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O LIVRO EXPANDIDO: NO LIMIAR ENTRE O LIVRO E O OBJETO
Autora:
Márcia Regina Pereira de Sousa[1] - luasnovas@yahoo.com.br

Resumo: Este artigo trata da conceitualização da idéia de livro expandido como um desdobramento do livro de artista, tendo por base os textos Escultura no Campo Expandido, de Rosalind Krauss e Relatos de Espaços, de Michel de Certeau. O livro expandido seria o resultado do esgarçamento das fronteiras entre livro e objeto.

Palavras-chave: Livro de artista. Livro expandido. Livro-objeto.

Abstract: This article deals with the notion of expanded book as an unfolding of the artist’s book, concepts based on the texts Sculpture in the Expanded Field, of Rosalind Krauss and Narration os Spaces, of Michel de Certeau. The expanded book would be the result of the expansion of the borders between book and object.

Keywords: Artist’s book. Expanded book. Bookwork.

O que é um livro?

Em termos estruturais, pode-se dizer que um livro é um livro quanto apresenta capas, contracapas, guardas, páginas, lombada, numeração seqüencial de páginas, e apresenta-se num volume. Um livro tradicionalmente é feito de papel, é portátil, tem vincos e dobras, precisa de páginas que possam ser folheadas, apresenta elementos escriturais impressos, uma seqüencialidade, um fluxo de compreensão ou leitura linear, elementos de narrativa. Simbolicamente um livro é um contentor de conhecimento, compilador de informações, espaço para preservação da cultura. Um livro, ainda, traz consigo a idéia de reprodutibilidade e exemplares múltiplos.

No entanto, o livro pode também ser espaço de atuação para artistas visuais que, respeitando-a ou violando-a, elegem a forma-livro como fértil terreno poético: são os livros de artista de tiragem limitada ou mesmo exemplares únicos. Tomarei aqui a idéia de livro de artista em consonância com uma das concepções colocadas por Anne Moeglin-Delcroix[2] em entrevista concedida a Paulo Silveira (2001, p. 286-7): é aquele em que o artista-autor assume a responsabilidade sobre todas as etapas de concepção e produção do livro, ainda que por vezes não o construa com suas próprias mãos, “[...] justamente porque o livro é uma obra no sentido pleno do termo, ou seja, é concebido de tal maneira que todos os aspectos do livro participam da significação. O livro não é aí um simples continente ou suporte para uma mensagem que seria independente dele, como é o caso dos livros de literatura ou dos livros em geral”. Essa concepção pode ser complementada pela visão de Bernadete Panek (2003), que coloca o livro de artista como campo primário para a arte, como veículo expressivo para o artista.

Para além dos livros de artista que mantêm a estrutura livro-referente[3], há um campo de especial interesse, que denomino neste artigo de livro expandido. São livros-objetos que transitam no limiar entre o livro e o objeto artístico, que avançam sobre o espaço físico, ganham aspectos escultóricos e ampliam o conceito de livro de artista.

Moeglin-Delcroix, nessa mesma entrevista, afirma que um livro-objeto relaciona-se mais com o campo da escultura que com o livro:

Em minha opinião, um livro não é um livro se não se puder abri-lo e descobrir um certo número de páginas que se podem ler ou olhar (a idéia de uma informação mais ou menos conceitual a comunicar) e, em todo caso, folhear uma após a outra (idéia de seqüência). Um livro que não se pode abrir, como ocorre freqüentemente com o livro-objeto, parece-me uma contradição e efetivamente uma monstruosidade. [...] Há evidentemente, como sempre, exceções. (MOEGLIN-DELCROIX, In: SILVEIRA, 2001, p. 284.)

As idéias aqui dispostas discordarão desse ponto de vista: os livros expandidos são por natureza contraditórios, e aproximam-se certamente do campo da escultura, no entanto, guardam íntima relação com o universo do livro; embora muitos dos elementos estruturais, formais, característicos e simbólicos do livro sejam subvertidos, desconhecidos ou intencionalmente ignorados. Trato essas rupturas e intencionalidades como uma ampliação das fronteiras do livro de artista, já por certo bastante indeterminadas.

Rosalind Krauss, em seu texto sobre a escultura no campo expandido, de 1978[4], coloca a escultura moderna tomada como condição negativa da escultura-monumento. Segundo a autora, duas obras de Rodin (Balzac e Portas do Inverno), executadas no final do século XIX foram decisivas para que fossem cruzados os limiares entre a lógica do monumento e o espaço escultórico moderno, sua condição negativa. Segundo Krauss (2002, p. 295-6), no entanto, por volta dos anos 50 a escultura moderna começou a dar mostras de esgotamento, passando a ser definida cada vez mais pelo que não era: “[...] a escultura assumiu plenamente a condição de lógica inversa e se converteu em pura negatividade: uma combinação de exclusões. Poderia-se dizer que a escultura deixava de ser algo positivo para se transformar na categoria resultante da adição da não-paisagem com a não-arquitetura.” Ainda segundo a autora (2002, p. 296), “a partir de finais da década de 60, os escultores começaram a centrar sua atenção nos limites externos desses termos de exclusão.” É a partir desse binário não-paisagem e não-arquitetura, e da conversão lógica em seu binário oposto positivo[5], que Krauss problematiza o campo ampliada da escultura a partir de final dos anos 60.

Por ser o livro de artista um fenômeno recente no campo das artes visuais, e embora não seja uma categoria artística estudada com profundidade a ponto de serem detectadas essas transições e rupturas históricas, à maneira da escultura ou da pintura, podemos nos valer de discussões elaboradas no interior dessas áreas para pensar as trajetórias do livro de artista no contexto artístico contemporâneo. Para Julio Plaza apud Panek (2003, p. 10), o livro-objeto é um antilivro: “o livro como sub-objeto: abstraído de sua função (subversão do livro como objeto de registro do conhecimento; transformação do livro em objetos e outras linguagens artísticas)”. Para esse autor, então, um livro-objeto desprovido das características tradicionais do livro seria talvez um não-livro. O livro expandido, resultado de violações e ampliações da forma-livro, em minha opinião, não deve ser compreendido em termos excludentes, mas em termos aditivos, suplementares. O livro de artista expandido não seria a condição negativa do livro, mas o resultado do esgarçamento das fronteiras entre livro e objeto, cada elemento permitindo-se avizinhar-se e permear pelo outro. Um e outro podem ser identificados e associados por suas similitudes e pontos de encontro, e não por suas diferenças.

Segundo Michel de Certeau (1994), a fronteira tem um papel mediador, articulador. Em termos de relato, que trago aqui para o encontro entre o livro e o objeto, Certeau (1994, p. 213-14) coloca a fronteira como um terceiro território, um espaço entre dois: “Lugar terceiro, jogo de interações e de entrevistas, a fronteira é como um vácuo, símbolo narrativo de intercâmbios e encontros”. Numa zona fronteiriça entre o livro e o objeto, estaria o livro expandido: os livros-objeto, os quase-livros, os livros arquiteturais, os livros escultóricos, as caixas-livro, etc.

Buscar as palavras primas divisíveis somente por si mesmas e pela unidade

(nota da Caixa Verde)

Marcel Duchamp produziu em 1934 a caixa-livro La Mariée mise à nu par ses célibataires, même   (A Noiva desnuda por seus celibatários, mesmo), ou a Caixa Verde. Essa obra reúne réplicas de anotações, esquemas gráficos, cálculos, fotografias, partituras e esboços do artista, compilados no decurso dos anos para o desenvolvimento da obra de mesmo nome, chamada simplesmente de O Grande Vidro (1915-23). Essas notas reunidas na Caixa Verde funcionariam, segundo Octavio Paz (2002), como uma chave para compreensão da obra. No entanto, uma chave incompleta. Segundo este autor (2002, p. 31), as notas seriam “[...] outro quebra-cabeças, signos dispersos que devemos reagrupar e decifrar. A Noiva... e a Caixa Verde constituem um sistema de espelhos que intercambiam reflexos; cada um deles ilumina e retifica os outros.

A Caixa Verde é um livro de artista? Embora o trabalho seja uma caixa e não um volume propriamente dito é possível detectar nela vários pontos de contato com as definições de livro e livro de artista que aqui foram apresentadas. As anotações, desenhos e cálculos são partições (como páginas) contentoras de elementos narrativos, embora essa narrativa seja fragmentária, uma vez que as partes são móveis e podem ser rearranjadas de dezenas de seqüências possíveis, além da cronológica. Neste trabalho também são encontradas as características de compilação e portabilidade, além de outras. O que desperta maior interesse é a possibilidade de considerar O Grande Vidro uma quase-página-escultórica da Caixa Verde.  Ela foi posta a público posteriormente, aproximadamente dez anos após O Grande Vidro. Mas... qual dos trabalhos veio primeiro, ou qual deles é o mais importante, se são como espelhos? Para Paz (2002. p. 36), “O Grande Vidro é o desenho de um maquinismo e a Caixa Verde é algo assim como um desses folhetos de instruções que nos ensinam o manejo e funcionamento das máquinas. Ilustração estática de um momento da operação, para compreendê-la em sua totalidade há que recorrer às notas da Caixa Verde.” Os dois trabalhos ligam-se intimamente, como numa relação quase física entre duas páginas quando se tocam num livro. Se expostos em separado, como o são, à Caixa Verde lhe falta uma grande página final ou inicial; assim como ao Grande Vidro lhe faltam páginas precedentes, ou subseqüentes, dependendo da forma como se deseja ler o livro La Mariée mise à nu par ses célibataires, même.

Narrativas no espaço

Trato aqui de livros de artista definidos não pelo que não são, mas pelo que podem vir a ser. Das páginas de Duchamp, viajamos para as “páginas” de Arthur Bispo do Rosário.

Figura 1: Estandarte, Arthur Bispo do Rosário, s.d.

Serão livros os estandartes de Bispo? Folheamos os livros-estandartes como se caminhássemos por mapas narrativos, colinas de histórias, mar de signos e palavras. Folheamos arquiteturas e geografias e cartas náuticas e territórios. Folheamos esses livros-espaço como se ouvíssemos histórias narradas, descrições orais de lugares. Como relatos, os estandartes de Bispo “[...] atravessam e organizam lugares; eles os selecionam e os reúnem num só conjunto; deles fazem frases e itinerários. São percursos de espaços” (CERTEAU, 1994. P. 199). Permitem que mantenhamo-nos em intenso trânsito, compartilhando com o artista seu desejo de registrar os itinerários do mundo. Seriam diários de marcha? Inventários de tudo que foi visto, como uma compulsão pelo registro?

As histórias narradas em um dos estandartes, seriam as mesmas histórias afixadas em outro? Ou seriam desdobramentos de uma única história? A história do mundo, como explicitam as palavras de Bispo apud Hidalgo (1996, p. 185): “Quando eu subir, os céus se abrirão e vai recomeçar a contagem do mundo. Vou nessa nave, com esse manto e essas miniaturas que representam a existência. Vou me apresentar.” Como numa preparação para o Juízo Final.

Figura 2: Estandarte, Arthur Bispo do Rosário, s.d.

Como num virar de páginas, observar esses estandartes-livros tem uma dimensão temporal pungente e definitiva: o todo é feito de partições-páginas que demandam tempo de percurso. Colocados no espaço, pendurados, instalados, lado a lado ou em seqüência, reafirmam sua temporalidade e fisicalidade, e revelam no observador-leitor seu tempo, seu espaço e seu corpo.

Os livros expandidos aqui apresentados transitam nesse limiar certamente obscuro entre objeto e livro, podem ser vistos como prolongamentos da forma-livro, como desdobramentos e ampliações de suas características primordiais. Possivelmente não foram produzidos para serem lidos como livros tradicionais, e jamais o serão. No entanto, sendo o que são, sendo o que podem ser, guardam uma potência de relato e de registro, de compilação e de arquivamento, e principalmente uma potência narrativa próprias dos livros e de muitos livros de artista. Serão esculturas, arquiteturas, objetos, livros? Pertencendo e transitando por fronteiras flexíveis e permeáveis, La Mariée mise à nu par ses célibataires, même de Duchamp e os estandartes de Bispo do Rosário estariam como num espaço entre dois, ou num espaço entre vários. Ser um não exclui ser o outro: são um e outro.

Referências Bibliográficas

CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1.artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

HIDALGO, L. Arthur Bispo do Rosário: o senhor do labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

KRAUSS, R. La escultura en el campo expandido. In: La originalidad de la vanguardia y otros mitos modernos. Madrid: Alianza Editorial, 2002. p. 289-303.

PANEK, B. Livro de Artista: o desalojar da reprodução. Dissertação de Mestrado em Artes. São Paulo: Universidade do Estado de São Paulo, 2003.

PAZ, O. Marcel Duchamp: ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 2002.

SILVEIRA, P. A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2001.

Notas:

[1] Mestranda. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais.

[2] Professora da Sorbone de Paris, organizadora do catálogo Livres d’artistes. Paris: Centre Georges Pompidou/Bibliothèque Publique d’Information; Éditions Herscher, 1985. E do livro Esthétique du livre d’artiste: 1960/1980. Paris: Jean-Michel Place/Bibliothèque Nationale de France, 1997. (Tese de doutorado transformada em livro).

[3] Utilizo as expressões forma-livro e estrutura livro-referente de empréstimo de SILVEIRA, 2001.

[4] Todas as citações do texto de Rosalind Krauss são traduções minhas.

[5] “[...] de acordo com a lógica de certo tipo de expansão (‘grupo de Klein’), a não-arquitetura não é mais que outra maneira de expressar o termo paisagem, e a não-paisagem é, simplesmente, arquitetura.” (KRAUSS, 2002, p. 296. Parêntese meu.)

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano VII - Número 11 - Outubro de 2009 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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