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Resumo:
O artigo apresenta algumas considerações sobre a presença do grotesco
na produção artística contemporânea. Os autores sustentam que estas
características não devem ser abordadas como estratégias ou recursos
que visam unicamente o escândalo e a atenção publicitária, mas como
manifestações coetâneas com outras práticas da vida contemporânea e
que se singularizam pela reflexão crítica a que submetem o público. Palavras
chave: Grotesco, arte contemporânea,
teoria e crítica da arte; Abstract:
This article presents some considerations about the presence of
the grotesque in contemporary artistic production.
The authors argue that these characteristics should not be addressed
as strategies or resources aimed solely to the scandal and publicity
attention, but as events connected to the practices of contemporary
life, with a singular appeal by the way they presents to the public
a critical reflection. Keywords:
Grotesque, contemporary art,
theory and criticism of art; A criação
de imagens de seres disformes ou monstruosos é tão antiga quanto de
seres idealizados em sua beleza. Não é, portanto, motivo de surpresa
a capacidade humana para gerar imagens antagônicas, pois, a diversificação
dos meios de comunicação e a ampliação de seu alcance, bem como de sua
velocidade no mundo contemporâneo, naturalmente ampliam a capacidade
da veiculação de imagens paradoxais. Os mesmos
meios que mostram imagens de massacres humanitários na África, de crianças
ensangüentadas na Palestina, de prisioneiros torturados Se algumas
destas imagens nos provocam repulsa e asco, ou mesmo compaixão, outras
nos confortam, seduzem e entorpecem de prazer. Na vida contemporânea
transitamos constantemente entre as oposições, de tal forma e com tal
fluxo que se borram as próprias fronteiras de significações tradicionais.
Assim como as tatuagens e piercings indicam muito mais que promiscuidade
ou criminalidade relacionadas com a vida portuária ou prisional, na
arte contemporânea a presença do sexo explícito e da violência não mais
podem ser reduzidos aos significados pornográficos e pandemônicos. A convivência
entre o belo e o feio, o prazer e o asqueroso, o harmonioso e o disforme
e tantas outras oposições pode ser considerada uma das características
do grotesco. No projeto Imagética Grotesca [4] buscamos mapear algumas destas
presenças na produção artística atual entendendo sua manifestação como
coetânea com outras práticas da sociedade ocidental. A seguir apresentaremos
alguns trabalhos de artistas das artes visuais e cênicas, que nos possibilitam
refletir sobre estes aspectos do “grotesco”, enfocando especialmente
o corpo como um elemento central destas provocações estéticas. O corpo e o gesto grotesco De acordo
com a obra “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento”, de
Mikhail Bakhtin (1993) em que a categoria estética grotesca é abordada
no contexto da obra literária de François Rabelais, a imagem corporal
grotesca apresenta tanto o exterior do corpo quanto o seu interior,
exibindo o sangue, as entranhas, o coração, e outras partes internas.
No período Renascentista podemos perceber um espelhamento na medicina
para se refletir todo um quadro mundial de idéias e concepções. O autor
nos lembra que o escritor Rabelais, em 1537, dissecou publicamente o
cadáver de um enforcado, apresentando sobre o mesmo algumas explicações
orais. Dessa forma, a medicina influenciou poderosamente a arte, a filosofia
e também a literatura, tendo como uma das principais vertentes a Antologia
de Hipócrates, que por sua vez beneficiou a concepção grotesca do corpo.
A exposição
“Body Worlds” (Mundos Corporais) de Gunther von Hagens, ocorrida em
1996, também foi inspirada nos estudos anatômicos do período renascentista
em que a dissecação de cadáveres era realizada em público, diferentemente
dos procedimentos privados dos dias atuais. Os ateliês de Hagens são
Hospitais e Universidades. O médico alemão apropria-se de cadáveres
de humanos e animais transformando-os em objetos esculturais através
de uma técnica criada por ele, a “plastinização” (desenvolvida entre
Apelidado
de “Dr. Morte”, Hagens é questionado quanto à ética e a legalidade de
suas atividades, e é também acusado de banalizar as noções de corpo
e morte. Seus corpos grotescos são colocados em posturas incomuns às
tradicionais imagens culturais de um cadáver, gerando inquietação no
expectador. É acusado pela promotoria da Baviera de comprar cadáveres
na Rússia e de usar corpos executados na China. Assim, o terrorífico de Hagens está na própria beleza, no excesso de assepsia, de idealização, de perfeição da morte. O corpo apresentado por Hagens inicialmente parece fugir à regra de que o corpo na arte contemporânea se faz unicamente na monstruosidade da dor. Neles, a dor se desconfigura na beleza dos cadáveres. Porém, é também verdade que suas plastinizações nos causam profunda estranheza tanto quanto os corpos dilacerados de Andrés Serrano, por exemplo. [...] Estaria Hagens nos salvando do mal-estar do cadáver? O cadáver é o abjeto, o reverso do espiritual, do simbólico, da lei divina. A arte do cadáver também é um abjeto? Enterrar é uma forma de purificar os cadáveres, porém Hagens faz com eles o sacrifício moderno da purificação quando os submete à plastinização. (KONESKI: 2007, 168-177) Para Bakhtin,
o corpo grotesco é um corpo em movimento, inacabado, em estado de criação,
um corpo que absorve o mundo e é absorvido por ele. Os atos comer e
beber são manifestações importantes neste sentido, e características
presentes na obra da artista performática Orlan, mais conhecida por
sua “Reincarnation of. St. Orlan” (Reencarnação de St. Orlan - 1990),
na qual se submete a nove cirurgias plásticas performáticas que são
realizadas com interferência de música, literatura e dança. Assim como
Hagens, Orlan tem como ateliê uma sala de cirurgia, porém, a matéria
a ser trabalhada como objeto artístico é seu próprio corpo. Os registros
em fotos e vídeos, além das sobras corporais de cirurgias, são expostos
em galerias de arte. A artista disponibilizou a transmissão das filmagens
em via satélite para grande parte do mundo, e doou seu corpo à arte
enquanto vida e também pretende fazê-lo após a morte, através da mumificação,
tornando-o peça de maior importância de todos os seus trabalhos. Orlan
esculpe a própria carne dando-lhe formas de personagens femininas da
história da arte e da mitologia: o nariz da escultura de Diana, o queixo
da Vênus de Botticelli, os olhos da Psyché de Gerome, a boca da Europa
de Boucher e a testa da Mona Lisa de Leonardo da Vinci, figuras que
foram escolhidas pelo valor histórico e mitológico ocidental. Orlan
cria em seu corpo uma personagem híbrida que não é um exemplo de beleza
e juventude, o objetivo comum de uma cirurgia plástica. Em sua metamorfose
corporal e artística, ela mescla o barroco, o grotesco e o kitsch.
Não denomina suas manifestações de “body Art”, mas sim “Carnal Art”,
e diz não ser contra as cirurgias estéticas, porém, critica a padrões
de belezas dominantes numa cultura em que impera a ideologia do corpo
perfeito e acabado. Contrariando
todo esforço social de dar ordem ao caos e de repreender desejos e impulsos,
encontram-se as performances do artista austríaco Herman Nitsch, que
pertenceu ao grupo vienense: Action
(Ação). Suas performances são baseadas em ritos dionisíacos e cristãos
numa tentativa de alcançar a “catarse” através do medo, do terror e
da compaixão. As cerimônias, que duram horas são para ele pinturas em
ação inspiradas no futurista Carrà que dizia: “assim como fazem os bêbados
ao cantar e vomitar, vocês devem pintar sons, ruídos e odores” (CARRÀ
apud Goldberg: 2006, 153). A sonoridade ensurdecedora de suas obras
busca provocar o êxtase de seus participantes. Ele sacrifica animais
que são pendurados de cabeça para baixo, crucificados, estripados e
seu sangue lançado em corpos humanos nus. Em “Das Orgien Mysterien Theater”,
(Teatro das Orgias e Mistérios - 1998), realizada ao ar livre, performers
pisoteiam tomates e carnes dentro de grandes recipientes. Embaixo de
um animal crucificado e estripado, um casal pratica sexo explícito em
meio às entranhas e sangue. Para Nitsch, a mídia teria reprimido os
instintos agressivos da humanidade, extinguindo até mesmo o ato de matar
animais, tão comum ao homem primitivo. Acredita que suas performances
podem sensibilizar uma sociedade anestesiada. Assim sendo, por meio
do sofrimento, um ser pode se purificar e se libertar dessa energia
reprimida. Nitsch comenta ainda que “as pessoas ficam divididas entre
o riso e o medo diante da brutalidade dos golpes [...] ao mesmo tempo
o instante revela um aspecto brutal que as perturba” (ALVARENGA, L.T.;
FASSHEBER, V.B.; SILVA, A.N.; SOUZA, R.C.M: 2007). O estranhamento
da arte de Herman Nitsch , ao mesmo tempo em que repugna e espanta,
fascina, paradoxalmente. Para Kayser (1986), o “grotesco” seria uma
estrutura de um mundo alheio, que transforma o familiar em algo estranho,
absurdo e sinistro, causando horror num mundo inseguro e impossível
de ser habitado, onde viver é angustiante. O responsável pelo estranhamento
seria o abismo, no qual a moral é destroçada. Encara-se o obscuro e
o sinistro falando do inconcebível, assim, como nos auto-retratos do
espanhol David Nebreda, que realiza práticas corporais de automutilação
disciplinadoras e imperativas resultando em imagens e textos autobiográficos.
Sua câmera fotográfica capta danos corporais de ações sobre a própria
carne exibindo sua dor, seu sangue, seus excrementos e feridas. Neste
contexto, o autor é a própria matéria prima, experimentando seu tronco
com cortes, rasgos, queimaduras de cigarro. Seus retratos nos mostram
suas chagas e ferimentos em carne viva, também uma espécie de natureza
morta à base de objetos de tortura, tais como uma torradeira, cigarros
queimados, álcool, lâminas ensangüentadas e outros estranhos materiais.
As indagações sobre suas experiências são frustrantes e sem respostas
(ver Figura 1). Nebreda vive em isolamento em sua casa de Madrid, é
diagnosticado pelos médicos como esquizofrênico. Figura
1: David Nebreda: “Cara coberta de merda” “Nebreda
consegue negar-se absolutamente e expressar esta auto-negação como obra
de arte", escreve o filósofo francês Jean Baudrillard (JONES: 2005).
Cabe incluir neste momento, o conceito de ”abjeto” de Júlia Kristeva,
que enfatiza o seu caráter transgressor, em que o “abjeto” não assume
e nem abandona proibições, regras e leis, porém, altera, desvia e corrompe,
perturbando a ordem e a identidade, nos aproximando da animalidade.
São suportes “abjetos” a pele e os dejetos do corpo. A estética do “abjeto”
fascina e inquieta o desejo ao mesmo tempo em que causa repulsa. É a
manifestação da ausência de limites, o abalo, o inonimável. O “abjeto”
origina-se de um recalque originário, anterior ao surgimento do eu.
É a manifestação do que há de mais primitivo em nosso psíquico. Privilegia
o cadáver, um corpo enquanto matéria sem alma, atirando-o ao campo caótico
e pré-simbólico da natureza. O “abjeto” nos amedronta revelando a falta
como característica fundadora do ser. Mais reconhecida
por suas fotografias, Cindy Sherman explora o auto-retrato ficcional,
filmes, vídeos e esculturas híbridas. Em muitas das suas obras ela é
o seu próprio modelo, na qual se transfigurou de muitas maneiras. Problematizou
o conceito de auto-retrato e questionou a construção dos estereótipos
femininos na cultura contemporânea através da encenação de diversos
papéis do gênero, por meio de performances registradas em fotografias
e veiculadas também pelo cinema e televisão. Também, a artista representa
e auto-representa a identidade feminina a fim de questioná-la. Utiliza-se
muitas vezes de manequins fragmentados e remontados numa nova anatomia
criando seres bizarros de expressões sinistras como se emergissem de
um abismo, muitas vezes em situações até mesmo pornográficas. Para Kayser
(2003), o manequim, as bonecas, as marionetes, os corpos enrijecidos,
as máscaras e os rostos cobertos por larvas fazem parte do universo
do “grotesco”. Além disso, para ele, o elemento mecânico cria vida e
o elemento humano a perde. A demência e a loucura transformam o homem
em algo sinistro e inumano. Pode-se notar esse universo perverso nas
obras da artista Cindy Sherman. Sangue, lágrimas, vômito, excremento - todos os detritos do corpo que são separados e colocados com terror e repugnância (predominante, embora não exclusivamente) ao lado do feminino - estão ali embaixo, naquela caverna de abjeção [...] a literalização da relação metafórica entre o feminino e a abjeção do corpo nas fotografias de matéria putrefata e vômito de Cindy Sherman, explicita o que está meramente implícito nas primeiras fotografias de moda, fotos de filmes e mascaradas históricas: a semelhança estranha, não idêntica, entre o feminino e o grotesco. (RUSSO, 2000, p. 14) Os irmãos
britânicos Dinos e Jake Chapman aproximam a arte da ciência através
de esculturas de resina sintética que recriam seres híbridos, sexualmente
polimórficos. Aniquilam e recombinam corpos além de reconceituar a natureza
e o ser humano. De maneira provocante, os irmãos constroem manequins
infantis (principalmente) e adultos unindo corpos como os de anomalias
genéticas. Assim, ânus, vaginas, pênis eretos, substituem o nariz, colocando-os
em posições pornográficas que insinuam o ato sexual. Raramente os órgãos
sexuais encontram-se nos devidos lugares. Para Bakhtin (1993), os exageros
e hipérboles são alguns dos sinais mais marcantes nas imagens do corpo
e vida corporal grotesca. Esse corpo em metamorfose cria outros corpos
e quase sempre os engole. O ventre e o falo são umas das prediletas
hipérboles grotescas, podendo até mesmo possuir vida independente do
restante do corpo. Em 2003, os irmãos adquiriram por 25 mil libras
80 gravuras de ”Desastres de A obra
dos irmãos Chapman é caracterizada por uma forte irreverência e grande
ceticismo mesclando referências que vão das teorias psicanalíticas à
história da cultura popular. Seus trabalhos não poupam críticas à moralidade
cristã nem ao racionalismo iluminista e paradoxalmente tampouco ao consumismo
contemporâneo. Nas formas que utilizam para representar a sexualidade
infantil, os Chapman condenam a falsa moralidade ocidental e o crescimento
da prostituição infantil nas principais capitais mundiais e na internet.
Já a artista
Marina Abramovic desafia os limites do corpo e da mente com rituais
de violência de maneira calculada. Um exemplo é a performance realizada
em Belgrado em 1974, intitulada “Ritmo Para Abramovic,
a dor não é importante. Ela explora o medo que sentimos da dor, e a
sensação de estarmos próximos da morte, no intuito de provocar o público.
Em suas performances, pretende refletir no público esse instante de
autonomia, não ao acaso ou de uma forma banal, ou por puro entretenimento
e diversão, mas com uma perspectiva de elevação espiritual, por um caminho
desconfortável, infernal, tanto para o artista, quanto para o expectador.
Nascida na ex-Iuguslávia, voltou-se recentemente às questões territoriais
e conflitos da história de sua terra natal. Surge daí os sete vídeos
“Balkan Erotic Epic” (Épico Erótico Bálcã), em que a artista recorre
aos rituais dos séculos XIV e XIX, retirados de manuscritos, encenando-os
junto a uma equipe de não-atores do próprio local. Os rituais invocam
o poder de cura intervindo na natureza, através da comunicação com poderes
divinos, utilizando-se dos órgãos sexuais como ferramenta para alcançar
diversos objetivos, atraindo assim, a cura e acabando com os males.
Homens com trajes tradicionais exibem seus pênis enfileirados, enquanto
uma mulher canta. Abramovic desassocia o pênis do ato sexual, da violência
ou da guerra dando-lhe novos significados como ternura e amor. Em outro
momento, copulam com a terra, numa agradável fotografia. Para Kayser,
(2003) o “grotesco” também pode ser tratado com júbilo, como as pilastras
papais no Palácio do Vaticano, realizadas por Rafael. Também mulheres
massageiam os seios contemplando o céu, ou debaixo da chuva exibem suas
vaginas para a terra a fim de parar a tempestade que alagaria toda uma
plantação. Abramovic deixa explícito nos vídeos os falos e vaginas.
Sua proposta performática possui a intenção de distinguir a pornografia
de uma revista e filme e estimular outro tipo de reflexão sobre da sexualidade.
Para a artista, deveríamos voltar-nos a rituais antigos e redescobrir
os poderes dos órgãos sexuais e do erotismo. Bakhtin
(1993) também afirma sobre o corpo grotesco, que este é cósmico e universal
e se mistura com diversos fenômenos da natureza: montanhas, rios, mares,
ilhas e continentes, podendo até mesmo encher todo o universo. O corpo
grotesco, para ele, não põe fim a nada de essencial e renova-se nas
gerações futuras, diferente do corpo visto pela modernidade, completamente
pronto, num mundo exterior todo acabado separado por fronteiras nada
enfraquecidas, que fala por si, onde a morte jamais coincide com o nascimento.
Também, para ele, as calamidades naturais e as pestes do séc. XIV despertaram
no homem o velho terror cósmico. Através da assimilação dos elementos
cósmicos nos elementos do corpo, o período renascentista encontra sua
expressão teórica na idéia do microcosmo. O cataclismo cósmico, descrito
com imagens do baixo material é rebaixado, humanizado e transformado
em alegre espantalho, vencendo o terror através do riso. O corpo toma
uma escala cósmica, enquanto o cosmo se corporifica. O universo
grotesco, para Kayser (1986), possui uma perspectiva de um olhar frio
e sonhador, como num teatro de marionetes. Surge daí duas espécies de
grotescos: o fantástico (onírico) e o satírico (máscaras). O ridículo
surge da vertente satírica, onde o estranho riso é abridor de abismos.
Também o cômico e a caricatura acompanhados de gargalhadas demoníacas,
de cinismo e amargura. A artista
argentina Nicola Constantino utiliza-se da resina de poliéster e silicone
como matéria prima para seus diversos objetos e vestuários de moda.
Confecciona vestidos e peças femininas, jaquetas, bolsas, carteiras,
sapatos, com silicone que imitam a pele humana formada por orifícios
e relevos: ânus, mamilos, umbigo, vagina, de forma ornamental e decorativa.
Talvez, sua obra mais impressionante seja uma bola de futebol com delicados
e rosados mamilos. A moda consumista e o corpo sedutor são temas decorrentes
em sua obra. Embalsama e mumifica animais, criando estranhos objetos
e bolas emaranhadas dos mesmos, utilizando principalmente o porco, o
bezerro e a galinha. Já o americano
performático Paul McCarthy explora imagens ambíguas da cultura ocidental,
especificamente as de Hollywood. Inspira-se na cultura consumista americana
e em seu condicionamento, criando mutações e deformações para dar forma
a sua manifestação artística. O efeito psíquico causado por suas obras
pode ser considerado contraditório, onde aparece um sorriso e asco diante
do deformado e horroroso, resultando em angústia como se o mundo estivesse
fora do eixo, por exemplo, na performance do Papai Noel com o pênis
para fora da roupa, ou o mesmo personagem feito de chocolate segurando
um objeto fálico intitulado "Santa with butt plug" (Papai
Noel com consolo anal) e que se assemelha a uma árvore de natal, porém
sem a estrela. Suas temáticas variam entre culpa, sexo, repressão, excremento,
medo, castração, parto entre outros tabus sociais de caráter grotesco.
Em “Cultural Gothic” (Gótico Cultural - 1992/93), instalação, um pai
ensina o filho a se relacionar sexualmente com uma cabra. Geralmente,
utiliza em suas performances produtos alimentícios e materiais viscosos,
por exemplo, mergulhando um cobertor em tinta a óleo, fazendo-o girar
através de um motor, golpeando-o nas paredes. Em “Sailor’s Meat” (Carne
de Marinheiro – 1975), veste-se lingerie feminina e simula agressões
sexuais num colchão com um amontoado de carne crua. Grande parte de
sua obra, segundo o artista, diz respeito ao início da inocência da
cultura. Em “Hot Dog”, de 1974, simula uma castração em meio a molhos
utilizados em cachorro quente e entope sua boca com salsichas, que mais
parece um vômito de tripas. Já no cenário
artístico contemporâneo brasileiro destaca-se em obras grotescas Adriana
Varejão. A artista carioca inspira-se no período colonial brasileiro,
nos botequins cariocas e banheiros públicos europeus. Investiga em sua
obra, a utilização do corpo humano, da representação da carne e vísceras
como elementos estéticos. Remete ao período Barroco através do acúmulo
de diversos materiais, camadas de tintas e informações. Suas primeiras
obras, pinturas ovais, rasgadas como ferimentos retratam cenas de um
Brasil colonial de exuberante paisagem tropical com padres, negros,
índios e soldados imperiais em situações diversas como torturas, sexo
explícito e outros tipos de violência. Faz uso de azulejos portugueses,
“rasgando-os” e “recheando-os” organicamente, simulando organismos viscerais
a fim de criticar o comportamento selvagem dos colonizadores no Brasil. A carioca
Márcia X transitou entre a escultura, instalação, vídeo-arte e performance.
Enfrentou diversas críticas, cortes em exposições, cancelamentos de
performances e censuras. Dentre o período de 1990 até 2005 desenvolveu
a série “Fábrica Fallus” e em 2005 os “Kaminhas Sutrinhas”, em que transformou
brinquedos infantis em objetos pornográficos, instalando-os no chão
do museu, fazendo com que o expectador se agachasse numa espécie de
atitude infantil para contemplá-los. Trinta camas de brinquedo, miniaturas,
são ocupadas por duplas, ou trios de bonecos sem cabeças e sem roupas.
Fabricados originalmente com o objetivo de engatinharem, os bonecos
intrincados uns aos outros movem mecanicamente partes do corpo quando
o público aciona um pedal que dispara a música “It's a small world”
tema da Disneylândia. O resultado
é uma cacofonia de sons, enquanto todos os bonecos movimentam-se violentamente
contrastando com a delicadeza dos bordados de motivos infantis das colchas
das “Kaminhas”. Na performance-instalação
“Ação de Graças” (2001 – ver Figura 2) galos depenados, mortos, coroados,
e cravejados de pérolas, são calçados por Márcia X como singelas pantufas.
A artista, vestida de camisola branca, permanece deitada no gramado
natural de uma sala. As coroas dos galos estão ligadas por um fio dourado
na parede. A performance termina ao levantar, molhar os pés num líquido
branco viscoso de uma bacia e depois despejá-lo sobre os galos. A artista
faz uso de roupas que invocam freiras, noivas, estudantes, enfermeiras,
frutos de obsessões culturalmente associadas às mulheres, além de características
da religiosidade brasileira. Repete exaustivamente, em suas performances,
ações como encher copos com mingau, lavar terços, despejar leite condensado
na cabeça. Também, não pode deixar passar em branco a polêmica obra
“Desenhando com terços” (2000/2003), em que a artista apropria-se de
centenas de terços católicos no chão do espaço expositivo e desenha
com estes formatos de pênis. Sob pedido da sociedade católica Opus Christi, a obra foi retirada do CCBB
(Centro Cultural Banco do Brasil) e censurada no ano de 2006, após sua
morte em 2005. Violência
e sexo na representação televisiva e teatral Nas artes
cênicas e na televisão temos exemplos variados de imagens do grotesco,
veiculadas com finalidades e resultados bastante distintos. Neste sentido,
podemos pensar como meios de disseminação da arte tanto as linguagens
artísticas em si (artes visuais, literatura, dança, música, teatro,
etc) quanto à televisão, que não constitui propriamente uma forma artística,
mas um veículo de obras ditas artísticas como a telenovela, e tantas
outras [5].
Tanto nas obras artísticas teatrais quanto nas obras televisivas podemos
perceber um uso constante de elementos grotescos, como personagens caricaturais,
violência, exposição do corpo nu, exploração de cenas de sexo, entre
outros. O “grotesco” parece, portanto, uma estética recorrente em ambos
os meios: os meios diretos de recepção de obras, como a vivência ao
vivo de um espetáculo ou a reação diante de uma pintura, e os meios
indiretos, como a interação com uma obra cinematográfica ou televisiva.
Parece importante notar, no entanto, que no meio televisivo as obras
veiculadas não são todas de caráter artístico, numa programação que
alterna jornalismo, propaganda, folhetins, programas de entretenimento,
reality shows entre outras atrações. Assim,
a veiculação do “grotesco” nos programas de televisão pode estar difundida
em níveis diversos, ainda que se faça uso de recursos artísticos que
servem para conferir maior verossimilhança e empatia às suas atrações.
Segundo Márcia Pimentel, num artigo que analisa as dimensões de “grotesco”
e “melodrama” na programação televisiva: [...]
parece existir, hoje, um razoável consenso de que ‘reality shows’ como
o ‘Big Brother’ e a ‘Casa dos Artistas’ pautam-se sobre os mesmos princípios
das telenovelas. Isso significa constatar que atores (sujeitos) são
transformados em personagens (objetos) de uma construção melodramática
que se confunde com o real. Tal constatação nos dá o indicativo do quanto
o melodrama pode se prestar ao embaralhamento das categorias ‘ator’
e ‘personagem’, ‘sujeito’ e ‘objeto’, ‘realidade’ e ‘ficção’. [PIMENTEL:
2005] O uso destes
elementos, “grotesco” e “melodrama”, pode ser observado também como
traços de programas de jornalismo que ampliam o impacto de fatos, por
vezes não tão fortes, e muitas vezes se apropriam de grandes catástrofes,
escândalos ou cenas de “pancadaria” do cotidiano para atrair maior atenção,
exibindo-as massivamente ao som de músicas de grande apelo, e comentadas
por uma narrativa que acentua o caráter dramático dos fatos. Podemos
também perceber uma ampla veiculação de cenas escatológicas e vexatórias
no telejornalismo espetacularizado e em programas de auditório. Para
Sodré (1973) os valores éticos na TV são postos de lado em favor dos
programas que abusam das emoções baratas na tentativa de atrair mais
público. O uso de
violência nas artes cênicas constitui um lugar de desarmonia, em contraponto
a determinados padrões de beleza clássica. A dança, nesse sentido, vivenciou
no século XX um forte trânsito de desapego destes padrões. Movimentos
como a dança-teatro de Pina Bausch trouxeram outras
perspectivas para esta linguagem, que passa a criar desarmonias, dissonâncias
e deformidades a partir do diálogo com o teatro, o vídeo e outras linguagens,
rompendo cada vez mais com a supremacia do ballet
clássico. Em “Violência”
(2002), espetáculo da Cia. de Dança Cena 11, de Florianópolis, umas
das mais conceituadas companhias do Brasil, a deformação corporal e
a auto-violação parecem ferramentas de uma busca por uma ruptura dos
padrões da “bela dança”, trabalho que já começava a se desenvolver nos
espetáculos anteriores da companhia. Nesta montagem, criaturas aberrantes
sobre pernas de pau se desfazem a partir de violentas quedas, colapsos
na parede de acrílico que divide platéia e espetáculo, mandíbulas deformadas
por dilatadores cirúrgicos, maquiagem forte, entre outros elementos
parecem desenhar um corpo grotesco, que utiliza situações de violência
para falar do próprio ato de violência. Estes dispositivos parecem gerar
um impacto significativo na recepção, fragilizando os corpos diante
da platéia, e expondo criaturas grotescas que dançam atos de violação
(ver figura 3). Figura
3: Espetáculo da Cia. Cena 11 “Pequenas Frestas de Ficção sobre Realidade
Insistente” Também
o teatro, em meio às renovações do século XX, estabeleceu diálogos fortes
com outras mídias. No entanto, esta linguagem parece mais diretamente
apropriada de elementos grotescos, uma vez que seu uso sempre esteve
presente nas formas teatrais ao longo dos séculos. Uma influência que
parece marcante no teatro do século XX é a de formas vindas dos “happenings”
e “performances” que, como se viu acima, tem criado no perfil dos espetáculos
contemporâneos traços híbridos em sua representação, apropriando-se
de elementos como: a figuras dos não-atores,
isto é, dos performers, incitando
um lugar mais próximo do cotidiano na representação, buscando a dissolução
dos limites ficção/representação; atos de violência, como estratégia
de impacto e de uma recepção menos cômoda por parte da platéia; e distintas
formas posicionamento de platéia, possibilitando novos diálogos entre
cena e espectador. Estas buscas
de uma dissolução entre o limite espetáculo/espectador, e o uso dos
atos de violência parecem ser a tônica do trabalho do grupo catalão
Com estas
deformidades dramáticas, o grupo propõe uma discussão sobre a violência
na sociedade contemporânea, inserindo o público em jogos de riscos bastante
marcantes, sendo o público muitas vezes o protagonista de determinadas
cenas, participando ativamente da representação. Em 2007, com o espetáculo
“Imperium” o grupo discute a violência do neo-imperialismo, determinando
a uma parte do público que assuma papéis nas cenas, provocando-os para
a exploração cênica de aspectos de sua integridade física e psíquica.
Nas últimas cenas deste mesmo espetáculo, o público vivencia “sacrifício”
de uma figura imperialista em momento que sugere uma forte violência
psíquica.
Em 2003 o
grupo realiza “XXX - Só para Adultos” (ver Figura 4), espetáculo que explorava
cenas de sexo explícito, inspirado Sade
incita à simulação sexual do prazer, o que leva as pessoas a pensar
em Sade como um escritor erótico, mas ele não o é verdadeiramente. A
sua obra recorre a elementos eróticos, sim, mas como um meio, não como
uma finalidade. O que mais conservamos de Sade é esse confronto com
as normas através de um erotismo forte, da sensualidade, do prazer táctil
(CARRASCO: 2003). Figura 4: Espetáculo do La fura Dels Baus “XXX – Só para Adultos” Lugares Comuns, Lugares Distintos O grotesco
como elemento presente na maioria das vanguardas início do século XX,
da literatura às artes visuais, é comumente associado ao exagero, ao
satírico e fantástico (NASPOLINI: 2006, p.49). Mas, como podemos perceber,
foi ganhando, aos poucos, outros tipos de veiculação e outros usos na
televisão, que de forma melodramática o explora com uma finalidade que
serve pouco ao distanciamento e a reflexão, ao contrário do que podemos
perceber nestes exemplos teatrais mencionados, e em alguns outros como
os do Grupo Oficina (SP),
Teatro da Vertigem (SP), Ói Nóis Aqui Traveiz (RS), Erro Grupo (SC) e Grupo E(x)periência Subterrânea (SC). Na TV,
anões que apanham em programas de auditório, mulheres expondo seus atributos
corporais em gincanas eróticas, a violência no telejornalismo dramatizado,
entre outros elementos, evidenciam uma multiplicidade de usos de situações
grotescas, o que, no entanto, não se configuram propriamente como uma
estética grotesca. A utilização do grotesco pode se dar tanto com a
finalidade de entretenimento quanto com um foco crítico. Na cultura
de massa, a parte cognitiva (a informação do tipo jornalístico, por
exemplo) e a estética (os espetáculos, as diversões destinadas a provocar
a evasão onírica do consumidor) costumam situar-se em níveis muito superficiais
com relação à cultura elevada – daí o menosprezo das elites pelos produtos
culturais de massa [SODRÉ: 1973]. A manifestação
de formas aberrantes e escatológicas pode ganhar usos variados, o que
propõe lugares éticos e estéticos bastante distintos: um que propõe
um riso despretensioso e outro que estabelece a possibilidade de uma
maior reflexão e crítica. O “grotesco” pode ser, portanto, parte de
uma estratégia de picardia ou, por outro lado, de obras que buscam uma
nova reflexão sobre uma sociedade em que a violência e o sexo são questões
cujas rédeas parecem escapar cada vez mais ao controle. O corpo
em estado de risco é uma das ferramentas que podemos perceber no trabalho
dos artistas citados nas artes visuais em cênicas, provocando uma recepção
que busca ir além da esfera do chamariz ou do mero atrativo. A partir
destes estados de risco, e da convivência de valores bastante controversos
em suas obras, a reflexão sobre a própria condição do corpo e de suas
relações com violência e sexo estabelece novos olhares sobre o “grotesco”
na arte contemporânea. Referência
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Notas:
[1]
Doutor [2]
Graduado [3]
Graduanda em Bacharelado [4]
Projeto de Pesquisa [PROBIC/UDESC] no qual se desenvolve um mapeamento
da presença de violência e sexo na produção contemporânea de artes
visuais e artes cênicas. [5]
Aqui nos referimos exclusivamente às obras produzidas para a televisão,
não considerando a transmissão de espetáculos de dança, por exemplo,
nem mesmo a reprodução de filmes realizados para cinema, uma vez que
ao serem exibidos em outro meio alteram-se características primordiais
de suas linguagens.
OBS: Os textos publicados na Revista Art& só podem ser reproduzidos com autorização POR ESCRITO dos editores. |