speech in the composition of the artist’s image. In this analysis it is possible to find many mythologies, which are parts of the speech that tell important moments of the hero’s life, facts that compose his biography. In these mythologies the mythos is found, which are the smallest unities with some sense and that compose the myth itself. The mythos is redundant and can be found in diverse mythologies, and it is precisely these repetitions that give sense to the mythical speech. There is certain order of mythologies that in its totality tell the hero’s life. To perform this analysis it is necessary to search, as always as possible, in the whole text the existent mythology. Despite having to fragment the text to be able to identify the diverse mythos, it is in the whole speech that is realized the redundancy and the sense construction of the mythos.

Key Words: Myth, Artist, Work of Art, Symbol.

Segundo o filósofo Gilbert Durand, a mitocrítica deve ser pensada como uma ferramenta, uma metodologia para análise ou crítica literária [DURAN apud VARGAS, 2006, P. 151]. Quando aplicada ao discurso crítico ela revela a presença de mitos ou estruturas míticas que, inconscientemente, atuam na construção de sentido e na construção da figura do artista como um herói. A atuação inconsciente do mito influi na aceitação ou rejeição da obra em cada momento histórico e pode ser encontrada em relatos biográficos, críticas e muitas vezes até mesmo nas palavras do próprio artista em entrevistas.

O mito é sempre uma narrativa carregada de significados, pode-se “desfragmentar” esta narrativa para que se possam identificar os mitologemas e mitemas. O mitologema pode ser entendido como uma parte da narrativa onde é identificado um acontecimento importante do mito, algo que contribui na formação do mesmo. O mitema é definido como a menor unidade com sentido que compõe o mito [VARGAS, 2006, P. 151], ele cria sentido pela repetição, como um sintoma que volta diversas vezes no discurso, sua redundância agrega o sentido ao mito. É importante frisar que o mitema pode ser encontrado em diversos mitologemas. Durand apóia a mitocrítica em três bases: Análise psicológica – O Autor (psicologia profunda e psicocrítica); Análise das estruturas constitutivas – O Texto (estruturalismo); Análise do contexto sócio-histórico – O Meio Social (análise marxista). Na análise do mito do artista, utilizam-se três discursos para identificar esta mitologia: a biografia do artista, o discurso de contexto histórico-social e o discurso do próprio artista, ou sua crítica.

Esta metodologia foi criada para a análise de obras literárias, portanto discursos. Sua narrativa é muito difícil de ser aplicada a objetos artísticos ausentes de textos ou imagens figurativas, mas pode-se aplicar este método na análise de críticas, biografias de artista e nas palavras do próprio artista. A identificação de mitemas no discurso de construção de identidade artística pode ajudar a entender porque algumas obras são aceitas e legitimadas e outras não. Este método foi criado e é proposto pelo teórico e artista plástico gaúcho, radicado em Florianópolis, SC, Professor na Graduação do curso de Bacharelado em Artes Plásticas e no Mestrado em Artes Visuais no CEART, UDESC -Universidade do Estado de Santa Catarina – Prof. Dr. Antônio Vargas, onde ele mantém as três bases propostas por Durand e assegurando o lugar da obra como ponto central da discussão. Para tal análise é indicado que se considere um conjunto de obras mais do que uma obra isolada e que se procure os mitemas, sempre que possível, nas palavras do próprio artista. É indicado que se explore o texto em sua íntegra, para que o contexto não se perca, ou que certas colocações não percam seu sentido, mas é preciso fragmentar este discurso para que os mitemas sejam identificados. Neste processo de identificação é possível encontrar referências que vão de encontro ao mito do herói, referências que apontam singularidades que imprimem o significado de excepcionalidade da obra, ou do artista; estas particularidades assumem significado artístico, mas como particularidades são históricas e culturais, portanto temporais. Mas a obra de arte é atemporal. Por isso se diz que o mito não fala da história e da cultura e sim quedá sentido à história e à cultura” [VARGAS, 2006, P. 153].

É importante salientar que, apesar de a fragmentação do discurso ser a ferramenta necessária para que se identifiquem os mitemas, o mito exige vivência, tem-se que mergulhar no discurso. A fala sobre o mito é sempre poesia, é ela que dá sentido ao mito, este tem sempre uma razão, certa racionalidade. Ambos os pensamentos, o racional e o mítico são expressos pela linguagem, por esta razão estão sempre contaminados. O mito está na categoria do “não falar” e do “não pensar”, quando se tenta explicá-lo deixa de ser mito e se converte em fábula ou lenda. Ele não é objetivável, pois não é objeto racional. O mito resiste ao tempo, se transforma, mas se mantém vivo nas narrativas contemporâneas.

Ernst Cassirer [1989] propõe a linguagem como o resultado de uma mediação entre mito e racionalidade, sendo que cada um é fundamental para a expressão do ser humano. Assim como o mito é dotado de certa lógica, também o discurso lógico-racional é dotado de mitologia. É esta característica singular da linguagem humana que permite o aparecimento da arte; em outras palavras, seu surgimento é uma conseqüência natural da formação da linguagem e da psique. Assim como a religião como um sentimento de sagrado, pré-disposição para a crença no transcendental [VARGAS, não publicado[2]]. Com isto podemos dizer que o discurso artístico geralmente vem carregado de mitologia, basta estar atento e procurar para que se possa identificá-la. Uma das principais funções do mito é ligar o homem ao mundo simbólico, transcendental, sem esta vivência espiritual a sociedade sofreria de graves distúrbios emocionais. A figura do artista é constituída em cima do “mito do herói” e a obra de arte pode ser vista como o elemento mediador, ela não pode ser concebida unicamente pela vontade do artista, ela necessita do olhar do outro, do espectador, ela é o resultado da tensão entre o artista e o público.

O mito é uma narrativa viva, cada vez que se repassa o mito ele pode mudar sua “roupagem”, mas a essência se preserva, ele auxilia na construção de um sentido coletivo para a ação individual. Segundo o filósofo Mircea Eliade [1995], o mito está sempre contando uma história sagrada, é uma narrativa que fala da criação, de algo que “começou a ser”. Os mitos revelam a sacralidade da obra, desvelam as diversas faces do sagrado. No momento em que o homem perdeu seu interesse pela origem mítica dos acontecimentos e passou a se interessar pelas causas que antecederam estas narrativas míticas, passou-se a um olhar histórico, aí o mito perde sua força, seu caráter de sagrado.

Na mitologia do herói o artista como um indivíduo real, comum, com uma vida semelhante à de qualquer outra pessoa não merece um segundo olhar, não tem importância. O mito do artista vem para lhe conferir um estatuto de Artista, transformá-lo em um personagem heróico, permitir que ele atue como um símbolo de transcendência. É alguém especial, predestinado a um destino diferente, excepcional, que enriquece seu coletivo através de suas ações, no caso, a obra de arte. É o ser dotado de habilidades especiais onde o cidadão comum pode se espelhar e dar algum colorido à sua existência.

O mito é sempre o veículo do símbolo, uma narrativa anacrônica, redundante e transcendente. Mas o símbolo que se menciona aqui não é o símbolo semiótico[3], é o símbolo da hermenêutica, é aquilo que remete ao transcendental, que não pode ser reduzido nem reduzível ao racional, para que ele exista deve existir uma relação afetiva, ele é uma parte “do que me constitui”. O símbolo neste sentido não permite distanciamento, caso este se apresente o símbolo perde vigor, pois ele não é objeto de conhecimento, é mais do que uma simples explicação, ele é o que para mim não necessita de representação, ele deve ser “em êxtases”, não é um processo consciente (Por exemplo: a pedra sagrada de que fala Mircea Eliade, ela só é sagrada para quem a conhece como sagrada, tem uma relação com ela, para iniciados em sua trajetória de sacralização, para outros ela é somente uma pedra. Assim é o símbolo, ele só o é para quem ele o é!). Não se tenta explicar Deus, ou a hóstia, caso isto passe a acontecer deixam de ser símbolos e passam a ser frutos de um raciocínio, quando se buscam provas de sua existência ele passa a ser conceito.  O símbolo é símbolo de mistério, daí que nenhuma interpretação se esgote, ele é o próprio interpretante.

A idéia de arte, que é diferente para cada pessoa, é um símbolo. O fenômeno artístico é, por natureza, simbólico. O símbolo não é o que relaciona, é a própria relação, onde o que importa não são os pólos desta relação, mas a relação por ela mesma, ela tem que ser suficiente, assim o símbolo é a relação vivida. O símbolo não tem objetividade em si e tampouco é puramente subjetivo, não depende da vontade de uma pessoa, ele é simplesmente, ou se entende ele ou não, ou nos encontramos nele ou não, não existe meio termo. Ele transcende a dicotomia objetivo/subjetivo. Assim como o veículo do mito é a fé, o instrumento do mito é o símbolo, e sua expressão é o rito. Os símbolos são a base que constitui o mito. A experiência simbólica não é reflexiva, não é lógica.

Pode se dizer que o símbolo gera muitas interpretações, mas não pode ser interpretado, tem muitas significações; não é objeto de pensamento lógico, de raciocínio, pensa-se nele e não sobre ele, ao mesmo tempo é precisamente o símbolo que liberta o indivíduo do pensamento, na mesma medida que o inspira e absorve. Ele pode ser uma coisa para mim e outra para outra pessoa, quanto mais rico e vivo ele esteja, mais ele permite considerações. Segundo o teórico Raimon Panikkar [1994, P. 398], un símbolo sin amor, sin simpatía – dicho en términos más sociológicos: sin participación – no es un símbolo. Ao se referir a esta experiência simbólica de muitas interpretações, conclui-se que os diversos significados que compõem o símbolo são na verdade a sua riqueza e, em certo sentido, vê-se que o símbolo é singular apesar de sua pluralidade. Se tentar-se dividi-lo em suas multiplicidades, ele perde sua força. Estas múltiplas facetas têm que compor sua unidade e manter seu centro para que o símbolo cumpra seu papel. Assim também a obra de arte passa por um processo similar, existem obras que chamamos “obras primasousingulares”, são obras que:

...conseguem através de suas características visuais, estimular de forma mais intensa as associações com a mitologia. Paradoxalmente, são obras que estimulam mais falar-se sobre elas e apesar de que este fato implique em maior volume de falas, estas encontram consenso sobre o valor da obra [VARGAS, não publicado, P. 57[4]].

A experiência simbólica não é egocêntrica, seu centro de gravidade não é meu ego psicológico, nos diz Panikar [1994]. Assim também o mito necessita desta relação, necessita do outro para que se faça presente. Diz-se que o mito é transparente, posso captar o mito do outro, mas não posso vê-lo em mim mesmo, preciso de outro olhar para captá-lo, da mesma maneira como se é incapaz de perceber sua própria personalidade, precisa-se ver o “olhar do outro”. Assim como uma pessoa não consegue detectar seu próprio sotaque, que lhe confere certo pertencimento a determinada região, mas consegue distinguir o sotaque na fala do outro, e como exercício pode ouvir-se na secretária eletrônica, o que sempre causa certa sensação de estranhamento, aquela voz não parece me pertencer. Eu percebo somente meu mundo, não posso olhar com os olhos do outro; cada visão é diferente, só o diálogo une as visões.

O mito é anacrônico, seu tempo é o tempo do eterno retorno, o tempo cíclico, o tempo sagrado, que é o da história originária, dos proto-acontecimentos, a temporalidade simultânea está no âmbito do sagrado. Enquanto o tempo profano se manifesta em uma série de acontecimentos sucessivos em um percurso temporal irreversível, uma temporalidade sucessiva. Ambas as temporalidades se encontram bem diferenciadas no mito, mas ao mesmo tempo interligadas, uma penetra as camadas da outra. Como se o tempo fizesse uma dobra onde uma camada pode contaminar a outra. Na ciência esta interconexão desaparece, o tempo sagrado é substituído pelas leis da natureza, a eternidade é deslocada para fora dos limites temporais, de maneira que o tempo aparece como linear, irreversível. A ciência coloca o tempo nestes critérios diacrônicos para que possa ser considerado real [GARAGALZA, 1994] e, desta maneira, a história é contada como que em um varal, em uma seqüência organizada.

Este não é o tempo do mito, tampouco o tempo da arte. Georges Diddy-Huberman, em seu texto Ante el tiempo [2000, P. 11] diz que:

Siempre, ante la imagen, estamos ante el tiempo. Como el pobre ignorante del relato de Kafka, estamos ante la imagen como Anta la ley: como ante el marco de una puerta abierta. Ella nonos oculta nada, bastaría con entrar, su luz casi nos ciega, nos controla. Su misma apertura – y no menciono al guardia – nos detiene: mirarla es desearla, es esperar, es estar ante el tiempo. Pero ¿qué clase de tiempo? ?De qué plasticidades y de qué fracturas, de qué ritmos e de qué golpes de tiempo puede tratarse en esta apertura de la imagen?

É nesta clave de anacronismo que se situa a obra de arte e é que se encontra o mito. A apertura da imagem é o momento em que a obra chega até o espectador e o “olha”, é o momento mágico em que ele entende o universo daquela obra e é que ela se torna sagrada para ele, cria-se uma relação e a obra passa a viver novamente nos olhos do outro, ele é tocado por ela e se dá um entendimento. Neste momento a relação simbólica se faz presente. Mas com que tempo se olha a obra e com que tempo ela olha o espectador? O tempo fica suspenso e não importam datas nem contextos, a obra vive por ela mesma. [...] es necesario comprender que en cada objeto histórico todos los tiempos se encuentran, entran en colisión o bien se funden plásticamente los unos en los otros, se bifurcan o bien se enredan los unos en los otros [DIDI-HUBERMAN, 2000, P. 46]. O anacronismo atravessa todas as contemporaneidades, perpassa a historicidade, permite que as lâminas da história se contaminem entre si.

Assim também é o tempo da festa, tempo onde estão inseridas a arte, a religião, a magia e a cultura em sua totalidade. É na festa que se encontra o momento em que a experiência vital e espiritual acontece, e, paradoxalmente, é neste tempo em que a realidade natural não se dissocia da espiritual. O jogo e a festa são em si um ato de criação, de dispêndio, onde se faz possível o que em outras circunstâncias não seria tolerado. Este é um tempo imemorial, que precede o nascimento da arte, é um instante de criação que se desloca na eternidade.

Podemos ver entonces el tiempo festivo como una determinada región del tiempo en la que se hace posible captar aquello que sólo se hace presente en el instante, como una zona o lugar que se destaca de la geografía del tiempo, sin desconectarse de ella, que hace posible elevarse en la vertical sin abandonar la tierra [ORTIZ-OSÉS, 1994, P. 46].

O Mito em Ação

No mito o tempo é anacrônico, visto desta maneira, é possível afirmar que os mitemas não são diacrônicos, não é assim que funcionam, mas sim em sincronicidade; o mitema é aquilo que se repete, que é redundante, é o que dá sentido à narrativa mitológica. O mitema não tem uma ordem propriamente dita para se manifestar, ele pode ser encontrado em vários mitologemas reforçando sua potência como gerador de sentido.

O primeiro mitologema que se pode buscar é o da origem, nesta classe de mitologemas podemos encontrar a descendência nobre, indícios de precocidade, predestinação ao seu destino heróico, entre outros que vão formando a saga do herói. A origem do nascimento aponta o indivíduo como alguém que é diferente da maioria, em alguns casos de linhagem nobre, afirmando assim seu caráter especial, uma explicação para seus talentos; em outros casos ocorre o contrário, o artista tem uma descendência simples, ordinária, o que o classificaria como especial por ser um escolhido dos deuses.

Em um texto da historiadora Teresa Tedin [ARTUNDO et al., 2005, P. 157] que fala sobre a biografia do artista plástico argentino Xul Solar [1887 – 1963], podem-se identificar vários mitemas, como o do nascimento difícil, onde é explicado como o artista contraiu uma febre e perdeu sua irmã mais nova da mesma doença, momento que indica muito sofrimento e dor: Aos sete anos, contrai febre tifóide e, no ano seguinte, sua única irmã, Sara, falece aos quase quatro anos de idade devido à mesma enfermidade. Encontramos aí a afirmação de que o artista é alguém escolhido pelos deuses, especial, sobreviveu à mesma doença que levou sua irmãzinha. No mesmo parágrafo segue a fala mostrando a precocidade do artista que aos sete anos inicia seu aprendizado formal e erudito: Ingressa na escola primária do Colégio Francés Fermy, onde deve estudar francês, italiano e latim. A partir de 1900, transfere-se para o Colégio Inglés. Começam seus estudos de violino, mas os abandona depois de sofrer um acidente de cavalo [P.157]. Estas são ações que fora deste contexto passariam despercebidas, ações comuns que poderiam não ser fundamentais para sua formação, aqui são mostradas como uma aprendizagem extraordinária que se deu ainda na infância e no início de sua adolescência.

A escritora segue frisando a descendência nobre do artista, outro mitema recorrente em biografias artísticas:

A educação familiar que recebe tem uma sólida base musical: seu avô Alexander Schulz era compositor, e herda de seu pai Emilio uma cítara que aprende a tocar. O arquivo do Museu Xul Solar conta com várias fotos de seu pai vestido a rigor para os espetáculos de gala do Teatro Cólon [P. 157].

A esta referência familiar que enfatiza os talentos de seus ancestrais como se este fato garantisse o talento do próprio artista, um dom que passaria de pai para filho, seguindo na mesma linhagem, o que na verdade não teria maior significado caso não estivesse na biografia do artista, pois quantas pessoas descendem de músicos, pintores, etc. e não desenvolvem dom nenhum para as artes, sendo que levam suas vidas para áreas bem diversas.

Logo em seguida encontra-se uma afirmação que sugere a superação do mestre, que mostra que não só o artista aprendeu muito bem o ofício, como desenvolveu métodos mais competentes para o aprendizado da música:

Graças a seu profundo conhecimento da matéria, anos depois não somente modificará o sistema de notação musical para um mais fácil de aprender e de tocar, mas também intervirá, com mudanças estruturais, em uma celesta, um harmônio e no piano de Lita, sua esposa [P. 157].

No mitologema que corresponde ao aprendizado do artista, o mitema da viagem é muito recorrente, muitas vezes a dita viagem não acresceu em nada a formação do artista, mas o fato em si já é visto como uma conquista, o artista que viajou, passou um tempo fora de seu país (ou cidade, ou Estado...) e “viu o mundo”, caso ele volte por vontade própria, “vitorioso”, o mito se consagra no retorno do artista à sua coletividade.

No caso de Xul Solar ele viaja para a Europa e fica lá por muitos anos, este período é considerado um despertar de seus talentos; quando retorna à Argentina sua carreira já é vista com outros olhos, seus horizontes se ampliaram. Sua estada no velho continente é retratada em detalhes, cada país que visita parece ser fundamental em sua formação, como se pode conferir em alguns trechos que seguem:

Começa a planejar, com seu amigo Diego Luis Molinari, a desejada viagem à Europa.

[…] Na sexta-feira, 5 de abril (1912), embarca, na segunda classe, no navio cargueiro inglês England Carrier. O primeiro destino é Londres, onde fica durante alguns dias, indo depois a Paris e daí a Turim, cidade na qual permanece vários meses. Neste período europeu, Xul tem experiências enriquecedoras, conhece outros artistas, visita museus e galerias, livrarias e bibliotecas. […] Permanece na Europa até 1924 [P. 158].

O fato de Xul Solar ter visitado museus, galerias, bibliotecas e livrarias não garante seu aprendizado artístico, qualquer turista visita estes lugares quando está viajando, e não quer dizer que voltam com seus talentos apurados e nem isto os torna especiais. Mas neste caso o artista sai da América Latina e vai ao Primeiro Mundo, é uma conquista vista com bons olhos pela sociedade, e também pela crítica em algumas situações, e os locais mencionados são instituições onde o saber é reconhecido, por isto a citação ligando o artista a estas instituições já cumpre o papel de informar sobre a formação do indivíduo, sendo esta verdadeira ou não. Mas para o artista esta estada foi fundamental para sua formação, ele trabalhou bastante neste período e expôs em alguns lugares. A afirmação de seu crescimento está em sua biografia quando a escritora relata sua volta: A partir de sua chegada à Argentina, o horizonte de Xul se amplia: acrescentam-se, a sua profissão de pintor, a de escritor, tradutor e ilustrador de textos [P. 158].

Já nos primeiros meses de sua viagem, Xul, em suas próprias palavras, comenta seu trabalho dando vida ao mitema da superação do mestre, quando em uma carta a seu pai ele comenta:

“Há coisas espantosas para os burgueses, quadros sem natureza, linhas e cores só, por exemplo assim”, e esboça a tinta um quadro de Kandinsky, acrescentando: “estou satisfeitíssimo porque vejo como eu sozinho, sem inspiração exterior de nenhum tipo, trabalhei na tendência que será a dominante da arte mais elevada do porvir” [P. 158].

Nesta sua fala, talvez se possa também encontrar o mito do herói asceta, quando Xul fala que trabalhou sem inspiração exterior, sugerindo que seu talento brotasse de uma interiorização, a inspiração que vem de dentro, do recolhimento.

Há uma citação no texto, que de alguma maneira possa indicar o mitema do abandono do grupo, já que sugere um descaso do artista com seu país natal, ou ao menos com sua língua materna:

Em um postal a seu pai, escreve obedecendo à fonética castelhana, mas sem se preocupar com a ortografia: “Fervientes votos de felicidad para ti juntamos a los deseos tantos de reverte después deste destierro ya muy largo ikiza cuando será la reunión de nuevo em la kerencia!” [P. 159].

O texto dá a impressão de que o artista já se incorporou nesta outra sociedade, sua contribuição se daria em outra coletividade.

Há vários trechos que indicam seu reconhecimento social, onde a autora cita nomes de outros artistas e personalidades importantes que cruzaram o caminho de Xul Solar enquanto este ficou na Europa. Segue um deles:

Em maio, visita Roma, onde Pettoruti apresenta obras na Esposizione Nazionale della Citá di Roma; no fim do ano viaja à Alemanha. Piero Marussig faz seu retrato em troca de uma aquarela de sua autoria. Em outubro, concorre aos Munchener Kunstwerksatten […], conhecidos por seus célebres métodos e conceitos, fundados por Wilhelm von Debschitz, os quais Ernst Ludwig Kirchner freqüentou, e onde Klee estudou e trabalhou. Durante sua permanência em Munique (1921-1923), Xul esteve em contato com Hans Reichel (amigo de Klee), com sua esposa Olga e com a jovem Elena Alberti [...] [P. 160].

Xul completa sua mitologia do herói quando, de seu retorno, implica no mitema que é o da entrega ao coletivo, momento no qual o artista que passou um tempo ampliando seus conhecimentos, agora, de volta à sua terra natal, passa este aprendizado ao coletivo, à sociedade na qual está inserido. Em uma carta que envia à sua mãe, vê-se esta intenção em suas próprias palavras, e depois a autora reforça o mito:

Escreve a suas “mamás”: “Queridas viejas fofas: Emilio foi para Berlim para sua exposição. Fez um grande retrato meu todo quadrado. (Causará sensação em B.AS.)”. Trata-se de Retrato de Xul Solar, pintado por Pettoruti em 1920.

A idéia de voltarem juntos ao país aparece em um postal dirigido a suas “mamás”: “causaremos grande impacto”, o de levar a arte vanguardista à Argentina. O desencadeador foi o envio oficial à Bienal de Veneza de 1922, que Pettoruti qualifica como “espantalho”, uma arte pompier e academicista, distanciada dos novos movimentos que se vêem na Europa. O regresso é uma aposta nas raízes nacionais, um projeto americanista que Xul concretiza em obras como Nana Watzin, Chaco, Tlaloc [P. 161].

Entre os mitologemas da formação e aprendizado, os mitemas que estão relacionados com a destreza do herói em dominar suas técnicas - o mitema chamado de domínio das armas – são os que mais podem impressionar o ouvinte desta fala mítica (VARGAS, 2006, P. 158). Em uma vasta gama de textos críticos sobre o trabalho do artista plástico contemporâneo francês, Huber Duprat, diversos teóricos são unânimes em salientar esta característica em seu trabalho. O domínio das técnicas empregadas em algumas de suas obras vem a reforçar sua extensa pesquisa, e em alguns momentos, salientam seu caráter de herói asceta, aquele que cria pela busca interior, o mergulho do artista em seu próprio inconsciente, de onde emerge com a inspiração necessária para a completude da obra de arte. Isabelle Fougère [FOUGÈRE, 2000, P. 82], crítica francesa, em um texto sobre o trabalho de Duprat fala:

...Ele fala bem portanto, este autodidata, para dizer que ele não tem atelier, que ele é freqüentemente preguiçoso, se nutre de leituras, passa longos momentos em sua biblioteca, no meio de seus livros, de suas leituras apaixonantes, de tudo que o questiona [tradução da autora] [5].

Neste trecho é possível identificar a tendência à introspecção do artista, seu mergulho na pesquisa, na busca do conhecimento, a solidão que precede a criação. O mitema do artista de natureza interior e a solidão que ele se impõe para que possa concluir seu processo artístico. Diferente do artista guerreiro que é um fazedor de mundo, vai à luta para conquistar seus territórios, em Duprat seu território é o da introspecção. Continuando no mesmo texto, Fougère fala sobre a técnica desenvolvida pelo artista em uma de suas obras:

...é também ele que ensina, ele que mostra, expõe e explica. Hubert Duprat passa a ser então mestre em matéria de construção de uma obra de arte; Mestre artista de qualquer maneira, é que ele permite ensinar seu trabalho a todos que se interessem [P. 83 – tradução da autora].[6]

Nesta afirmação, o mitema do domínio das armas é evidente e muito salientado por palavras como “mestre”. Mas talvez também seja pertinente dizer que nesta fala, quando ela comenta que ele está disposto a ensinar sua técnica a quem se interessar, o mitema da entrega ao coletivo também esteja presente.

Continuando no mesmo texto, ela afirma a categoria de herói de Duprat quando o classifica com a seguinte frase: Hubert Duprat é um vigia da luz, ele procura a saída da escuridão, aquela que se encontra exatamente no coração das coisas [P. 84 – tradução da autora] [7].

O mito do herói percorre uma saga onde sua trajetória o leva invariavelmente ao renascimento através de sua obra. A morte trágica do herói é fato comum nas narrativas míticas, pois representam a inveja dos deuses às suas conquistas e reconhecimento pela sociedade.

O mito ensina que os homens devem unir-se por sua essência humana; respeitar-se e se admirar por sua condição humana, porque a morte os separa inexoravelmente. A morte do herói mostra que, se o próprio escolhido não está livre dessa tragédia, aos homens nada mais resta que e unirem para suportar e aceitar a mesma sorte [VARGAS, 2006, P. 163].

Por fim, o estudo da mitocrítica leva a perceber de que maneira o mito do herói está presente em nossa sociedade inclusive nos dias atuais. Sua narrativa varia de acordo com o contexto, mas a mitologia se faz atuante e é o que ajuda a compreender o artístico. No mundo das artes esta mitologia leva a obra até o espectador atuando direto no seu inconsciente, muitas vezes legitimando ou derrubando o estatuto de obra de arte em certas criações. É através dele que o comum se transfigura em singular [VARGAS, não publicado[8]].

Na análise do discurso é possível encontrar referências a mitemas que consolidam esta mitologia nos mais diversos períodos históricos, não sendo privilégio de nenhum tempo o encontro com o mito do herói. É possível trilhar por este caminho nas palavras do próprio artista, ou nas críticas que se referem a ele e à sua obra, a análise é sempre através de uma narrativa.

Cada sociedade se constitui através de seus mitos, o que revela suas singularidades e peculiaridades.  A maneira como o ser humano percebe o outro e a si mesmo transcende os limites da ciência, assim o discurso do mito vem a ajudar a compor as sensibilidades que determinam o artista e sua obra.

Poderia ter sido mais extenso o número de exemplos e trechos de textos críticos, mas percebe-se que a essência do método de análise foi revelada, e o excesso faria deste texto uma leitura por demais longa e enfadonha.

Referências Bibliográficas

ARTUNDO, P.M. et al. Xul Solar. Visões e Revelações. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2005.

DIDI-HUBERMAN, G. Ante el tiempo. Buenos Aires, Argentina: Adriana Hidalgo editora S.A., 2000.

ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

FOUGÈRE, I. Hubert Duprat et les trichoptères. Recherches Poiétiques – Revue de la Societé Internationale de Poiétique. Numéro 9. Hiver Pintemps 1999-2000.

GARAGALZA, L. Filosofia e historia en la Escuela de Eranos. Anthropos – revista de documentación científica de la cultura. No 153, febrero 1994, ISSN 0211-5611.

ORTIZ-OSÉS, A. Las claves simbólicas de nuestra cultura – Matriarcalismo, patriarcalismo, fratriarcalismo. Anthropos – Revista de documentación científica de la cultura. No 153, febrero 1994, ISSN 0211-5611.

PANIKKAR, R. Símbolo y Simbolización – La diferencia simbólica. Para una lectura intercultural del símbolo. In: Arquetipos y símbolos colectivos: Círculo Eranos, I. Primera edición. Barcelona, Espanha: Editorial Anthropos Promat, S. Coop, Ltda., 1994.

VARGAS, Antônio. A influência do mito do herói na aceitação das práticas artísticas. Concinnitas. Ano 7, volume 1, número 9, julho 2006.

Notas:

[1] Vinculação Institucional: mestranda regularmente matriculada no PPGAV – CEART, UDESC.

[2] VARGAS, Antônio. A Arte do Mito – considerações sobre a influência da mitologia artística (não publicado).

[3] Na semiótica, símbolo é o que, de forma arbitrária, estabelece uma relação convencionada entre o signo e o objeto – exemplo: o termo cadeira.

[4] VARGAS, Antônio. A Arte do Mito - considerações sobre a influência da mitologia artística (não publicado).

[5] Il parle bien pourtant, cet autodidacte, pour dire qu’il n’a pas d’atelier, qu’il est souvent désouevré, se nourrit des lectures, passe des longs moments dans sa bibliothèque, au millieu de ses livres, de ses lectures passionées, de tout ce qui le questionne.

[6] ... c’est aussi celui qui einsegne, celui qui montre, expose et explique. Hubert Duprat est donc passé maître en matière de construction d’une ouevre d’art ; Maître artiste en quelque sorte, ce qui lui permet d’enseigner son métier aà ceux qui s’y intéressent.

[7] Hubert Duprat est un guetteur de lumière, il cherche la sortie de l’obscurité, celle qui se trouve au coeur des choses justement.

[8] VARGAS, Antônio. A Arte do Mito – considerações sobre a influência da mitologia artística (não publicado).

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano VI - Número 10 - Novembro de 2008 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

OBS: Os textos publicados na Revista Art& só podem ser reproduzidos com autorização POR ESCRITO dos editores.