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A FONTE COMO PARADOXO
Autor: Atila Ribeiro Regiani [1] (atila@pop.com.br)

Resumo: Este ensaio analisa a Fonte [2] como um paradoxo, pois a considera um signo sem significado. Sendo assim, não serão analisados nem seu significado duplo (o de urinol e o de obra de arte), nem seu significado múltiplo (uma possibilidade constante de agregar valores sobre o corpo). A análise se debruçará sobre o movimento que gera essa ausência de significação, não o percurso que transforma o corpo, mas o movimento que o corpo faz para se tornar corpo.

Palavras Chave: Fonte, readymade, paradoxo, xadrez, notação

Abstract: This paper analyses the Fountain as a paradox, as we consider it as a sign without a signification. Like this, nor its double mean (of vessel or piece of art) neither its multiple mean (a constant possibility of aggregating values about the body) will be analyzed. The analysis will be directed to the movement that creates this absence of signification, not the passage that transforms the body, but the movement of the body to become body.

Keys word: Fountain, readymade, paradox, chess.

A Fonte é um paradoxo pela significação atípica que processa, uma significação auto-destrutiva, que anula o signo. Contudo, a anulação do signo se dá por uma anulação anterior, a do significante pelo significado. Dessa forma, desenhando uma operação de existência efêmera, que se manifesta a partir de uma origem e desintegra-a, consequentemente se anulando. É o filho que mata sua mãe enquanto esta ainda o gesta.

A operação de auto-anulação do signo pode ser entendida a partir da expressão matemática frequentemente usada para se entender o que é um signo: Signo = Se + So [3]. Sabendo que o significante e o significado estabelecem entre si uma relação de semelhança, de proximidade, um se refere ao outro e de forma alguma são iguais. Podendo existir vários significados para um signo com apenas um significante, como observa Roland Barthes. 

“podemos considerar que cada sistema de significantes (léxicos) corresponde, no plano dos significados, um corpo de práticas e técnicas; esses corpos de significados implicam, por parte dos consumidores de sistema (isto é, “leitores”), diferentes saberes (segundo as diferenças de “cultura”), o que explica uma mesma lexia (ou grande unidade de leitura) possa ser diferentemente decifrada segundo indivíduos, sem deixar de pertencer a certa ”língua”; vários léxicos – e, portanto vários corpos de significados – podem coexistir num mesmo indivíduo, determinando, em cada um, leituras mais ou menos “profundas”. [4]

Sendo assim, a distância aparentemente ínfima entre o significante e o significado é grande o suficiente para que se crie distorções e ramificações. O paradoxo se instaura nesse intervalo, propondo que o ponto de onde se partiu não existe. Ou seja, o significado passa a ser a negação do significante (So = - Se), o que nos leva a expressão: Signo = Se + (-Se) ou Signo = Se -Se. Um exemplo dessa operação pode ser observado na pintura Ceci N'est Pas Une Pipe de René Magritte (1928 – 29).

A Fonte pratica essa operação de des-siginificação. Porém, sendo um signo sem significado pode-se cair no erro de confundi-la com um curinga. A carta do jogo de baralho que não possui um significado a princípio, mas que se significa de acordo com o contexto que se encontra, tornando-se o signo que falta em uma seqüência. Diferente do curinga, a Fonte não adquire um novo significado de acordo com o contexto, pois ela só se afirma como não possuidora de significado se já tiver englobado o contexto em seu sistema. O contexto é parte da Fonte e não pode re-siginificá-la. Se a Fonte fosse comparada a um curinga só poderia ser comparada a um baralho de curingas, onde não há marcos para a significação dentro do jogo.

A Fonte, bem mais que um signo sem significado, diz sobre um movimento, há um deslocamento que a torna sem significado. Um urinol só é Fonte pela existência anterior de um gesto. Um gesto similar ao que ocorre no jogo de xadrez, a chegada do peão a oitava casa [5]. Um deslocamento que gera um signo sem significado, o peão pode se tornar qualquer peça, contudo no momento de seu deslocamento passa por este instante de completa a-significação. Não é nada, apenas possibilidade de tudo. A Fonte é a suspensão desse instante. Mas, a obra não é o objeto, como Duchamp já havia anunciado, ou mesmo quando compara sua prática artística com o xadrez:

uma partida de xadrez é uma coisa visual e plástica e, se não é geométrica no sentido estático da palavra, é um mecanismo por que as peças se movimentam. As peças não são mais belas do que a forma do jogo, mas o que é belo – se é que a palavra 'belo' pode ser empregada – é o movimento. Então, há uma mecânica, no sentido, por exemplo de um Calder. Existem certamente, no jogo de xadrez, coisas extremamente belas no domínio do movimento, mas não no domínio do visual. É a imaginação do movimento e do gesto que, nesse caso, faz a beleza.[6]

Mas, se a obra é o gesto e não o objeto, o que é o objeto? O urinol é escritura, ou melhor, notação. É o que sobra do movimento, é o vestígio que faz com que nós nos lembremos dele após seu fim. É o motor que impele a imaginá-lo, refazê-lo e a partir daí, fazer novos movimentos. Sendo o objeto uma notação, sua materialidade tem pouco valor. O objeto pode ser substituído com facilidade por uma fotografia, e não há problemas em reproduzi-lo, ou miniatrizá-lo e coloca-lo em uma mala[7].

Se a Fonte é uma notação, como no xadrez, podemos representá-la de acordo com a notação desse jogo: Ug8!! +. Onde “U” é urinol, “g” é galeria, “g8”a casa que permite a dessignificação do urinol, pois “8” corresponde a oitava casa. Além das noções espaciais, obtidas pelas coordenadas cartesianas, usam-se em xadrez certos símbolos, como “!” que significa “uma boa jogada!” e “!!” “uma jogada genial!” além de “+” que significa “xeque”, e é “xeque” (+) e não “xeque mate” (++), pois essa jogada não configura o fim do jogo, mas o risco eminente do fim.. Sendo “U” indiferente ou irrelevante, a notação se torna “g8!!+”, e abarca qualquer readymade. A Fonte è a lembrança do gesto de anulação do signo, mais que isso é a possibilidade de sempre se fazer novamente esse gesto. É o paradoxo que gera a movimentação perpétua.

O paradoxo da Fonte reside na manutenção de sua coesão como signo apesar de uma falta tão vital. Contudo a falta de um significado não cria um abismo que corrompe a estrutura do signo, mas cria uma movimentação que impede que o signo se dissipe. Sua coerência se mantém devido ao movimento perpétuo gerado pela ausência.

Referências Bibliográficas

MINK, J. Duchamp. Lisboa: Taschen, 1996.

BARTHES, R. Elementos de Semiologia. São Paulo: Editora Cultrix, 2004.

VENÂNCIO, P. Marcel Duchamp. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

FOUCAULT, M. Isto não é um Cachimbo. Rio de Janeiro, 2004.

CABANE, P. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.

PAZ, O. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.

Notas:

[1] Cursando o Mestrado em História e teoria da Arte no Centro de Artes – UDESC.

[2] Marcel DUCHAMP, Fountaine, 1917/1964. Readymade: urinol de porcelana. 23,5 x 18 cm, altura 60 cm. Milão, Coleção de Arturo Schwartz.

[3] Onde Se = significante e So = significado

[4] Roland BARTHES, Elementos de Semiologia. p. 49-50.

[5] Uma regra do jogo de xadrez estabelece que quando o peão chega a oitava casa do tabuleiro, ele é promovido a outra peça, é retirado do tabuleiro e substituído por qualquer outra peça, com exceção do rei.

[6] Marcel Duchamp in: Paulo VENANCIO, Marcel Duchamp. p. 32.

[7] Como nas Caixas Malas, caixas de cartão com réplicas em miniatura, fotografia e reproduções a cores da obra de Duchamp (Janes Mink:1996)

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano VII - Número 11 - Outubro de 2009 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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