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AS ARTES CÊNICAS NA ACADEMIA: ENTRE A REFLEXÃO TEÓRICA E A PESQUISA PRÁTICA
Autor: Rogério Lopes da Silva Paulino[1] - rogerlop@hotmail.com

Resumo: Este texto pretende discutir e fazer apontamentos sobre como se daria uma possível conciliação entre a reflexão teórica e a pesquisa prática no campo das artes cênicas, tomando o espaço da universidade brasileira como local prioritário de discussão.

Palavras-chave: Pesquisa em arte, artes cênicas.

Abstract: The aim of this paper is to present notes and discuss possibilities for incorporating theoretical reflections with practical research in the scenic arts, using the Brazilian university as its main discussion focus.

Keywords: Art research, scenic arts.

Este texto pretende discutir e fazer apontamentos sobre como se daria uma possível conciliação entre a reflexão teórica e a pesquisa prática no campo das artes cênicas, tomando o espaço da universidade brasileira como local prioritário de discussão. Não temos a pretensão de dar respostas definitivas a esta questão, até porque, trata-se de um tema complexo sobre o qual se têm poucas certezas. Mas o exercício de compreensão das principais variáveis envolvidas nos parece de fundamental importância para pensar qualquer procedimento de pesquisa na área de artes cênicas.

A universidade foi escolhida como principal fórum de discussão, não por considerarmos que inexistem trabalhos de pesquisa bem fundamentados fora da academia, muito pelo contrário, as artes cênicas, como veremos adiante, foram recentemente introduzidas no ambiente universitário; esta escolha deve-se ao fato da universidade ser um espaço onde o processo de sistematização das pesquisas encontra-se mais avançado.

Para entendermos como a relação entre teoria e prática tem adquirido importância, dentre as questões que permeiam as discussões do campo das artes cênicas, vamos recorrer, primeiro, à abordagem histórica realizada por Josette Feral [2001]. Esta autora vai lidar com esta temática através do estudo da relação entre teatro e sociedade, pois segundo ela “os elos entre teoria e prática constituem uma batalha a ser empreendida constante e regularmente no interior das estruturas em que funcionamos” [FERAL,2001, P.21].

A autora primeiro distingue três fases de exigências que a sociedade impõe ao teatro:

1) O teatro, principalmente no século XIX, foi visto como mero divertimento, como objeto de consumação, caracterizado por casas de espetáculo com boa freqüência de público;

2) Do final do século XIX até os anos 60 surgiu o “Teatro de arte” através dos empreendimentos dos simbolistas. Neste período apareceram peças mais sérias que levaram o público, que buscava apenas divertimento, a deixar de freqüentar as salas de espetáculo. Foi o período do teatro percebido como arte engajada;

3) Nos últimos 20 ou 30 anos o Estado percebeu o teatro como uma forma privilegiada para expressar o respeito de suas identidades culturais e passou a custear construções de teatros, a dar subvenções a escolas e a criar festivais.

Após apresentar estas 3 fases a autora busca correlacioná-las com a forma como os estudos sobre teatro se desenvolveram. Segundo ela, até o século XX é mais fácil encontrarmos exemplos de autores como Lope de Vega, Diderot, Voltaire que mantinham mais reais os elos entre a reflexão sobre o teatro e a prática profissional. A partir do século XX começou haver um distanciamento entre estas duas instâncias, a prática e a teoria. Nos anos 20 surgem os estudos com preocupações estritamente teóricas e toma corpo a figura do pesquisador, que está menos preocupado com o processo de criação e mais voltado para a obra de arte acabada. Este processo se consolida, principalmente nos anos 70 e 80, com o surgimento de pesquisas com um alto grau de teorização influenciadas pela semiologia, sociologia, antropologia, história e etc.

De acordo com Feral [2001], estamos voltando os nossos olhos novamente para a dimensão da prática, porque esta última fase, que descrevemos acima, produziu uma série de teorias totalizantes que não conseguiram apreender o fenômeno teatral como um todo. Fora o fato de que, em qualquer área do conhecimento, as teorias generalizantes têm sido questionadas. Existem diversas lacunas na reflexão teatral: como uma criação toma corpo? O que acontece durante os ensaios? O que determina as escolhas de diretores e atores e etc. Ou seja, por muito tempo estudou-se a representação teatral como produto acabado, deixando de lado os processos de criação teatral. Por isso, “para que uma ciência do teatro seja completa [...] é necessário ainda que ela não se isole da prática em vigor e que se volte para o próprio ato da criação” [FERAL,2001, P.28].

Dentre os fenômenos de importância recente para o fortalecimento deste processo encontra-se a emergência do teatro como prática dentro da universidade. Esta aproximação está sendo fundamental para reduzir a resistência que os artistas possuem em relação às abordagens teóricas, por conceberem as mesmas como algo isolado da prática. Esta aproximação, no entanto, é bastante delicada, pois de acordo com Luiz Arthur Nunes [1999], ela implica em questionar justamente a relação funcional que estabelecia que a teoria é do domínio do acadêmico e a prática do artístico, desmembrando os binômios teoria/prática e acadêmico/artístico.

De acordo com Nunes [1999], esta é uma operação pouco aceita tanto pelos acadêmicos defensores das “hard sciences”, como pelos artistas românticos pregadores de um fazer artístico como resultado de um processo intuitivo e cheio de abstrações, impossíveis de serem apreendidas por uma teoria. Para Nunes [1999, P.34] “trata-se de uma visão ultrapassada e preconceituosa. Certamente o exercício intelectual associado à criação não será capaz de, por si só, assegurar mérito artístico. [...] Mas se a reflexão se debruça sobre um terreno fertilizado pela inspiração e pelo talento, ousamos supor que algum ganho relevante poderá advir daí”.

Poderíamos dizer que ainda é bastante comum encontrarmos artistas ou pesquisadores que se escondem atrás da falsa associação entre a arte como uma dimensão puramente dionisíaca e a ciência como uma dimensão apolínea; concebendo a prática teatral e a pesquisa científica como incompatíveis para evitar um trabalho mais rigoroso. Segundo Luiz Fernando Ramos [2001, P.39]:

“[...] o fato deste conhecimento que está sendo buscado [através da pesquisa em artes cênicas], seja na forma de espetáculo seja na forma de apresentações conceituais, literárias, não ser uma ciência não é um problema. A fragilidade que caracteriza esse saber possível de ser apresentado é específica do processo teatral, e sua indeterminação tem mais a ver com a familiaridade e identificação frente ao processo criativo de um espetáculo do que com uma limitação intrínseca” [2001, P.39].

Por isso não há motivos para se fugir de perspectivas que possam fazer confluir teoria e prática. Como exemplo, Ramos [2001] cita o grupo de teatro Oficina que, mesmo estando sempre associado a propostas criativas bastante radicais, é um dos grupos que mais trabalha a partir de estudos densos. E acrescentaríamos, ainda, a observação de que José Celso Martinez, diretor do grupo Oficina, talvez seja o mais “dionisíaco” dos diretores brasileiros.

Mas não podemos perder de vista que as artes cênicas ingressaram no ambiente acadêmico muito recentemente. De acordo com Armindo Bião [1999, P.254] “a pesquisa universitária, desenvolvida em paralelo à produção de artes cênicas, no ambiente universitário brasileiro, só se institucionalizou com a criação do primeiro mestrado na área e a conseqüente implantação do doutorado [USP 1972/80]”.

O próprio advento da arte enquanto campo de conhecimento reconhecido institucionalmente pelos órgãos oficiais de pesquisa no Brasil é extremamente recente, até pouco tempo a arte era considerada como mais um objeto de pesquisa para as outras áreas do conhecimento, não possuindo um status autônomo. Segundo Bião [1999, P.255], a liminaridade característica da arte faz com que ela permaneça “entre os diversos mundos, em todas as suas dimensões; sugerindo, de modo quase inapelável, abordagens transdisciplinares, multidisciplinares e/ou interdisciplinares”. No caso das artes cênicas, este tipo de abordagem fica ao observarmos como o campo é constituído por pesquisadores oriundos de diversas outras áreas de conhecimentos, seja das ciências humanas, biológicas ou exatas, e de como a produção teórica contempla as mais diversificadas fontes bibliográficas.

Outro aspecto a ser fortemente considerado no processo de inserção das artes cênicas na universidade é a forma como está sendo processado o próprio ensino de teatro. Apesar desta questão não ser o foco deste trabalho é um aspecto relevante, pois a formação dos pesquisadores acaba influenciando na forma como as pesquisas estão sendo realizadas.  Para Marta Isaacsson:

[...] “a inclusão do ensino de artes na universidade representou, na verdade, a sujeição do programa pedagógico artístico a um sistema burocrático sem a devida reflexão sobre a sua especificidade e o necessário esforço no sentido de uma integração efetiva e eficaz à instituição” [1999, P. 27].

Não é à toa que alguns cursos universitários de artes cênicas tem buscado trazer os artistas profissionais para trabalharem no seio da universidade, seja definitivamente ou por períodos pré-determinados. Um bom exemplo é o projeto de residência teatral do Centro Cultural da UFMG em parceria com a Escola de Belas Artes, onde esta locado o curso de Arte Cênicas da UFMG, que abre edital e seleciona projetos de um ou dois grupos da cidade para realizarem suas pesquisas no Centro Cultural da Universidade, mantendo constante relação com os alunos e professores da graduação.

Mas Bião [1999, P.257] alerta que “a vocação para o conhecimento artístico é certamente secundária à vocação central da academia para a ciência e a educação, como sugerem os exemplos históricos e contemporâneos, particularmente no Brasil”. Basta observarmos o número irrisório de bolsas de pesquisa para a pós-graduação na área de artes fornecidas pelas agências de fomento, se comparado ao número oferecido a outras áreas do conhecimento.

Questionamentos sobre a realização de pesquisas em artes cênicas junto à universidade não estão presentes apenas no contexto brasileiro como nos mostra Beatriz Cabral [2003] ao relatar as discussões da IV Conferência Internacional de Pesquisa em Drama e Teatro Educação em Exeter, no Reino Unido. Naquela ocasião, a polêmica se deu em torno da seguinte questão: “o fazer teatral, quer baseado em texto dramático ou criação coletiva, pode ser considerado como pesquisa?” [CABRAL, 2003, P.1]. De acordo com Baz Kershaw [apud CABRAL, 2003] da Universidade de Bristol, para pensarmos a questão anterior devemos levar em conta que tipos de conhecimentos a prática como pesquisa poderia produzir? Há alguns tipos de conhecimentos que são acessíveis apenas através da experiência viva do espetáculo? Sempre se perde a compreensão de algo no processo de documentar o espetáculo ou poderá haver uma tradução bem sucedida de um meio ao outro?

Mas como aliar, metodologicamente, procedimentos práticos e reflexão teórica no processo de pesquisa? De acordo com Renato Ferracini [1999] todos os princípios por ele estudados foram transmitidos corporalmente sem que ele, e os outros atores iniciantes do LUME [Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP] tivessem consciência teórica do que estavam fazendo, não havia espaço para qualquer tipo de conversa ou reflexões. Luis Otávio Burnier, fundador do grupo LUME, assim como Jerzy Grotowski, acreditavam que qualquer teorização deve vir após a prática; para este último os atores utilizam a tentativa de ficar comentando o processo como forma de se esconder e não se entregar verdadeiramente. Segundo Grotowski [1992, P.171] “uma filosofia sempre vem depois de uma técnica! Você anda na rua com suas pernas ou com suas idéias?

Apesar destas observações serem bastante pertinentes, elas sugerem uma certa incompatibilidade entre prática e teoria, privilegiando explicitamente a primeira em detrimento da segunda. Mas há outras metodologias de criação teatral que partem de pressupostos opostos, como é o caso de grupos como o Folias d’arte de São Paulo, que pautam a realização de seus trabalhos por um engajamento social e um profundo conhecimento teórico do pensamento Marxista. No caso do grupo Folias d’arte existe um Conselho Artístico que visa avaliar o conteúdo ideológico e estético da produção teatral do grupo, opinando desde a elaboração de projetos até o processo de ensaios. A sua rotina de trabalho é pautada por uma forte conscientização das idéias e princípios que estão em jogo durante a criação teatral, que é construída a partir de constantes reflexões teóricas.

Bião [1999, P.257] é quem formula uma possibilidade de um “caminho do meio” ao dizer que:

“[...] o fazer e o refletir não são incompatíveis, apenas não ocorrem simultaneamente, o tempo todo, de modo que uma reflexão crítica e criativa em forma de pesquisa deve acontecer como antecedente e conseqüência da criação artística pesquisada. Criação e crítica em termos pragmáticos, só existem alternando-se no tempo” [1999, P.257].

Para Feral [2001] são de fundamental importância as áreas de pesquisa que formulam questões que necessariamente necessitam de uma abordagem conjunta de prática e teoria para se resolverem, como é o caso de temas como energia do ator, a presença, o corpo, a voz e a sua relação com o texto. Um bom exemplo disso é a pesquisa realizada por Graziela Rodrigues [1999], que resultou no livro “Bailarino-pesquisador-intérprete: processo de formação”.

O título de sua pesquisa já é exemplar, pois por si só congrega as dimensões do fazer profissional e da pesquisa, valorizando a dimensão processual e interdisciplinar, já que além de ter formação como bailarina Graziela Rodrigues tem experiência também com o teatro. Segundo a autora, o termo intérprete refere-se também à sua busca por um corpo que seja sujeito da dança e não seu objeto, como acontece nos processos tradicionais da dança.

O mais interessante, no entanto, é perceber em algumas de suas falas como é praticamente impossível dissociar a dimensão teórica da prática, pois ela situa justamente o seu próprio corpo como elemento central de seu discurso, como por exemplo: “A pesquisa que venho desenvolvendo tem se caracterizado por uma construção do bailarino-pesquisador-intérprete. Trata-se de um processo que se instaurou em meu próprio corpo. [...] Em meu corpo permanecia uma necessidade vital de obter uma resposta contundente da dança” [RODRIGUES, 1999, P.105].

Por último é importante ressaltar que, a maioria dos ramos do conhecimento científico tem a universidade com único pólo de realização de pesquisa e produção de conhecimento; no caso das artes e, mais especificamente, das artes cênicas, existem outras instâncias de pesquisas como os grupos de teatro e os criadores individuais. A diferença é que muitos destes não realizam uma sistematização de seus trabalhos. Esta realidade começa a mudar com o fortalecimento dos cursos de artes cênicas e a constante aproximação dos mesmos com a comunidade em que estão inseridos, fazendo com que estes pesquisadores e grupos migrem para dentro da universidade ou passem a valorizar mais o processo de sistematização de suas pesquisas.

Referências Bibliográficas

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Notas:

[1] Doutorando no programas de pós-graduação em artes do Instituto de Artes da UNICAMP [Universidade Estadual de Campinas].

 

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