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REALIZAÇÃO DE DOCUMENTÁRIOS E A CRÍTICA DE PROCESSO: O CASO DE NA CORDA BAMBA [2]
Autor:  André Bonotto[3] - andrebonotto@yahoo.com.br

Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar questões estudadas pela crítica de processo como a autoria, as relações do artista com a cultura, e a apropriação de elementos do mundo por este, estendendo essas questões à realização de um filme documentário, e observando o caso particular do curta-metragem documentário universitário Na Corda Bamba. Basear-nos-emos na abordagem de Cecilia Salles dos processos criativos artísticos.

Palavras-chave: Crítica de processo; realização audiovisual; filme documentário; autoria; acaso; Na Corda Bamba.

Abstract: The objective of this paper is to present questions studied by the “process critics” as authorship, the relations of artists with culture, and the appropriation of elements of the world by them, extending these questions to the making of a documentary film and observing the particular case of Na Corda Bamba, a university student’s short-length documentary film. We will base on Cecilia Salles’ approach of the artistic creative process.

Keywords: Process critics; audiovisual production; documentary film; authorship; random; Na Corda Bamba.

1.  Introdução: Gênese e processo criativo

Nascida originalmente na França da déc. 60, a crítica genética é trazida ao Brasil e tem por objetivo[4] estudar os processos de criação artísticos a partir dos manuscritos - “todo documento no qual é possível encontrar um traço do processo de criação” [PINO, 2007, p.25]. A disciplina funda-se originariamente no campo dos estudos literários.

Cecília Salles troca a expressão manuscritos por documentos de processo [PINO, 2007, p.25], vislumbrando já aí, a possibilidade de expansão do campo para abarcar os processos criativos das artes em geral [Cf. SALLES; CARDOSO, 2007], e não apenas das obras literárias. Após essa expansão da disciplina [transmutando-se em crítica de processo] os estudos passam a abarcar “...os processo comunicativos em sentido mais amplo...” [SALLES; CARDOSO, 2007, p.44], incluindo as artes plásticas, o teatro, a fotografia,  música, publicidade, etc.

Em decorrência desses estudos combate-se a visão romântica do autor-gênio e do “mito da obra que já nasce pronta” [SALLES, 1992, p.17], e a criação artística é estudada ao invés disso como um sofisticado e trabalhoso processo, com tendências identificáveis, e imerso em redes de interações diversas, dentro dos níveis cultural, artístico, social, e histórico.

Segundo Salles [2006a], a pesquisa dos processos artísticos é sustentada “... pela observação dos documentos deixados pelos artistas: diários, anotações, esboços, rascunhos, maquetes, projetos, roteiros [grifo nosso], copiões etc. Na relação entre esses registros e a obra entregue ao público, encontra-se um pensamento em construção” [p.1].

Para este trabalho utilizaremos como documentos de processo três versões de roteiros para uma mesma obra fílmica, apontando no processo alguns elementos, relações implicadas, sua transformação e inscrição na obra final audiovisual. Entretanto, antes de chegarmos ao exercício proposto, é necessário apresentar um pano de fundo de discussão sobre a criação artística que guiará nossas futuras considerações.

Para o estudo das complexidades envolvidas num processo criativo, uma ferramenta útil é o paradigma das redes. Esse paradigma coloca em evidência a não-linearidade e interatividade, que “... ao longo da criação artística é observada em âmbitos diversos. Não se pode deixar de levar em conta, por exemplo, as interações entre indivíduos como um dos motores do desenvolvimento do pensamento: conversas com amigos, aulas com mestres respeitados ou opiniões de leitores ou espectadores particulares” [SALLES, 2006b, p.32].

Observando então o relacionamento do artista em processo de criação com a cultura, através do paradigma das redes, temos que a obra em construção é influenciada por inúmeros fatores, como o círculo de relações sociais dos criadores, trocas de experiências profissionais, orientações etc., como também está essa obra em relação mais ampla com os patrimônios culturais e artísticos precedentes, que podem tê-la influenciado de alguma maneira. Por isso Cecília Salles diz que volta à imagem da rede “... para compreender o modo como o artista se envolve com a cultura, isto é, os diálogos que ele estabelece se interconectam em uma trama, que o insere em determinadas vertentes ou linhagens. Daí a importância de se acompanhar as escolhas responsáveis pela formação dessa trama. É assim que vamos compreender a relação do artista com a tradição. Cada obra ou cada manuseio de determinada matéria estabelece interlocuções com a história da arte, da ciência e da cultura de maneira geral, assim como se remete ao futuro. Em jogos interativos, o artista e sua obra se alimentaram de tudo que os envolve e indiciam algumas escolhas. [...] Sabemos o que é que eles admiram e, de algum modo, o que procuram, por meio dos comentários, das seleções, críticas e comparações. Tomamos, assim, conhecimento de afinidades eletivas” [2006b, p.42].

As influências no processo de construção de uma obra podem ser observadas nos elementos do mundo apropriados [às vezes fisicamente] pelo artista em processo. Cecilia Salles [2006b, p.51] diz que “O artista observa o mundo e recolhe aquilo que, por algum motivo, o interessa. Trata-se de um percurso sensível e epistemológico de coleta [...]. Às vezes, os próprios objetos, livros, jornais ou imagens que pertencem à rua são coletados e preservados. Em outros casos, é encontrada uma grande diversidade de instrumentos mediadores, como os cadernos de desenhos ou anotações, diários, notas avulsas para registrar essa coleta que pode incluir, por exemplo, frases entrecortadas ouvidas na rua, inscrições em muros, publicidades, fotos ou anotações de leitura de livros e jornais”.

Entre essa apropriação dos elementos do mundo e as etapas de construção do projeto estético do artista, os caminhos percorridos [materializados na obra ou não] atravessam planejamentos prévios, bem como são desviados por elementos inesperados e não-controlados, tendo de se encontrar novas rotas: “Nesse percurso, tendências se cruzam com o acidental, causando possíveis modificações de rumo. Essa intervenção do acaso é observada nos relatos dos artistas de imprevistos externos e internos ao processo, que são enfrentados de diferentes maneiras e recebem tratamentos diversos; podem, porém, ser responsáveis por interessantes descobertas” [2006b, p.22].

Temos consideradas algumas dentre várias das forças em jogo num processo de criação [considerado de maneira genérica]. Voltaremos a alguns desses pontos mais tarde, dentro do caso específico que escolhemos observar. Por ora, algumas colocações quanto ao suporte e domínio de criação em questão [audiovisual, documentário] devem ser feitas.

2.  Audiovisual e documentário: Apropriação, acaso, autoria e roteiro

Complementaremos as questões anteriormente levantadas da relação artista-mundo, com outras que emergem ao se considerar cada produção individualmente, a começar pelo que tange o suporte artístico escolhido.  Grandes diferenças de método, materiais de trabalho etc. surgem ao se tratar um tema através da pintura em tela, afresco ou filme, por exemplo.

Tendo a obra audiovisual por matéria constitutiva as imagens e sons do mundo [registrados pela câmera e demais dispositivos de captação][5], é colocado sobre outra perspectiva o ato de “apropriação de mundo” pelo artista. Se dissemos que “o artista observa o mundo e recolhe aquilo que, por algum motivo, o interessa”, o que consistiria num ato “sensível e epistemológico de coleta” [SALLES, 2006b, p.51], tal coleta passa, no registro audiovisual, a ser quase “factual”, visto que é como se fosse a própria “carne do mundo” que é duplicada, e passa a constituir a imagem-câmera e sua fôrma reflexa [RAMOS, 2005][6]. Não queremos, contudo, defender a crença numa “ontologia” da imagem-câmera e aquilo que ela anuncia [o filme como “reprodução” da realidade], mas sim apenas relembrar a sua natureza indicial[7].

Notado isto, vejamos a operação de “coleta” na realização de um projeto audiovisual documentário sobre duas formas principais. A primeira delas seria aquela operação de coleta “epistemológica”, a pesquisa temática e técnica, a que se refere Cecília Salles [2006b, p.44]: “Percebemos que alguns sentem necessidade dessa busca explícita pela obtenção de conhecimento sobre questões as mais diversas – temática ou relativa às técnicas de exploração de uma determinada matéria, entre tantas outras. [...] Nesse caso, vemos a necessidade de conhecer o que já tinha sido feito sobre o tema que pretendia desenvolver”.

Esse tipo de coleta corresponderia à fase de pesquisa [pré-produção] da realização de um documentário - fase esta compartilhada com filmes de outra natureza [ficções, peças publicitárias etc.] ou ainda com áreas “tangentes” [a etnografia e antropologia visual].

A outra forma seria então a coleta “sensível”, a captação de imagens [fase de produção] propriamente dita, onde o documentário registra um mundo sensível que preexiste à câmera, com seu fluxo espaço-temporal não se organizando em razão das diretivas de um realizador [FREIRE, 2005, p.54]. Um lembrete importante: referimo-nos a características comuns às abordagens afins ao cinema documentário direto[8] [características às vezes associadas ao “documentário em absoluto”]. Sabemos que os documentários têm formas e procedimentos os mais diversos, se utilizando inclusive de operações tidas geralmente por “ficcionais” [cenários, dramatização, etc.], mas nos centraremos nesse esquema de produção documentária que constitui o caso do filme Na Corda Bamba e que nos traz questões diferenciadas.

A apropriação sensível [as imagens e sons] de eventos autônomos do mundo, pelo documentário, coloca em evidência a presença do acaso na realização da obra, pois “a câmera organiza a luz segundo seu programa ótico que pode ou não corresponder a uma expectativa determinada” [ENTLER, 1998, p.283], ou seja, a câmera [freqüentemente] capta elementos que estão em quadro à revelia do operador, aceitando “... um critério que suspende a capacidade de controle e previsão do resultado” [IBID., p.285] por parte dele.

Não nos esqueçamos de que “...o poder de aceitação ou recusa do autor anula os acasos infelizes, como uma espécie de seleção natural” [IBID., p.285][9]. O que quer dizer que há ainda, é claro, um julgamento da “aproveitabilidade” do acaso na obra final, uma instância controladora. Ainda sim, a permissibilidade de manifestação, aceitação, e incorporação do acaso no processo de realização documentária, devem ser levados em consideração.

Os elementos levantados de acaso e autonomia dos eventos registrados pela câmera, deslocam no documentário a questão da autoria, tal como é costumeiramente encarada na produção artística tradicional [em um senso comum].

A história do cinema acompanhou muitas discussões sobre a questão da autoria do filme, o que se deu de forma mais acirrada nas décadas de 50 e 60, com a chamada politique des auteurs francesa e sua colocada em foco da figura do diretor [como sinônimo de “autor”].

Andrew Sarris, quem depois transportou a discussão da politique para os EUA, faz um balanço do período: “A crítica baseada no Autor é uma reação contra a crítica sociológica que entronizou o que em detrimento do como. No entanto, seria igualmente falacioso entronizar o como [o que a politique teria feito] em detrimento do que. A verdadeira questão de um estilo significativo é aquele que unifica o que e o como em uma formulação pessoal” [grifos do autor] [APUD FREIRE, 2005, p.52].

Após esse foco excessivo na personalidade e papel do diretor[10], as próximas décadas colocariam essa visão em perspectiva, distribuindo mais uniformemente a autoria sobre as outras funções da equipe [fotografia, montagem, som, composição, etc.]. E embora tais discussões envolvessem predominantemente os longas-metragens de ficção, a autoria passaria a ser vista como distribuída também entre os membros da equipe de um filme documentário[11].

Nesse novo domínio, contudo, diante da valorização do papel dos agentes responsáveis pela operação do aparato (o como, a que se referiu Sarris), seria lícito nos perguntarmos “...como aplicar esse conceito (de autoria e sobrevalorização de certas funções) a um procedimento em que a tarefa maior do cineasta é registrar ‘aspectos da realidade’ que não estão submetidos à sua intervenção para se organizar e se mostrar, uma vez que tais aspectos já estão dados, são as coisas, os eventos as manifestações sensíveis do mundo?” [FREIRE, 2005, P.53].

A autoria da criação no audiovisual é coletiva, um processo “orgânico” influenciado pelas redes de relações, e está também dividida no documentário com os “fenômenos” que existem autonomamente no mundo.

Necessitamos ainda notar algo sobre o roteiro no documentário [que não exclui as observações sobre o acaso], antes de poder chegar aos nossos documentos de processo.

O que tomamos aqui por roteiro[12], o leitor vai perceber ser um pouco diferente da referência mais comum que ele possa vir a ter, com relação a projetos audiovisuais ficcionais.

Em tais projetos, o roteiro [roteiro técnico] é costumeiramente mais detalhado, mais “amarrado”, exibindo uma minuciosa “dissecação” da obra em: seqüência, cena, plano, descrição das ações, movimentação de câmera, diálogos, etc. Esse detalhamento do roteiro na produção fílmica ficcional[13] [ou publicitária] visa principalmente agilizar sua produção, seguindo um interesse prático, onde uma produção mais rápida permite a redução de custos, ampliando posteriormente a margem de lucro da comercialização do produto [o filme].

Diversamente, no esquema de produção documentária em questão[14], muito espaço é deixado para a indeterminação e acaso, adquirindo o roteiro então, forma próxima do que seria uma proposta de filmagem, um guia[15] que fornece alguns temas e esboços estruturais, e talvez ainda alguma forma de abordagem desses elementos na filmagem/ montagem.

Haveria ainda no documentário que se abre a improvisação um outro tipo de roteiro melhor detalhado, que forneceria informações mais precisas quanto ao conteúdo, ordem e duração dos planos - o roteiro de montagem. Este seria feito somente na etapa de pós-produção, com todas [ou pelo menos a maioria] as imagens já captadas, e após um intenso processo de decupagem [chamado também de minutagem][16] de todo esse material.

3.  Observação de processo: Na Corda Bamba

Antes de falar sobre os elementos em transformação no filme, faremos uma pequena apresentação do mesmo, e observações quanto aos roteiros selecionados. Na Corda Bamba é um curta-metragem documentário com duração de 20 minutos, concluído em 2006 [após aproximadamente um ano e meio desde seu início] como trabalho de conclusão de curso [TCC] de Bacharelado em Imagem e Som, na Universidade Federal de São Carlos [UFSCar].

Fig.01 - Na Corda Bamba.

Fig.02 - As crianças e o circo.

O documentário foi dirigido por Thiago Berto Nóbrega e tem por tema o circo, seu cotidiano observado através de uma maior aproximação com as crianças. A escolha dessa obra para esse trabalho deu-se pela nossa relação particular com a realização da mesma: participamos do processo, além de em toda a fase de pesquisa [levantamento de livros/ filmes de referência temática/ estética, seminários de estudo, visitas aos locais de gravação, etc.], também nas funções de direção de fotografia e montagem – cada uma das duas últimas divididas com mais outro membro do grupo.

Em decorrência disso temos acesso a experiências e momentos do processo de realização através de memórias, textos/ correspondências eletrônicos e cadernos de notas.

Dada a complexidade de se fazer uma “análise extensiva” de todos os elementos temáticos que atravessaram as versões de obra em construção, optamos por um exercício mais simples e viável, selecionando três versões de roteiros para o filme em questão, através dos quais apontaremos certos elementos que julgamos significativos para a obra final, e desdobramentos de suas relações com as questões que levantamos anteriormente no trabalho.

Os roteiros que selecionamos[17] se assemelham a proposta de filmagem [e não ao roteiro de montagem, posterior], roteiros que não visam definir precisamente as ações dos eventos que serão registrados pela câmera, ou o posicionamento exato desta diante daqueles - dirigir a locação, atores e equipe - mas simplesmente fornecer algumas diretrizes gerais a serem procuradas, de modo que se tenha um recorte dos eventos que possibilite seu posterior tratamento em narrativa fílmica.

As versões que apresentamos foram feitas em momentos diversos do processo, e são representativas de algumas tendências que caminharam em direção ao filme último.

Elas foram dispostas em ordem cronológica de aparição, nomeadas daqui para frente de Roteiros 1, 2, e 3. Os dois primeiros roteiros foram escritos pelo diretor em novembro-dezembro de 2005, e janeiro-fevereiro de 2006, respectivamente, e passados à equipe, anteriormente a fase de gravação [produção]. Quando foi feito o primeiro roteiro, estávamos em meio à fase de pesquisa e anterior às visitas de campo. Já no segundo, encontrávamo-nos na fase de aclimatação[18], realizando as visitas no circo escolhido para a gravação do projeto.

O terceiro roteiro, como dissemos, é a notação feita recentemente para este trabalho, a partir do filme finalizado e já estreado[19].

Tomando esses três roteiros como documentos de processo, ou seja, como “lembranças materializadas” do processo de criação [Cf. SALLES, 2006b, p.68-69], buscaremos indícios de pensamentos que permearam o projeto. A seguir encontram-se os roteiros, e após a leitura integral dos mesmos voltaremos a falar do processo.

3.1  Roteiros

Os roteiros transcritos seguirão em seqüência e em itálico para facilitar seu destaque do corpo de texto do trabalho.

3.1.1  Roteiro 1

SEQ 1 - Seqüências rápidas de imagens e sons que retratem o circo estudado e o seu espetáculo de forma poética. Time lapse do circo acendendo as luzes. Alguns pontos de vista inusitados em relação ao espetáculo, como por exemplo, a visão de baixo da arquibancada, a cisão de trás das cortinas do picadeiro ou por alguma fresta da lona.

FADE OUT

CRÉDITOS INICIAIS

SEQ 2 - O amanhecer no circo. As pessoas acordando e iniciando suas atividades. Através de uma montagem paralela, primeiras inserções rápidas de momentos antes do espetáculo.

SEQ 3 - Imagens que remetam a divulgação e a publicidade do circo. Inserção rápida de alguma imagem do início do espetáculo.

SEQ 4 - O início dos ensaios para o espetáculo da noite. A cada novo personagem que surgir ensaiando, há o uso de sua imagem que o ilustre no espetáculo.

SEQ 5 - O almoço no circo. Os preparativos para o almoço e a interrupção dos ensaios. Imagens que ilustrem a reunião da família circense no almoço. Inserção da imagem do intervalo do espetáculo.

SEQ 6 - A continuação dos ensaios. Imagens que demonstrem os preparativos finais e o início da caracterização dos personagens circenses. As inserções dos momentos do espetáculo tornam-se mais rápidas e incisivas gerando uma tensão na narrativa.

SEQ 7 - Inserção da encenação do trecho da peça de Plínio Marcos [“O Assassinato do Anão do Caralho Grande”], e em seguida, imagens que ilustrem algum momento do pós-espetáculo para que se quebre o clima criado pela seqüência anterior. Inserção de imagens do circo fechando, as luzes do picadeiro se apagando. No som podem-se ouvir os aplausos da platéia.

FADE OUT

CRÉDITOS FINAIS

3.1.2  Roteiro 2

No terreno há uma cidade de edifícios de lona colorida e pequenas casa portáteis, com formatos de veículos e pufs nas varandas. Estacas, colunas e rodas sustentam a cidade a uma certa altura, impedindo-a de fixar-se no chão. Cordas, fitas, metais e panos criam um caleidoscópio de ângulos intermináveis. Tudo é singular na pequena cidade conhecida como circo. Enquanto não é ocupada pelos seus personagens, e o Sol revela ali brilhos insuspeitos, suas passagens vazias recendem a estórias e feitiços.

Em algum momento, porém, deve um despertador tocar e uma porta se abrir. Um par de braços preparam um café numa cozinha que é ao mesmo tempo sala de jantar e estar. A administradora vai à carreta-escritório para fazer contatos importantes. O pessoal da limpeza começa a trabalhar. Lentamente, a cidade começa a despertar e a entrar em movimento. As crianças saem para a escola e as mães sentam-se nas varandas para conversar. Uma clave cai ao resvalar numa mão esticada.

A comida sai das panelas ainda fumegantes para os pratos. E a área coberta fora do trailer transforma-se em local de alimentação. A refeição vai acabando assim como o ânimo... A luz abrasadora do dia imprime miragens sobre superfícies metálicas, e muitos aparelhos de ar condicionado lutam contra ele. E dessa forma passam bastante tempo, a receber as variações de intensidade da luz vinda do céu. Uma acrobata cai, ao não conseguir pegar de volta o trapézio.

O Sol se põe no horizonte e as crianças reaparecem brincando em seus quintais desprovidos de cercas. As pessoas saem agora de suas casa móveis, e andam em todas as direções; entre elas, o eletricista. Os mais jovens brincam e fazem piada uns com os outros. Próximo a eles passa o eletricista. Os mais velhos conversam entre si. O eletricista entra na grande lona. Uma bela garota senta-se para fazer a maquiagem. O eletricista se aproxima da caixa de interruptores, e com um rápido golpe, faz com que as lâmpadas do letreiro luminoso, da lona de recepção, do topo da lona mestra, do picadeiro e dos bastidores se acendam, de uma só vez. Isso feito, volta pelo mesmo caminho, cruzando com as pessoas que se dirigem para a lona em grupos.

Pela entrada passam famílias que se dirigem ao picadeiro, ainda vazio. De trás da cortina é possível vê-las entrando e ocupando seus lugares. Impossível deixar de perceber que é pequeno o público, em relação à quantidade de cadeiras vazias. Já nos bastidores, um a um se abrem e se iluminam os camarim. O pequeno espaço abriga subitamente alongamentos e aquecimentos, rápidos treinos e a necessária socialização. Claves e argolas voam, pernas e braços giram e esticam-se. Sentado num banco, o equilibrista concentra-se. Apoiado em um ponto elevado, um dos palhaços calça as pernas de pau. Em seu camarim particular, outro palhaço interrompe a novela para se maquiar na frente do espelho. A porta do camarim feminino não pára de dar passagem.

A um sinal, todos se dirigem para trás da cortina. A música começa, as luzes acendem, a cortina é empurrada e, como num transe de cor, movimento e força, se passa o espetáculo. O público sorri e olha com admiração. Ao final, resta o balanço suave da barra do trapézio, ao sabor de uma corrente de ar qualquer. O público pega o corredor que leva para fora do picadeiro. Este encontra-se vazio novamente. A platéia é, novamente, apenas cadeiras. Não há mais cor. O silêncio impera no ambiente recém-abandonado.

Voltando, e lentamente atravessando o picadeiro, a cortina e os bastidores, onde não se vê agora qualquer vestígio de vida, chega-se até o quintal do circo. Todo escuridão. Porém um som baixo pode ser ouvido. Seguindo-o, encontramos um foco de luz. E as pessoas do circo. Felizes, a beber, jogar baralho ou fazer um churrasco.

No álbum se vê a foto daquela noite, daquela confraternização, junto com muitas outras dos espetáculos e momentos do circo. É dia, e uma circense o folheia em seu colo, sentada em sua varanda. Uma voz de alguém ao lado se dirige a ela: “Ficou bom?”.

3.1.3  Roteiro 3

SEQ 1 – Abertura

Montagem paralela contrapondo o público [maioria crianças] ansioso e preparação dos artistas para iniciarem o espetáculo. Crianças gritam “Começa! Começa!”

FADE OUT

TÍTULO - “NA CORDA BAMBA”

SEQ 2 – Manhã: atividades, trabalho e brincadeiras

FADE IN

Planos do espaço do circo, instalado em meio aos prédios na cidade.

­Dona do circo na administração. Atrás dela, quadro com criança no circo.

FUSÃO COM

Crianças em plano parecido com o do quadro na parede brincam imitando números do espetáculo.

Crianças brincam com água, adultos lavam, varrem e recolhem brinquedos.

Fabricação de brinquedos [“arco-íris”].

SEQ 3 – Almoço

Pausa das atividades.

Adultos comem reunidos na varanda, crianças comem vendo TV.

Ida de menino para escola é montada paralelamente a crianças e adultos passando o tempo, jogando cartas, brincando, lendo. Espaços vazios. Televisões ligadas.

SEQ 4 – Tarde: preparação para espetáculo

Menino-palhaço preparando maquiagem é montado paralelamente a outras preparações: contagem de ingressos, churros, algodão-doce e espera na bilheteria.

SEQ 5 – Bastidores

Chegada de menino da escola marca o início da noite. Luzes aparecem acesas.

Passamos aos bastidores onde todos que farão parte do espetáculo noturno vestem os figurinos e maquiagens, conversam, fazem aquecimentos, e aguardam ansiosos.

SEQ 6 – Espetáculo

Foco de luz no menino-palhaço marca o início da apresentação. Planos curtos e fragmentados de vários números [pirofagia, acrobacia, trapézio, tecido, e palhaço] são montados paralelamente com planos do público em crescendo de interesse, desde cadeiras vazias, pessoas pouco atentas comendo, até o riso final do menino da platéia [para o palhaço].

SEQ 7 – Pós-espetáculo

Quebra súbita no clima após riso apoteótico do menino: silêncio abrupto e vazio – não há mais público nem espetáculo, trapézio balança ao vento.

Nos bastidores, folha com o programa do espetáculo colada, tudo vazio.

Por fora, tudo escuro exceto pelas luzes que piscam alternadamente. Uma lâmpada queima.

SEQ 8 – Dia Seguinte

Menina pequena assiste o eletricista trocar a lâmpada queimada. A nova lâmpada ascende FUSÃO COM

Plano do quadro visto no escritório no início do filme [suas cores vão saturando].

CRÉDITOS FINAIS

3.2  Tendências na construção da narrativa

A seguir, após comentário sobre cada elemento elencado, citaremos brevemente as passagens onde se encontram nos roteiros, para melhor acompanhamento da transformação. Sugerimos uma remissão aos roteiros anteriormente apresentados, caso deseje-se uma visão mais completa dos elementos em cada um deles.

3.2.1Princípio de organização em ciclo diário

Nos três roteiros existe a inspiração do movimento documentário conhecido como das “sinfonias da cidade”[20], originário do contato do filme de não-ficção com os movimentos de vanguarda artística européia da década de 20. Os filmes desse movimento organizavam as narrativas não-ficcionais apresentando o que seria o “um dia na vida de” uma cidade qualquer [as metrópoles]. Essas narrativas tinham uma progressão de velocidade segundo os momentos de uma jornada diária: o lento acordar de manhã, aceleração gradual com o começo do trabalho até interrupção das atividades na hora do almoço, e subseqüentes transformações da velocidade de acordo com as próximas atividades.

A influência desse esquema de narrativa manteve-se como princípio organizador do filme no decorrer do processo. Nos roteiros, esse elemento aparece como:

· Roteiro 1 "O amanhecer no circo. As pessoas acordando e iniciando suas atividades [...]. O almoço no circo [...] interrupção dos ensaios".

· Roteiro 2 “Enquanto não é ocupada pelos seus personagens [...] suas passagens vazias recendem a estórias e feitiços [...]. O pessoal da limpeza começa a trabalhar. Lentamente, a cidade começa a despertar e a entrar em movimento [...]. A comida sai das panelas ainda fumegantes para os pratos [...]. A refeição vai acabando assim como o ânimo”.

· Roteiro 3 “Planos do espaço do circo, instalado em meio aos prédios na cidade [...]. Crianças brincam com água, adultos lavam, varrem e recolhem brinquedos. Fabricação de brinquedos [...]. Pausa das atividades. [...] Espaços vazios. Televisões ligadas”.

Como indício no filme finalizado, temos sua aparição mais visível na primeira parte: após a breve abertura e título, planos da apresentação do espaço vazio [o amanhecer do circo] até os ritmos constantes das atividades [lavar, varrer, etc.], que se interrompem com o almoço.

      

      

Fig.03 – Imagens indicando a progressão do ritmo da narrativa: amanhecer, aceleração com o trabalho, e pausa para o almoço/ descanso.

3.2.2  Confluência do cotidiano para o espetáculo

Havia uma idéia inicial no projeto, baseado em nossas pesquisas[21], de que todo o cotidiano do circense girava e apontava para o espetáculo, sendo este o momento de “apoteose”. Tal idéia, após o contato adquirido no circo, acabou transformada.

Assim, se no primeiro roteiro [anterior às visitas] ela aparecia explícita tanto quanto ao conteúdo quanto aos procedimentos formais [a idéia de entrecortar as ações no decorrer do filme com inserts dos personagens no espetáculo], no segundo roteiro ela torna-se já mais pontual, aparecendo de forma curta no final das seqüências. No terceiro roteiro essa idéia aparece concentrada em uma seqüência, contendo não tantas menções a ensaios, mas a outros momentos de preparação para o espetáculo, como a preparação dos artistas nos bastidores, seqüência inexistente nas versões anteriores.

      

      

Fig.04 – Imagens da preparação para espetáculo, e bastidores.

Os trechos onde se vê indícios de aparição desse tema são:

· Roteiro 1 “O início dos ensaios para o espetáculo da noite [...]. Interrupção dos ensaios [...]. A continuação dos ensaios.” Manifestação da idéia como operação formal: “...inserções rápidas de momentos antes do espetáculo [...]. Inserção rápida de alguma imagem do início do espetáculo [...]. A cada novo personagem que surgir ensaiando, há o uso de sua imagem que o ilustre no espetáculo”.

· Roteiro 2 “Uma clave cai ao resvalar numa mão esticada [...]. Uma acrobata cai, ao não conseguir pegar de volta o trapézio”. O tema do ensaio aparece de forma curta no final das seqüências.

· Roteiro 3 Tema concentrado em uma única seqüência: “Menino-palhaço preparando maquiagem monta paralelamente a outras preparações: contagem de ingressos, churros, algodão-doce e espera na bilheteria”.

3.2.3  Presença das crianças

No primeiro roteiro não há menção sobre as crianças no circo - tanto os filhos dos circenses, quanto as crianças da platéia. No segundo roteiro, percebendo sua presença através das visitas de pesquisa inicias, elas já aparecem na organização do ciclo diário. Durante a revisão do material captado, feita nos próprios dias de gravação, notou-se a existência de extensivo tempo de material com imagens das crianças filhas dos circenses, o que acabou sendo incorporado no filme.

      

Fig.05 – Imagens das crianças no cotidiano no circo.

Esse resultado foi reflexo do contato travado no ambiente, pois as crianças apresentavam fácil socialização e acabavam sendo uma espécie de “ponto de contato” entre a equipe de realização e os circenses, um “acaso” que foi “aproveitado” pelo projeto. Vejamos os casos:

· Roteiro 1 Não há menção às crianças.

· Roteiro 2 Crianças aparecem na organização do ciclo diário: “As crianças saem para a escola [...] as crianças reaparecem brincando...”.

· Roteiro 3 Extensiva aparição: “O público [maioria crianças] [...]. quadro com criança no circo [...]. crianças comem vendo TV [...]. Ida de menino para escola [...]. Menino-palhaço preparando maquiagem [...]. Foco de luz no menino-palhaço [...]. riso final do menino da platéia”.

3.2.4  Quebra do espetáculo

As década de 60-70 puseram em foco as discussões desconstrutivas sobre a “quebra do espetáculo” das artes em geral, discussão que repercutiu no cinema. A idéia era que “Se o cinema-espetáculo oculta o trabalho de produção de significados, é preciso responder com ‘um cinema que traga em si a marca do processo de produção, ao invés de tentar apagar os traços que o denunciam como objeto trabalhado e como discurso que tem por trás uma fonte produtora e seus interesses’” [XAVIER apud DA-RIN, 2006, p.168].

Acompanhando essas discussões, já nas primeiras conversas sobre o filme tinha-se a idéia de não centrá-lo no espetáculo em si [uma dupla espetacularização][22], este aparecendo fragmentado e sucedido por uma “quebra de clímax” [ponto que acaba se relacionando com o próximo ítem]. No primeiro roteiro isso aparece de forma explícita, sendo amenizada no segundo e, a ruptura retomada no terceiro.

      

Fig.06 – Imagens do momento de ruptura do clímax do espetáculo.

Nas três versões:

· Roteiro 1 Aparece de forma explícita: “As inserções dos momentos do espetáculo tornam-se mais rápidas e incisivas gerando uma tensão na narrativa [...] imagens que ilustrem algum momento do pós-espetáculo para que se quebre o clima criado pela seqüência anterior. Inserção de imagens do circo fechando, as luzes do picadeiro se apagando”.

· Roteiro 2 Ameniza-se: “O público sorri e olha com admiração. Ao final, resta o balanço suave da barra do trapézio [...]. A platéia é, novamente, apenas cadeiras. Não há mais cor. O silêncio impera no ambiente recém-abandonado”.

· Roteiro 3 Força da ruptura retomada : “... riso final do menino da platéia [...]. Quebra súbita no clima após riso [...] silêncio abrupto e vazio – não há mais público nem espetáculo, trapézio balança ao vento”.

3.2.5  Estrutura circular-reflexiva

As propostas desconstrutivas na prática documentária formaram uma tendência reflexiva, tendência que “... assimila os recursos retóricos desenvolvidos ao longo da história do documentário e produz uma inflexão deles sobre si mesmos, problematizando suas limitações. Não satisfeito em simplesmente expor um argumento sobre seu objeto, o cineasta passa a engajar-se em um metacomentário sobre os mecanismos que dão forma a este argumento [...] o próprio filme afirma-se como fato no domínio da linguagem” [DA-RIN, 2006, p.170].

Características indicadoras da auto-reflexividade no documentário podem ver-se manifestadas nas obras de diferentes maneiras [mostrar a equipe do filme em ação seria a mais comum].

O elemento reflexivo foi bastante discutido como “prevenção” de uma possível “interpretação equivocada” [se é que isso seja possível] sobre as pretensões da equipe de “captar um real sem interferências” [meta obviamente defasada algumas décadas nas discussões da área], já que partíamos inicialmente de proximidade grande com a estilística do cinema direto.

Voltando aos roteiros, no primeiro essa proposta auto-reflexiva acabou não sendo formalizada [embora a estrutura esboçada fosse bem entrecortada com os inserts de imagens, o que encaminharia a obra para uma montagem “não-transparente”, remetendo então a questão da enunciação], ou antes, a temática não apareceu como elemento profílmico.

Já no segundo roteiro, essa preocupação recebeu uma elaboração formal melhor definida - talvez advinda do tempo mais pausado, contemplativo [indicado pela construção textual do roteiro, mais extensa] – que vem com a proposta da encenação do álbum de fotografias. A idéia de utilizar um álbum de fotografias apontaria duplamente para a representação visual mediada criando uma ambigüidade ou distensão do tempo diegético - teria o filme todo sido a lembrança desse dia evocados [a lembrança e o filme] através do álbum de fotografias? Além disso, a pergunta final [“Ficou bom?”] remeteria a uma enunciação do realizador [demarcando sua presença na construção do filme], sendo duplamente dirigida ao personagem e ao espectador. A proposta envolveria a articulação de um jogo de encenação com um dos circenses na gravação, e acabou sendo abandonada.

Ao invés dela, o acaso trouxe outra possibilidade igualmente interessante, o quadro de um menino em frente ao circo existente na parede do escritório administrativo. Essa pintura acabou reverberada no posicionamento acidental da câmera no circo, num enquadramento em cena parecida com a do quadro em questão: as crianças brincando, com o circo ao fundo. A ligação desses elementos não foi percebida na captação das imagens, apenas no momento da montagem, com o posicionamento ao acaso dessas imagens uma próxima à outra.

O incidente tornou-se um “acaso feliz” e incorporado como procedimento reflexivo: só entramos “de verdade” no universo do circo [e no filme], quando “entramos no quadro”, junto às crianças. O quadro é retomado ainda como último plano do filme, e ecoa a idéia anterior do álbum de fotografias - teria o filme sido uma lembrança evocada a partir do quadro?

      

Fig.07 – Imagens do início do filme, que remetem a narrativa circular através da imagem do quadro.

      

Fig.08 – Imagens do final do filme, que remetem a narrativa circular através da imagem do quadro.

·Roteiro 1 Proposta reflexiva não formalizada profilmicamente.

·Roteiro 2 Idéia do álbum de fotografias: “No álbum se vê a foto daquela noite, daquela confraternização, junto com muitas outras dos espetáculos e momentos do circo. É dia, e uma circense o folheia em seu colo, sentada em sua varanda. Uma voz de alguém ao lado se dirige a ela: ‘Ficou bom?’”.

·Roteiro 3 Proposta da reflexividade através do quadro: “... Atrás dela, quadro com criança no circo. / FUSÃO COM/ Crianças em plano parecido com o do quadro na parede [...]. A nova lâmpada ascende/ FUSÃO COM/ Plano do quadro visto no escritório no início do filme [suas cores vão saturando]/ CRÉDITOS FINAIS”.

4.  Considerações finais

Tratando-se de audiovisual, o processo de criação é predominantemente coletivo, e tornado mais complexo e delicado ao se lidar com documentários, por questões específicas envolvidas [como a ética, por exemplo, de que não tratamos nesse trabalho]. Às influências dos nós das redes culturais, que vimos permear os processos de criação artística de modo geral, é adicionado o estabelecimento de uma relação especial entre o realizador, seu instrumento de trabalho, e o mundo histórico [FREIRE, 2005, p.56], reforçando a visualização da autoria exatamente na interação do artista/ realizador com os outros [SALLES, 2006b, p.152].

A título de exemplo concreto, nos utilizamos de Na Corda Bamba para apontar, em um recorte de tendências em processo na obra,  pontos levantados nas discussões preliminares, como as relações com o patrimônio artístico [referência a movimento dentro da história do documentário], a apropriação diferenciada dos materiais do mundo [seus signos indiciais imagéticos e sonoros], e a incorporação seletiva do acaso [o imprevisível no documentário]. Citemos o fato de que muitas das discussões foram influenciadas pelo contexto em que a produção do documentário se inseria – um projeto universitário, ou seja, realizado dentro de uma estrutura que fomenta esse tipo de discussão e reflexão sobre a práxis.

Mas lembremos por fim que nem todo esse pensamento em construção na obra é portado de intencionalidade por parte do realizador, mas há uma tendência própria interna a cada obra, que em seu processo de criação e materialidade específicas aponta para determinados caminhos ao invés de outros [se utilizando, por exemplo, do acaso], e pede por certos elementos, procedimentos e seqüências construtivas em detrimento de outras tantas.

Um artista [ou equipe realizadora] conforma a obra a seu projeto estético específico [seja este mais ou menos determinado], assim como a obra também os conforma a si mesma.

5.  Referências bibliográficas

BERNARDET, J.C. O autor no cinema. São Paulo: Brasiliense, 1994. 204p.

DA-RIN, S. Antiilusionismo e auto-reflexividade. In: ________. Espelho partido: tradição e transformação do documentário. Rio de Janeiro: Azougue, 2006. p. 169-186.

ENTLER, R. Fotografia e acaso: a expressão pelos encontros e acidentes. In: SAMAIN, E. [ed.] O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998. p. 281-294.

FREIRE, M. A questão do autor no cinema documentário. Significação, vol. 24, 43-60, 2005.

MACHADO, A. Mística da homologia automática. In: ________. A ilusão especular: introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 30-42.

NICHOLS, B. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005. 270p.

PARENTE, A. O cinema direto. In: ________. Narrativa e modernidade: os cinemas não-narrativos do pós-guerra. Campinas: Papirus, 2000. p. 110-129.

PINO, C. A. Gênese da gênese. Ciência e Cultura [SBPC], vol. 59, 24-27, 2007.

RAMOS, F. A cicatriz da tomada: documentário, ética e imagem-intensa. In: Teoria contemporânea do cinema v.II: documentário e narratividade ficcional.  São Paulo: Senac, 2005. p. 159-226.

SALLES, C.A. Crítica Genética: uma introdução. Fundamentos dos estudos genéticos sobre os manuscritos literários. São Paulo: Educ, 1992. 124p.

________. In: Ghrebh. Número 8, jul. 2006a. Visitado em 31/10/2007. Disponível em http://revista.cisc.org.br/ghrebh8/

________. Redes de criação: construção da obra de arte. Vinhedo: Editora Horizonte, 2006b. 176p.

SALLES, C. A.; CARDOSO, D. R. Crítica genética em expansão. Ciência e Cultura [SBPC], vol. 59, 44-47, 2007.

Notas:

[2] Agradecemos a Thiago Berto Nóbrega, diretor, e a Roberto Reiniger, produtor do documentário Na Corda Bamba, pela permissão de uso de imagens e confirmação de informações utilizadas neste trabalho. Para mais informações ou acesso ao documentário Na Corda Bamba, contatar o produtor através do e-mail doc_nacordabamba@yahoo.com.br ou o diretor por ihtago@gmail.com

[3] Mestrando em Multimeios pelo Departamento de Cinema - Instituto de Artes, Unicamp.

[4] Maiores considerações quanto aos objetivos dessa disciplina em Cecília Salles, Crítica genética: uma introdução. Vide bibliografia. Sugerimos por exemplo as páginas de número 18, 22 e 23.

[5] Considerando aqui a matéria que constitui a maior parte dos filmes produzidos, deixando de lado, para os fins desse trabalho, outros tipos de imagens como desenhos, infografias, ou objetos colados diretamente sobre a película, por exemplo, por constituírem estes matéria-prima fílmica minoritária, quantitativamente falando.

[6]Dizer que a imagem possui traços ou aparência reflexa está longe de dizer que a imagem é reflexo do mundo. Trata-se apenas de constatar uma evidência. Nesse sentido, consideramos que o termo ‘fôrma’ designa de modo mais preciso. Mais do que uma forma, a imagem-câmera é uma fôrma reflexa, pois traz em si os movimentos de articulação dos volumes dentro de características que estão previamente delimitadas. E essas características assemelham-se àquelas que encontramos em superfícies reflexas” [RAMOS, 2005, p.187]. Fernão Ramos [2005] dedica seu denso ensaio a apresentar uma proposta de “releitura” do documentário através de, para além da camada enunciativa [já em evidência nos estudos contemporâneos], a circunstância da tomada. O autor propõe deslocar a ênfase para esse segundo pólo, a tomada, e observá-la tendo em vista tanto a presença do sujeito-da-câmera que se lança [da tomada] ao espectador; como tendo também em vista uma variação da imagem no eixo “imagem-qualquer”—“imagem-intensa”, variação característica do transcorrer da indeterminação na tomada.

[7]Ao distribuir objetos e processo do nosso mundo em sua célebre classificação dos signos, Peirce coloca a fotografia na categoria dos índices [grifo do autor], ou seja, entre aqueles signos que se referem ao objeto por conexão física, por serem realmente afetados por ele, como uma impressão digital” [MACHADO, 1984, p.34]. Arlindo Machado [1984] coloca essa indicialidade da imagem fotográfica sob a “abordagem” do aparato e processo, pelo viés da reflexão. Machado a contrapõe então à refração, o “outro lado” do aparato, que seria constituído pelas características tanto ideológicas, de enunciação e sustentação de determinados pontos de vista e valores [escamotados e] postos como universais; como também o seria pela “refração técnica” mesma que ocorre no interior do aparelho óptico, e que em realidade “deforma” as informações luminosas recebidas para inscrevê-las bidimensionalmente, na superfície fotossensível, conforme a convenção da perspectiva artificialis. O autor percorre vários pontos sobre a fotografia, notando as tensões entre reflexão e refração, e relembra que são predominantes as menções à primeira característica [reflexão], enquanto a outra [refração] é dissimulada.

[8] André Parente [2000, p.112] afirma que o termo cinema direto foi proposto por Mario Ruspoli em 1963 durante evento internacional de cinema e televisão em Lyon. O dências cinematografias bem diferentes, mas das acepções de diversos críticos poderíamos entender que o cinema direto seria “...uma técnica [películas 16mm sensíveis, câmara leve, som sincronizado etc.], um método de filmagem [ausência de roteiro, equipe reduzida, atores não-profissionais, som direto, câmera na mão, cenários naturais, etc.] e uma estética, ‘a estética do real’” [grifos nossos] [p.112]. Parente critica a associação imediata de todo o cinema direto com a estética do real, mas observa ainda que muitas das estilísticas buscavam um objetivo idêntico: “...estabelecer um contato direto [grifo nosso] com o homem que age numa situação dada” [p.114]. Quando nos referirmos ao cinema direto neste trabalho, tenhamos em mente as características de modo de produção destacadas na citação de André Parente.

[9] Ronaldo Entler [1998] aborda a questão do acaso originalmente no domínio da fotografia [still], e pegamos os pontos semelhantes para o audiovisual. Devemos considerar, contudo, aspectos diferenciais de suporte e etapas de produção deste último, principalmente no que tange a fase de montagem, onde é selecionada apenas uma pequena parte do material filmado para constituir a obra final. Lembremos que nesse processo muitas vezes “...ultrapassa-se largamente a proporção de cinqüenta horas de tomadas para uma hora de filme” [RAMOS, 2005, p.193]. Em Na Corda Bamba, por exemplo, tivemos cerca de dezessete horas de material gravado para montar vinte minutos de filme. Isso posto, note-se que o que ocorre é bem mais do que uma seleção “natural”.

[10] Jean-Claude Bernardet [1994] faz um panorama da discussão, buscando suas origens nos estetas franceses das primeiras décadas e culminando nas discussões da politique nos anos 50-60, analisando posteriormente a difusão da questão no Brasil. Bernardet acabar por constatar na discussão francesa uma prerrogativa um tanto “demiúrgica” do papel privilegiado e “iluminado” do diretor-autor.

[11] Marcius Freire [2005, p.49-50] comenta como era o panorama inicial da autoria na produção não-ficcional: “Os operadores Lumière num primeiro momento, os de Pathé e Edison em seguida, registravam as coisas do mundo, próximo ou longínquo, mas suas fitas não levavam os seus nomes, apenas o da firma produtora. Ela era a garantia da veracidade do que estava sendo mostrado. [...] O cinema vai precisar se ficcionalizar, notadamente com Méliès, para poder ver o nome do realizador nos créditos”.

[12] Tomamos como referência para as considerações sobre roteiro no documentário os capítulos iniciais da pesquisa de doutoramento de Sergio Puccini Soares aos quais tivemos acesso, Documentário e roteiro de cinema; da pré-produção à pós-produção, defendida em 2007 no Instituto de Artes da Unicamp. Seu projeto foi apresentado em reunião do grupo de pesquisa CEPECIDOC [Centro de Pesquisas de Cinema Documentário] coordenado pelo prof. Fernão Ramos na Unicamp. Até o presente momento, contudo, a tese final ainda não se encontra nas bibliotecas para consultas.

[13] O que ocorre na maioria mas não em toda a produção ficcional. Com a emergência do cinema direto nas décadas de 50-60, a improvisação como recurso “dramático” fílmico passou a ser absorvida positivamente também na ficção, como mostram filmes de Jean-Luc Godard ou de Glauber Rocha desse período.

[14] Novamente, nos centramos no modelo de produção documentária que segue a linha do cinema direto, pois lembremos que documentários também podem ter roteiros muito bem elaborados, como o mostrou a tradição de documentarismo social iniciada na escola britânica de John Grierson, que dominou o cenário de realização do gênero nas décadas de 20 à de 50. O modelo de documentários trabalhado pela escola de Grierson tinha um planejamento da produção bem detalhado, o que pode ser vislumbrado através da montagem dos filmes, e o que os aproxima mais do modo de produção/planejamento correntes nos filmes ficcionais. Esse modelo ainda é refletido em grande parte da produção documentária contemporânea, especialmente no setor televisivo à cabo [BBC, Discovery Channel, National Geographic, etc.].

[15] Interessante notar que o termo para roteiro em espanhol é guión.

[16] Nessa etapa faz-se uma descrição textual dos planos registrados o mais clara possível, e precisa quanto ao tempo de início e término destes em cada fita, o que produz uma transcrição textual detalhada que agiliza a organização e localização do material desejado e facilita sua pré-montagem “virtual”. Equivaleria ao deslocamento do roteiro técnico tradicional, da fase de pré-produção para a de pós-produção.

[17] Tendo em mente principalmente os dois primeiros, já que o terceiro é a notação feita a partir do filme pronto.

[18] Utilizamos como referência para nossa abordagem uma proposta que segue a linha das ciências antropológicas e tematiza a presença em campo de uma equipe audiovisual. A proposta divide as fases anteriores à gravação em “pré-aclimatação” e “aclimatação”. Na primeira ocorreriam as visitas ocasionais do pesquisador, sem equipamento de registro, e com objetivos de travar relações e adquirir confiança da comunidade em questão. A segunda, de visitas mais freqüentes, se daria após ter-se estabelecida uma relação mínima, e acompanhar-se-ia do mínimo possível de equipamento leve de registro. Aumentada essa relação e confiança, aí sim estaria a situação pronta para o início da captação de imagens, com todo o equipamento/ equipe necessários [sempre de número reduzidos]. A proposta foi apresentada pela pesquisadora Haydée Dourado Cardoso em comunicação Documentários cinematográficos no espaço midiático, no IX SOCINE, encontro de pesquisadores da Sociedade de Estudos de Cinema de 2005, e foi presenciada pelo produtor de Na Corda Bamba, Roberto Reiniger.

[19] Na Corda Bamba foi pré-estreado em 24/11/2006 no Circo Spacial em São Paulo, em sessão para os “atores sociais” participantes do projeto; e estreado em 6/12/2006 em São Carlos, em exibição junto de outros TCC´s. O documentário foi enviado posteriormente para festivais como o X Vide Vídeo no Rio de Janeiro, e para o 17º Festival Brasileiro de Cinema Universitário de Brasília, onde recebeu menção honrosa pela Associação Brasileira de Documentaristas de São Paulo. Ambos festivais ocorreram em 2007.

[20] Movimento representado bem por filmes como Berlin: sinfonia de uma grande cidade [Walther Ruttmann, 1927], A propos de Nice [Jean Vigo, 1930], Rien que les heures [Alberto Cavalcanti, 1926], Um homem com uma câmera [Dziga Vertov, 1929], A chuva [Joris Ivens, 1929] e São Paulo: sinfonia da cidade [Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, 1930]. Para considerações sobre este movimento ver o capítulo Exploration, Romanticism, and the Western Avant-Garde, do livro de Richard Barsam, Nonfiction film: a critical history, Bloomington, Indiana Univ. Press, 1992.

[21] Um texto que serviu de grande auxílio na pesquisa para o documentário foi a dissertação de mestrado de Ermínia Silva, O circo: sua arte e seus saberes, defendida em 1996 no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.

[22] Interessante notar que trabalhamos com o tema literal do espetáculo, dentro de um suporte que em geral faz-se espetáculo. A idéia era romper esse círculo.

 

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